Introvertendo 89 – Negar ou Aceitar o Autismo?

A hipótese de autismo em crianças é algo que assusta pais e mães. A consequência é a negação ou, numa perspectiva mais madura, a aceitação. Neste episódio, Luca Nolasco e Tiago Abreu recebem a jornalista, ativista e mãe Andréa Werner para entender as dores, os medos e as dúvidas de mães e pais de autistas nesta nova jornada.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou host deste podcast, jornalista e diagnosticado com autismo em 2015.

Luca: Eu sou Luca Nolasco, diagnosticado em 2017, e vou tentar participar bastante dessa discussão.

Andréa: Sou a Andréa Werner, sou jornalista e escritora. Tenho um filho autista de 11 anos e meio e de uns anos pra cá eu entrei nessa parte do ativismo pelos direitos, cidadania, acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência.

Tiago: É um prazer ter você mais uma vez aqui no Introvertendo. Para quem não sabe, Andréa participou do episódio 56, chamado Charlatanismo no Autismo, no ano passado e mais uma vez nós temos uma discussão muito importante, que é a questão da negação e aceitação do autismo.

Andréa: É um prazer estar com vocês de novo. Me chamem sempre que vocês acharem pertinente, porque eu adoro.

Tiago: Sensacional. Se você quiser acompanhar o Introvertendo, o nosso site é introvertendo.com.br. Lá você encontra todos os nossos episódios. E você também pode acessar as nossas redes sociais. Por lá você encontra o nosso Facebook, Twitter, Instagram, todos com o nick @introvertendo. Se você quiser fazer qualquer feedback positivo ou negativo dos nossos episódios, fazer suas opiniões, suas críticas e, também fazer complementos aos nossos episódios, é só você mandar uma mensagem para o e-mail ouvinte@introvertendo.com.br. Se você quiser convidar gente para algum evento ou fazer qualquer tipo de contato mais direto, você também pode utilizar o e-mail contato@introvertendo.com.br. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por 10 autistas e que conta com a assinatura da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Nós observamos – nós, alguns integrantes do Introvertendo, que existe alguns pais e mães que não conseguem lidar com a probabilidade de seus filhos serem autistas. São pessoas que socialmente veem que seus filhos têm algumas características no desenvolvimento que estão “atrás de outras crianças”, mas consideram natural, só uma fase do desenvolvimento, que isso vai passar. Preferem esperar e não procuram ajuda profissional para tentar entender se isso é um marcador atípico ou se isso necessariamente é realmente uma outra questão envolvida no desenvolvimento dessa criança. Pensando nessa temática, nós achamos que é muito importante conversamos com alguém que esteja dentro dessa situação de maternidade atípica e no contexto do autismo. Nós não enxergamos outra pessoa que tenha mais experiência para falar do que a Andréa. Então eu queria te perguntar: Essa observação que a gente tem é verdadeira? E se ela é verdadeira, por que existem esses pais e mães que não querem lidar com a possibilidade de seus filhos serem autistas?

Andréa: Ela é super verdadeira. Eu nunca vou esquecer que, quando o Theo teve o diagnóstico, na verdade o diagnóstico veio porque na escola ele tinha acabado de entrar para a escola, não tinha nem dois anos ainda, eles perceberam alguns comportamentos dele que não estavam adequados para a idade e pediram para a gente procurar um médico. Quando a gente teve o diagnóstico, eu voltei para a diretoria para agradecer: “Eu queria agradecer o cuidado de vocês, das professoras, de terem falado com a gente sobre esses pontos que são importantes, porque vocês acabaram ajudando a gente para que ele fosse diagnosticado mais cedo e hoje a gente sabe o quanto é importante”. E a diretora falou pra gente que a nossa postura surpreendeu ela, porque normalmente os pais ficam muito bravos quando a escola se aproxima para falar qualquer coisa. E obviamente a escola não vai dar o diagnóstico… Mas uma professora, que é acostumada com crianças há muitos anos, bate o olho e sabe o que está ali dentro de um desenvolvimento esperado ou não. Ela vai falar: “Olha, tem esse tipo de comportamento, que não está dentro do padrão da idade. Você deveria procurar uma avaliação boa”. Ela disse que é muito comum os pais ficarem muito bravos, brigam com a escola e tiram a criança de lá. Aí vai para outra escola, até que a outra escola também chama os pais para ter a mesma conversa. E aí tem pais que levam para outra escola. Sim, de fato é uma coisa muito comum, os pais fazem isso porque eles não querem ver, é uma dor muito grande e eles querem adiar essa dor. Eles preferem não ver, por mais que isso seja danoso para a criança (porque ela não vai ter o diagnóstico), eles estão adiando a dor deles de saber que têm um filho com uma deficiência pro resto da vida.

Luca: Você consideraria que os médicos (e talvez até professores) teriam algum tipo de receio ou até medo nesse caso de tentar indicar esse tipo de conclusão? Porque sempre quando um profissional cai no diálogo com os pais, ele tem esse tipo de medo. Eu acho que esse tipo de medo impediria ele de transmitir os pais de maneira clara o suficiente para que ele aceite bem.

Andréa: Eu acho que o medo às vezes faz a pessoa ficar empurrando com a barriga. Eu já vi casos de escola que demorou seis meses, mas tinha percebido no primeiro mês justamente porque sabe que essa reação dos pais não costuma ser muito boa. Você está chegando para o pai falando: “Olha, não é bem esse futuro que você acha que seu filho vai ter”. É uma situação muito dolorosa para quem está ouvindo e também não é fácil pra quem está passando a informação. Não é fácil você virar para uma mãe e falar que o filho dela tem uma deficiência e que ela não tinha percebido ainda provavelmente. Eu entendo que a maioria fique adiando esse momento mesmo. É muito medo de errar também quando o médico não tem muita experiência. A gente tem que perder o medo de falar: “eu não sei”! Muitos pediatras, principalmente aqueles que tem aquele contato mais mensal com a criança, quando ela é pequena, ao invés de ficar falando com os pais: “Olha eu acho que isso não é nada, porque é menino demoram mais para falar, é porque ele você voltou a trabalhar cedo…”, tem que ter coragem de falar: “Eu não sei, eu não tenho certeza, eu vou direcionar você para um médico psiquiatra, um neuropediatra que é especialista em desenvolvimento infantil e que vai poder dar essa resposta com mais certeza”.

Tiago: Aquela frase “toda criança tem o seu tempo” seria uma forma, também, preguiçosa de alguns profissionais lidarem com o seu próprio desconhecimento do assunto?

Andréa: Totalmente. Eu tenho pavor. Quer me fazer falecer? Fale essa frase perto de mim. Em grupos de mães do Facebook é danado pra acontecer, aparece uma falando: “Meu filho tem três anos e ele fala muito pouco”. Vai aparecer umas três ou quatro mais repetindo “toda criança tem seu tempo”, porque isso virou uma coisa quase no inconsciente coletivo das pessoas. Essa coisa de que cada criança tem seu tempo, não é que é mentira, mas é que até esse tempo da criança tem certos limites. E é por isso que a gente tem coisas super estudadas que são chamadas de Marcos do Desenvolvimento. Uma coisa é uma criança com 2 anos ainda um pouco atrasada na linguagem, uma coisa uma criança de 3 anos que praticamente não fala. Não se pode falar que isso é o desenvolvimento normal de cada criança, pra tudo tem limite até pra esse tempo que eles chamam de o tempo da criança.

Luca: Que os sintomas do Transtorno do Espectro Autista em meninas é razoavelmente diferente do que os meninos, creio que já é um conhecimento geral. Só que a percepção ainda acho que é muito defasado. Você acredita que talvez essa negação seja mais presente nas meninas com esse diagnóstico ou até postergada para quando elas ficam mais velhas, quando o autismo é leve ou moderado pela falha de percepção dos sintomas?

Andréa: É… até temos alguns estudos que já mostram que as meninas manifestam essas coisas de forma diferente, e que é muito comum mesmo o diagnóstico das meninas só é fechado na adolescência depois de vários diagnósticos errados: esquizofrenia, bipolaridade, borderline, tudo que você imaginar, menos o autismo. É assim para o TDAH também, que é o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade, que é o meu caso. Eu fui ter meu diagnóstico com 35 anos de idade, depois do diagnóstico do meu filho, porque no TDAH as meninas costumam não aparentar a hiperatividade, que é justamente aquilo que faz a mãe pegar o menino correr no médico… o menino sobe no lustre, pendura na estante… As meninas geralmente manifestam mais isso como ansiedade e impulsividade. No autismo, as meninas tendem a disfarçar melhor esse déficit social. Então elas conseguem, por exemplo, imitar uma coleguinha que é muito sociável, elas começam a observá-las, decoram frases para falar igual a amiguinha… Então elas vão passando, sabe? Elas vão disfarçando aquela coisa que é muito inerente aos meninos que é o isolamento social e isso complica o diagnóstico. A gente também precisa falar muito sobre a questão de gênero dentro dos transtornos do neurodesenvolvimento porque isso impacta muito o diagnóstico precoce das meninas e não é só o autismo.

Tiago: Até uns anos atrás era muito frequente algumas pessoas falarem em “luto do autismo”, inclusive um texto antigo seu. É um tema que, às vezes, tem uma certa controvérsia principalmente entre autistas, embora eu entenda o sentido realmente dessa questão do luto. Eu queria te perguntar o que seria esse “luto do autismo”. É um luto diretamente ligado ao autismo ou as expectativas que os pais têm, principalmente, quando eles estão em estado de negação?

Andréa: Eu acho que é totalmente ligada às expectativas. Eu vou te falar como eu me senti. Quando veio aquele diagnóstico, eu senti que o filho que achava que eu tinha não existia. Eu fiz tantos planos, eu achava que ele ia fazer intercâmbio, eu queria que ele tivesse namorada ou namorado… Quando falou que ele tinha uma condição grave, que não tinha cura e que era pro resto da vida, não parecia estar falando meu filho. Aí eu olhava para aquela criança, que eu amava de fato, mas parecia que eu não conhecia. Parecia que eu tinha perdido um manual de instruções dela, que eu tinha que aprender tudo do zero. É muito doloroso e extremamente doloroso. Eu acho que parte grande dessa dor é o capacitismo mesmo, que todos nós temos, não dá pra não falar nisso. A questão da deficiência ainda está sendo muito desconstruída, no sentido de que a deficiência é uma deficiência, mas ela é parte da diversidade humana. Quando eu era criança, não tinha criança com deficiência na minha escola. Eu nunca convivi com uma criança com deficiência, então como é que eu ia achar isso uma “coisa natural”, que faz parte da diversidade humana? E que, tudo bem, essas pessoas existem, e elas podem ter uma vida bacana, que não quer dizer que elas são menos ou que elas são infelizes? A gente tem esse capacitismo porque fomos ensinados desde cedo que as pessoas com deficiência ficam separadas. Eu acredito que, se a gente trabalhar essa questão da deficiência como sendo parte da diversidade humana, de remover barreiras de acesso, e as pessoas forem aceitando isso como parte da vida, as Andréas do futuro vão sofrer menos do que eu sofri naquela época por causa do desconhecimento que eu tinha, do preconceito que eu tinha.

Tiago: Inclusive Andréa, quando você conta sobre seu filho, eu faço um paralelo com a minha mãe, que tem uma idade próxima à sua. Quando eu tinha 2 anos, eu não falava absolutamente nada e ela tinha uma preocupação muito grande, porque ela achava que eu era surdo. Ela procurou um profissional ele teve uma reação completamente absurda, disse que eu tinha língua presa e que precisava fazer cirurgia. Depois ela procurou uma segunda opinião de outro profissional e ele disse para me incluir na escola. Na escola, eu comecei a desenvolver. Ela sempre viu, durante toda a minha vida, marcadores muito específicos de diferença. Mas quando veio a hipótese do autismo, isso já perto da vida adulta, ela reagiu de forma negativa. Ela pensou: “você precisa ser curado disso”, até certo sentido. Ela levou anos para aceitar e eu fico imaginando, no meu caso, que é uma pessoa no grau 1, alguém que teve autonomia ao longo da vida… em outro paralelo, uma pessoa que provavelmente tem um filho no grau 3 e provavelmente vai precisar de um suporte muito maior ao longo da vida… É complicado receber uma notícia como essa imediatamente. E eu concordo que, se nós não víssemos a deficiência como algo menor ou como algo inferior, como muitas vezes as pessoas nos veem como pessoas com deficiência, provavelmente a nossa aceitação não só com relação aos pais mas também com relação aos autistas com os seus próprios diagnósticos seria melhor.

Andréa: Eu acho interessante que esse texto meu, O Segundo Luto do Autismo, eu escrevi quando eu cheguei à conclusão de que a aceitação que eu tinha tido com o Theo foi falsa. Porque quando ele teve o diagnóstico, o médico falou que ele era leve. Ele tinha dois anos e ele verbalizava algumas coisas, ele cantava pedaços de músicas e o médico falou: “Não, ele é afetuoso, só por isso eu já descarto autismo clássico”, que era como se falava na época. E falou que era leve. Então eu vi alguns vídeos de autistas falando e tudo e eu pensava: “Olha é o Theo no futuro”. E aí, quando ele chegou a cinco e seis anos, eu vendo ele com os pares da mesma idade, me caiu a ficha: “Nunca foi leve, não será leve, não é leve”. Aí eu tive o que eu chamei o segundo luto, que é “meu filho é autista severo”. Hoje em dia ele é moderado, mas foi muito doloroso também. No momento em que o médico falou que era teoricamente leve, eu já fiz um monte de planos novos: “Agora ele vai ter só um pouquinho de dificuldade, mas ele vai na escola e etc”. E aí eu caí do cavalo de novo quando ele tinha cinco seis anos. Aí que foi a aceitação de verdade. A partir dali eu te digo que minha vida ficou melhor, sabe? Eu aprendi a viver mais com o pé no chão, procurando o melhor mas sem ficar imaginando coisas.

Tiago: Eu acho muito interessante que no seu trabalho, diferentemente de muitas pessoas que militam na causa do autismo, está cada vez falando sobre outras deficiências, em entender que deficiência é algo que une pessoas com diferentes condições. A sua ligação com outras deficiências é uma consequência principalmente desse amadurecimento que você teve com relação ao caso do Theo?

Andréa: Acho que é totalmente consequência. Foi, primeiro, com relação ao autismo e às outras condições. Foi quando eu percebi que não fazia sentido, por exemplo, um pai de autista ser homofóbico. Como assim, você quer respeito à diferença do seu filho mas você não respeita a diferença do filho do outro? E aí eu comecei a perceber todas as pessoas que sofriam preconceito: LGBT, negros e etc. Mas a ficha das outras deficiências demorou um pouquinho mais pra cair. As deficiências são muitas, são muito variadas, e a gente tem muito o que aprender. Eu aprendo todo dia. Eu estou ansiosa para aprender, porque acho que a gente ganha todos juntos nessa. Se cobrarmos políticas públicas juntos faz muito mais sentido do que separados.

Luca: Andréa, anteriormente você tinha dito que quanto mais um pai demora para aceitar, para dar suporte ao próprio filho que tem um diagnóstico, pior será a situação para o próprio filho por conta de um sofrimento que o pai quer postergar. Tendo isso posto, você acredita que assim que pai for conscientizando, existe algum tipo de cuidado paliativo que esse pai poderia ter para ajudar na situação do filho, agora joga um pouco mais velho um pouco, mais tardio o diagnóstico?

Andréa: É correr atrás do prejuízo, terapia sempre. E acho que tem uma coisa muito importante aí também. Geralmente quando eles não aceitam um diagnóstico dos filhos, eles tendem a culpar outra coisa: “Ele é sem limites mesmo, ele é agressivo, ele é malcriado”… Isso vai tudo afetar muito a autoestima a própria aceitação da criança. Uma coisa que eu critico muito são os pais que não querem contar os outros que o filho é autista quando é leve e diz para “não rotular”. Você prefere que eles saibam que ele é autista ou que eles rotulem de “malcriado”, “sem limites”? Eu sou a favor de você falar a verdade, até para que a criança entenda que aquilo faz parte da identidade dela e que ela não tem que ter vergonha daquilo. Imagina: “Meu pai demorou tanto assim pra assumir que eu sou autista, então ser autista deve ser uma coisa horrorosa, ele deve ter vergonha de mim”. São várias coisas impactando a criança de uma vez: a falta de uma intervenção precoce, a noção de que o que ela tem é muito errado e por isso demoraram muito para assumir. Acho que só faz mal.

Tiago: Com certeza. Essa questão do rótulo me fez lembrar que, lá no início do Introvertendo em 2018, a gente fez um episódio chamado O Poder do Rótulo e a minha visão sobre essa questão de se assumir autista ou não mudou muito. Eu tinha exatamente esse discurso, esse receio de ser reconhecido em todos lugares como o autista ao invés de o Tiago. E eu percebi que isso não faz sentido, na verdade. Se eu não falar sobre o diagnóstico as pessoas vão rotular para alguma coisa, então realmente é algo que eu aprendi de dois anos pra cá. A gente mantém esses episódios antigos até para as pessoas verem a nossa mudança de pensamento ao longo do tempo.

Andréa: Todo ano, na época do Orgulho Autista, as mães dos autistas severos dizem: “Eu não tenho orgulho do autismo, eu tenho orgulho do meu filho”. Eu falo: “Cara, eu entendo totalmente. Eu tenho amigas com filhos autistas severos que são muito agressivos que a situação é muito difícil. Mas o que eu tô querendo dizer é que está na hora das mães entenderem que esse dia não tem a ver com elas. Justamente o autista mais severo tem que ter orgulho porque é mais difícil ser quem ele é. E a autoestima é tão importante de cuidarmos, porque o suicídio é um dos principais motivos de morte de autistas adultos nos Estados Unidos. Quanto mais leve, mais a pessoa se percebe diferente, e isso vai gerando uma depressão. Eu não sou autista, não que eu saiba, mas eu tenho vários traços. Não é à toa que meu filho é, mas eu tenho TDAH e foi libertador pra mim ter o diagnóstico porque eu achava que eu era preguiçosa, eu achava que eu era burra e eu tinha uma péssima autoestima. Então quando eu descobri que isso estava intimamente ligado ao TDAH e que tinha formas de trabalhar isso tudo, foi muito libertador pra mim, foi maravilhoso para a minha autoestima. É uma questão de entender o porquê do meu comportamento.

Tiago: É interessante que você abordou uma questão muito importante do diagnóstico. Todos nós do podcast temos o diagnóstico de autismo. E eu posso dizer que a qualidade de vida da maioria de nós aumentou muito depois do diagnóstico, tanto no sentido de se reconhecer, de se entender, de ter mais autonomia. Minha vida, de 2013 para cá, foi absurdamente melhor porque eu entendia o que estava acontecendo e passei a entender porque certas pessoas repudiavam certas caraterísticas e também o que eu poderia trabalhar em mim para ser um ser humano melhor. Tenho certeza que o diagnóstico vem para somar na qualidade de vida de alguém.

Luca: Eu falo pelo meu caso, que eu conheci o Tiago antes de eu mesmo ter o diagnóstico. Ele vivia falando da vida dele, sobre as dificuldades que ele enfrentava por conta das características advindas do transtorno, eu me identificava em várias delas mas nunca consegui imaginar que eu pertencia ao espectro. Eu tenho um primo que ele tem um grau mais severo e eu tinha um preconceito muito forte quanto a isso. Mas assim que eu tive o diagnóstico, minha qualidade de vida melhorou, porque passei a entender a razão das diversas dificuldades que eu enfrentava e buscar maneiras de conviver melhor comigo mesmo isso. Qualquer pessoa que convive tende a melhorar.

Andréa: É exatamente isso. Eu mesma, quando eu descobri que o nome do problema era funções executivas, foi muito bom pra mim. Eu não vou falar que está 100%, mas é um grande caminho.

Luca: Eu sei que você já passou dias e noites falando sobre o assunto, mas eu queria saber se você se sente confortável em falar um pouco sobre a questão do charlatanismo no meio, porque você já conviveu muito sobre isso. Talvez tenha algo que você queira acrescentar.

Andréa: Olha, é desanimador, tá bem desanimador. Tem dias que eu falo: “Meu Deus, eu não quero avisar, usa aí seus óleos essenciais, seus MMS…”. Tem dia que dá uma preguiça danada. Teve um dia que eu falei a Lau Patrón, minha amiga, que eu queria ser LGBT para ser ativista LGBT, porque tá muito difícil ser ativista do autismo. Mas eu acho que isso tudo está muito ligado ao capacitismo também. Porque o charlatanismo encontra um campo muito fértil naqueles pais que não aceitam a condição dos filhos e que acham que tem que ter uma cura. Se a gente trabalhar em cima do capacitismo, talvez a gente consiga acertar pela lateral a questão do charlatanismo também. Tudo isso é desespero e a pessoa chega: “Seu filho não era pra ser assim, seu filho pode ser normal e a gente tem a solução para você ter o filho que você imaginava”. Você tem um campo muito fértil.

Tiago: Com certeza. Para fechar, Andréa, eu queria te perguntar o que mães e pais podem aprender com filhos atípicos.

Andréa: Nossa Senhora, Tiago, como você me pergunta isso? (Risos) Eu sou completamente outra pessoa. Uma vez me perguntaram como foi minha “transição” de carreira, porque eu trabalhava em uma multinacional quando o Theo foi diagnosticado. Hoje eu faço um negócio completamente nada a ver, se parar para pensar, mas tem muito mais a ver com quem eu sou.

Tiago: É Jornalismo puro, em certa medida.

Andréa: Sim, na verdade o Theo me ajudou a achar minha verdadeira vocação. Eu aprendi, mas foi tanta coisa, foi rever as prioridades, entender o que era de fato importante na vida, a ter mais empatia e olhar mais para o outro; entender melhor essa situação em que a gente vive, que as pessoas são mais privilegiadas do outras, as pessoas que são consideradas “menos” pela sociedade… Dá para escrever um livro. Eu costumo falar nas minhas palestras que a gente tem que acabar com essa concepção também de que todo mundo que tem um filho diagnosticado com deficiência vira essa  coisa: “Nossa, aprendi demais”. Não, tem pessoas horríveis no nosso meio. Tem psicopatas entre nós, não é que a pessoa teve um filho diagnosticado que ela vai aprender. Depende de todo o psicológico da pessoa, as ferramentas que ela desenvolveu ao longo do tempo, vamos ver o que dá para aprender e tentar ser feliz desse jeito. E tem outras pessoas que vão se agarrar a amargura, vão se agarrar àquele filho que elas imaginaram e vão passar o resto da vida lamentando o filho que elas não têm.

Luca: O que você falou é de extrema importância, porque pessoas fora do meio, por conta de certo imaginário popular, veem filhos autistas em grau mais severo como uma folha em branco, uma pessoa que simplesmente inexiste. Você consegue mostrar perfeitamente que a pessoa existe sim, ela tem influência sobre você, assim como você tem influência sobre ela. Ela é importantíssima para você. Você mesmo inclusive só achou sua vocação por causa do seu filho isso é brilhante. Eu acredito que posturas assim consigam mudar a percepção que as pessoas têm sobre o grau mais severo de autismo.

Andréa: Eu sei também que existem mães que vivem uma situação infinitamente mais difícil que a minha. E não só pelos filhos severos. Mas a questão é a falta de suporte mesmo. Poderia ser mais fácil, mas quando falta suporte da família, do estado e da sociedade, tudo fica parecendo muito mais catastrófico do que é. Eu tenho tentado orientar as mães até nesse sentido. Eu acolho quando a mãe chega falando: “O autismo acabou com minha vida”, “desgraçado do autismo porque acabou com meu filho”, eu tento mostrar o que está faltando pra ela e como o que ela pode ir atrás desses direitos que ela tem, que estão sendo negligenciados. Se ela tem suporte, ela vai começar a olhar a situação de uma forma diferente. É o que eu espero.

Tiago: Com base em toda essa discussão, nós podemos então alguns pontos muito importantes que a gente precisa relembrar. Primeiro: não ter medo do diagnóstico, principalmente se você é uma mãe ou o pai que está com uma criança que está no início de seu desenvolvimento. Segundo: prestar atenção nesse processo de desenvolvimento. Terceiro: quanto mais cedo as intervenções, mais possibilidade de autonomia e qualidade de vida. Número quatro, que para mim é uma coisa muito importante: você tem que se alinhar com pessoas perto de você, outras mães e também associações locais. Porque junto com outras pessoas você tem mais possibilidade de brigar, de correr atrás de políticas públicas e principalmente se ajudar mutuamente. E uma coisa que eu aprendi com a Andréa é se introduzir no meio das deficiências e não achar que o autismo é uma questão isolada de tudo né. E, por fim, cuidado com o charlatanismo e com a vista do autismo como uma lesão ou como algo que vai incapacitar a pessoa pelo resto da vida. Andréa, tem mais algum ponto que você acrescentaria nisso?

Andréa: A importância da autoaceitação do diagnóstico, por mais que seja difícil, tanto pra você, para que a vida continue e para que você passe para a próxima página, quanto para que aquela criança se aceite, para que ela seja feliz. Se os pais não a aceitarem, ela não vai se aceitar.

Tiago: Com certeza. Andréa, muito obrigado pela sua participação no Introvertendo mais uma vez.

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