Contar para uma pessoa que você é autista não é uma tarefa fácil. É difícil porque, além de você não saber como a pessoa vai reagir, ainda precisa transmitir a informação de forma que a pessoa entenda corretamente. Neste episódio, tentamos investigar reações previsíveis, principalmente aquela clássica: “Eu também tenho um pouco disso!” ou “No fundo, no fundo, todo mundo tem um pouco de autismo”. Isso é verdade ou mito?
Participam desse episódio Thaís Mösken, Tiago Abreu e Willian Chimura.
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, e mais uma vez nós trazemos aqui discussões sobre o autismo.
Thaís: Olá pessoal, meu nome é Thaís, eu sou de Florianópolis. E hoje a gente vai falar sobre um assunto que já aconteceu bastante comigo.
Willian: Eu sou o Willian Chimura, faço mestrado, minha pesquisa é em autismo também, também sou autista e estou curioso como a gente vai quantificar autismo nesta discussão de hoje.
Tiago: Neste episódio vamos destrinchar uma das frases mais comuns em conversas sobre autismo, que é: “eu também tenho um pouco disso”. Se você já ouviu essa frase, provavelmente você deve ter se questionado em algum momento se todo mundo é um pouco autista. Enfim, vamos investigar isso. E vale lembrar mais uma vez que o Introvertendo é um podcast sobre autismo feito por 10 autistas e que conta com a assinatura da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Tiago: Quando uma pessoa recebe o diagnóstico de autismo e ela se ver no desafio de falar sobre autismo com outras pessoas, principalmente no nosso caso que é um diagnóstico tardio, essa missão não é necessariamente fácil. Não é fácil porque você precisa pensar em várias estratégias de como contar isso e você também não sabe como a pessoa vai reagir. E entre essas várias conversas, muitas vezes as pessoas respondem: “Eu acho que eu tenho um pouco disso”. Este episódio é para gente investigar por que isso acontece e o porquê muita gente pensa que todo mundo tem um pouco de autismo.
Thaís: Essa situação que o Tiago contou já aconteceu comigo algumas vezes quando eu fui explicar para as pessoas o que era o autismo. Acho que acontece ainda mais com a gente e não só quem tem diagnóstico tardio, como falou o Tiago, mas principalmente quem é Asperger, porque a pessoa olha para gente e não vê nada especificamente que poderia ser apontado por ela como um “problema” . E é muito comum a gente ter que explicar para a pessoa o que é aquilo que a gente tem, porque existe um preconceito muito grande com relação ao que é autismo, as pessoas têm algumas ideias que não fazem o menor sentido ou que só fazem sentido em quadros mais graves. E, para praticamente todas as pessoas que eu tive que explicar que eu era assim, eu precisei falar quais eram as características de uma pessoa Asperger e quais dessas características eu tinha, porque eu também não tinha 100% delas. E na maior parte das vezes eu ouvi frases do tipo: “Ah eu também sou um pouco disso, eu acho que todo mundo tem um pouco disso aí”. Da mesma forma que as vezes a gente ouve aquela história de que “todo mundo é um pouco louco”, como se a pessoa falasse isso para mostrar que aquilo talvez não tenha tanta importância.
Willian: Eu também já ouvi frases desse tipo. Na verdade, eu acho que todo autista (especialmente os autistas leves, como a Thaís citou) acaba uma vez pelo menos na vida escutando uma frase semelhante a essa, seja da família, de algum amigo próximo e etc. E eu vejo que pode ter sim essa função da pessoa até querer de alguma maneira fazer com que você não se sinta mal em ser autista. Porque no senso comum as pessoas infelizmente ainda não se encontram em uma situação de conscientização plena e elas fazem essa equivalência do termo autismo com algo inquestionavelmente ruim. Então quando uma pessoa diz que é autista, enquanto outra pessoa ouve isso pode ser que ela queira a falar assim: “Não, mas fica tranquilo, eu também sou um pouco assim. Ah, todo mundo tem uns probleminhas assim, não precisa se preocupar”. É como se ela quisesse amenizar sua condição de tal forma a fazer você se sentir bem enquanto, na verdade, em muitos casos acaba fazendo o contrário. Porque muitas pessoas passaram a vida toda se questionando sobre as suas características e quando elas finalmente tem o diagnóstico, em uma situação de plena aceitação a tal ponto de começar a revelar isso para outras pessoas, as outras pessoas parecem que invalidam essa condição da pessoa com apenas uma simples frase. É claro, isso pode acabar gerando desconforto e machucar um pouco. Existem outras situações, ao meu ver, que a pessoa quer de fato invalidar aquela sua condição no sentido de dizer que isso seria uma frescura. É um pouco difícil mesmo, na primeira vez que você ouve sobre autismo e principalmente o autismo de dificuldades mais brandas, conseguir entender concretamente quais são as dificuldades e as peculiaridades que nós enfrentamos e entender que isso traz um prejuízo significativo para nossa vida, na verdade, porque essa é a definição de transtorno. É claro que todas as pessoas tem sim dificuldades e pode ser sim que uma pessoa de desenvolvimento típico tenha alguma dificuldade semelhante a uma pessoa com autismo, pode ser que essa pessoa até mesmo seja alguém que tem alguma dificuldade com ansiedade ou depressão, mas o que envolve uma pessoa ser diagnosticada com autismo é principalmente o fato de que todas as atipicidades, ao longo da vida dessa pessoa, estiveram presentes desde o início da vida dela e de fato impacta todo o desenvolvimento dessa pessoa na forma que ela se relaciona a forma e compreende interações sociais, todas as questões sensoriais e etc. Então é um conjunto de características que afetam o neurodesenvolvimento e vai continuar afetando até o final da vida.
Tiago: Esse fenômeno de considerar depressão uma frescura é algo muito mais comum e muito mais palpável. Inclusive, isso é falado em muitos lugares. Muita gente ainda tem essa visão de que depressão é frescura, que não é algo realmente relevante, que gente que é ocupada de verdade, digamos assim, não tem depressão. Mas no caso do autismo, pelo menos da minha impressão pessoal (não sei quanto a vocês), eu percebo que há uma maior frequência do primeiro contexto. Quando você começa a falar sobre autismo com alguém e a pessoa fala assim: “Ah, eu tenho também um pouco disso”. Tanto no sentido de talvez não entender realmente a complexidade que é você ter uma série de características a nível de transtorno e no mesmo sentido de criar um vínculo emocional com você, de falar assim: “Olha, eu te entendo, eu também estou numa situação específica e você não é tão diferente e ‘estranho’ que você possa imaginar que você seja”.
Thaís: Eu realmente acho que muitas vezes essa frase de “eu também tenho um pouco disso” ou similares tem a intenção de criar empatia, que é algo que os neurotípicos usam muitas vezes em muitas frases que para mim não fazem muito sentido. É a mesma história daquele “tudo bem”. “Como está o dia? Oi, tudo bem?”. Tá, mas o que exatamente você quer saber com isso? É uma forma, muitas vezes, de criar empatia e essa questão de autismo ser visto como algo ruim é especialmente comum em situações em que as pessoas ou só tiveram contato com pessoas no espectro com autismo mais grave e que traz um prejuízo ainda maior para a vida da pessoa e que talvez ela não consiga se beneficiar das características positivas do autismo ou que talvez nunca tenha conseguido conviver bem com o autismo. E especialmente essas pessoas vão entender aquilo como algo ruim e tentar minimizar, te dizer que você é uma pessoa normal, dizer que também tem algo disso para que você se sinta melhor (como o Willian falou). E se fosse uma pessoa que conhece um pouco mais de autismo, provavelmente ela não soltaria um comentário desses e diria algo que faça mais sentido para a gente. Já essa questão de invalidar por achar que é frescura, não ocorreu comigo exatamente com as mesmas palavras, mas quando eu estava explicando a questão de autistas terem preferência em filas, eu já ouvi um: “Ah, mas eu também tenho dificuldade em ficar numa fila”. Realmente ninguém gosta de ficar em filas, e talvez a pessoa justamente por ignorância, por não compreender o que é o autismo, acha que é simplesmente algo que incomoda um pouquinho e que portanto ela também também deveria ter aquele direitos. Então, neste aspecto, eu acho que é muito importante a gente não só falar de quais são as características do autismo, mas o que realmente faz com que uma pessoa com diagnóstico de autismo possa ter tratamentos diferenciados de uma pessoa que não tem este diagnóstico. Porque senão qualquer pessoa pode começar a se autodiagnosticar com base em algumas características e se considerar apto a diversas coisas que nós, como autistas, temos direito hoje em dia.
Tiago: E eu acho que o que você falou tá isso é muito importante e chega no ponto central desta nossa discussão. Existe uma diferença entre você ter características do autismo isoladamente e você definitivamente ter um conjunto de características que definem um transtorno.
Willian: Eu acho curioso também que eventualmente algumas situações assim a gente acaba se encontrando em uma situação de que temos de fazer um marketing ruim sobre você mesmo para convencer a outra pessoa de que você realmente tem uma condição a nível de transtorno. E eu acho isso bem estranho, bem desconfortável, para ser bem honesto. Pelo menos a técnica que eu uso hoje em dia é: se a pessoa não compreende tão bem, a primeiro momento eu apenas falo: “Tudo bem, não tem problema, eventualmente você vai notar as diferenças”. Porque esse é um ponto. Se você tem um transtorno, você deve esperar que essas atipicidades por conta da sua conduta, dos seus comportamentos e da maneira que você interage com as outras pessoas, são de tal forma a ser prejudicial.
Thaís: Mas não necessariamente o que a pessoa vai notar vai ser sempre algo ruim, porque já aconteceu também de um antigo diretor meu, quando eu perguntei para ele: “Tá, mas você nota alguma diferença?”. Ele falou: “Olha, eu noto que tem algo diferente, mas eu não sei dizer o que é”. Então muitas vezes a pessoa não necessariamente vai encontrar algo ruim ou algo bom, mas eu acho que o mais comum é que a pessoa encontre um pouco das duas coisas e que talvez a pessoa nem consiga relacionar essas características a autismo se se ela não souber quais são as características do autismo.
Willian: Certamente. E sempre deve considerar que os autistas são seres humanos, obviamente, assim como as outras pessoas. Então, por exemplo, vamos pegar uma característica do autismo que é prazer por repetições. Quando você fala isso, por exemplo, alguém pode perguntar: “Qual que é a diferença entre um autista para o neurotípico?”. Aí você dar exemplos de que gosta de repetir coisas e essa pessoa de desenvolvimento típico, ao ouvir essa frase, ao ler essa característica, pode pensar em qualquer episódio da vida dela e qualquer vivência que em algum contexto e momento ela teve sim um prazer por repetir algo. E aí ela pode se lembrar disso naquele momento e fala assim: “Poxa, eu também gosto de repetir algumas coisas, a minha série favorita, a minha música favorita”. Ao mesmo tempo, você pode falar sobre outra característica, de que autistas podem ser hipo ou hiper reativos a estímulos do ambiente. E aí essa pessoa, ao ouvir isso, pode pensar novamente em algum contexto que ela teve sim alguma certa sensibilidade ou que alguns estímulos do ambiente acabaram desagradando ela e ela pode pensar: “Poxa, eu também!”. Então, na perspectiva de quem se diagnostica e, a claro, na ótica científica de quem estuda o transtorno, a gente sempre está estudando em comparação ao que é esperado para pessoas de desenvolvimento típico, e não somente as questões de repetições e as questões sensoriais, mas principalmente a forma como que a gente se relaciona e como isso está evidente desde os nossos primeiros anos de vida. Então, obviamente, uma pessoa ao conversar com a gente na vida adulta, não vai considerar como foi o seu histórico de desenvolvimento e a gente sabe que é algo importantíssimo a ser considerado quando a gente fala sobre o diagnóstico de um transtorno do neurodesenvolvimento, como já disse antes.
Thaís: E além disso, também existem características muito típicas do autismo e que nem todos os autistas tem. Então, por exemplo, eu não costumo ter restrições alimentares, eu não tenho seletividade alimentar. E no momento em que a gente tenta explicar para uma pessoa que existem características que a gente não tem e isso não faz com que a gente deixe de ser autista, aí a pessoa parece que tem uma comprovação na vida dela de que realmente ela é um pouco parecida com você. Porque ela também tem algumas características parecidas e outras diferentes, então fica mais difícil explicar para essa pessoa no momento que a gente mostra esse detalhe. Quando a pessoa ainda está muito no estágio inicial de descobrimento do que é aquilo, eu prefiro não explicar essa parte, o que me incomoda, porque a pessoa pode acabar tendo um estereótipo totalmente genérico do que são pessoas autistas. Mas pelo menos eu percebi que tem causado um pouquinho menos de confusão quando eu tento essa abordagem.
Willian: Quando a gente vai ver, segundo o DSM-5, há três critérios que estão bem relacionados com interação e comunicação, e esses critérios estão sempre presentes de alguma forma entre as pessoas com autismo. O transtorno tem muito a ver com déficits de entender como funciona os relacionamentos, com formas atípicas de se relacionar, com dificuldades de reciprocidade social e emocional, de se identificar expressões faciais, de usar comunicação não-verbal adequadamente e em combinação com isso o DSM lista outros quatro critérios, e desses quatro critérios comportamentais, apenas dois precisam estar evidentes para fechar um diagnóstico. Os quatro itens são: A hipo e hiper reatividade sensorial, a insistência na mesmice, as estereotipias e o hiperfoco restrito e intenso. Então há toda uma complexidade que se deve ter ao observar uma pessoa .
Thaís: Um outro ponto que a gente não abordou, mas que é importante, é a gente pensar que essa pessoa que disse que também tem um pouco disso pode ser uma pessoa autista. E talvez justamente por ela achar que todo mundo é um pouquinho autista, ela não tenha ido atrás de um diagnóstico porque as pessoas ao redor falam para ela que aquelas características dela não são exatamente diferentes, e isso pode atrapalhar o diagnóstico de uma pessoa que realmente é autista.
Tiago: Muito bom Thaís você ter entrado nesse assunto porque isso me lembra uma história muito curiosa e que ilustra muitas vezes também uma dificuldade onde que as pessoas dentro do espectro tem de reconhecer as duas dificuldades. Uma vez eu conheci um estudante do curso de Matemática na universidade que eu estudava. Ele tinha 41 anos de idade e tinha acabado de receber o diagnóstico. Ele disse que, durante a vida inteira, ele percebeu que o comportamento dele era diferente, mas na mente dele basicamente as outras pessoas eram erradas e ele era uma pessoa normal. A gente pode considerar que muitas vezes a nossa vida tem vários componentes prejudiciais, mas não necessariamente a gente consegue reconhecê-los.
Willian: No meu caso, durante as sessões de psicoterapia, eu conseguia me identificar com uma pessoa diferente. Eu só obviamente não tinha nenhum parâmetro ou modelo do que seria um transtorno do neurodesenvolvimento, muito menos autismo. Então nem sequer considerei essa hipótese, mas principalmente a partir dos 17 anos eu comecei a notar que de fato eu tenho um comportamento diferente e essa sensação só foi aumentando ao longo da vida.
Thaís: Eu comecei a perceber também que eu era diferente desde cedo. Mas só ficou muito claro para mim que essa diferença era muito mais estrutural em algumas conversas que eu tive com minha mãe no meio para o final da adolescência até depois do início da faculdade. Eu demorei tanto para conseguir perceber claramente isso que, quando eu falava sobre algo, a resposta que ela me dava não fazia sentido muitas vezes com com a minha hipótese. Era como se eu criasse uma hipótese de mundo e as respostas dela não faziam mais sentido com aquelas hipóteses. Aí eu me lembro que eu falei para minha mãe com essas palavras: “Mãe, a gente percebe o mundo de uma forma diferente. Porque só assim para o que nós duas estamos estamos falando fazer sentido, considerando que nenhuma de nós duas está mentindo e considerando que nenhuma de nós duas está escondendo coisas, só é possível isso que nós estamos falando aqui é verdade para as duas se nós tivermos percepções extremamente diferentes de mundo”. Então foi nesse momento que eu virei uma chave muito importante da minha vida. “Virar a chave” é uma expressão que a gente usa pra caramba, que eu gosto para caramba dela, e ela significa basicamente passar de um estágio para outro algo, uma mudança significativa de um momento para outro na vida. E esse momento fez muita diferença para começar a repensar depois o meu relacionamento com ela. E eu levei isso para outras características da minha vida, justamente pensando que as pessoas talvez enxergassem as coisas de formas realmente diferentes e não necessariamente que as pessoas estariam tentando mentir para mim o tempo inteiro.
Tiago: Se você tiver alguma história relacionada a temática desse episódio, escreva uma mensagem para o nosso email e conte a sua história para nós. Nós voltamos na próxima semana, um abraço para você e até mais.