Introvertendo 53 – A Saga do Diagnóstico

Um dos temas mais complicados e caros para autistas leves é o déficit de profissionais especializados quando o assunto é autismo em adultos. A carência tem várias implicações, incluindo a dificuldade de encontrar um atendimento eficaz e específico Neste episódio, os podcasters Michael Ulian e Tiago Abreu recebem duas integrantes da Liga dos Autistas, Érica Matos Josiane Soares, ambas diagnosticadas com autismo na vida adulta, para discutir sobre o processo de avaliação médica, critérios de diagnóstico e até questões de gênero.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá para você que está ouvindo o podcast Introvertendo, essa plataforma que reúne pessoas dentro do espectro autista de diferentes lugares do Brasil para contar suas histórias. Meu nome é Tiago Abreu, hoje eu estou colaborativamente com  o pessoal da Liga dos Autistas para poder falar sobre a saga do diagnóstico.

Érica: Olá, meu nome é Érica, sou integrante da Liga, tenho 36 anos, fui diagnosticada aos 35 anos, e é isso. 

Michael: Meu nome é Michael, fui diagnosticado aos 14, e coleciono mais diagnósticos do que coleciono pokémons. 

Josiane: Meu nome é Josiane, fui diagnosticada aos 22.

Bloco geral de discussão

Tiago: Uma coisa que ocorreu esse ano, é que a Liga dos Autistas iniciou uma coluna na Revista Autismo, e o primeiro texto da Liga que foi chamado dificuldades do diagnóstico tardio, apresentou justamente a temática que a gente tá falando hoje, que também é uma dificuldade principalmente para pessoas que foram diagnosticadas depois de adultas, o que não representa o caso do Michael, mas é claro que esses processos acabam refletindo também na vida adulta, e eu queria que vocês falassem um pouco sobre o processo diagnóstico de vocês.

Érica: Eu sempre me achei uma pessoa muito burra, muito lerda, não entendia muito o que as pessoas estavam me dizendo, tive épocas na escola que eu não sabia nem o que eu estava estudando, e eu comecei a fingir que estava prestando atenção, que eu estava entendendo tudo, mas não sabia o que era, e sempre foi assim. Sempre estudando pra caramba, por exemplo, concurso, eu passava mas não me classificava. Por mais que eu estudasse, eu não entendia o que que estava acontecendo porque eu sempre me esforçava bastante, até que o ano retrasado minha mãe estava assistindo uma reportagem sobre autismo, e ela falou que as características batiam muito com o meu perfil, pediu pra eu dar uma pesquisada, e cada vez que eu me aprofundava mais eu me identificava, aí foi quando eu comecei com a saga do diagnóstico. Foram uns quatro psicólogos, um neurologista, uns três psiquiatras, e dois neuropsicólogos para poder conseguir o diagnóstico. A metade desses profissionais, ou riram da minha cara, ou já foram bem ignorantes dizendo que eu não era autista porque olhava nos olhos, porque eu me expressava bem, e várias outras coisas que quem sofre com diagnóstico tardio ou mesmo precoce, sabe que é complicado lidar com esse pensamento de profissionais que só tem a teoria, mas não teve a vivência prática que nós autistas temos. A arrogância que eles têm na hora de atender o paciente que é muito difícil de lidar, o autista não sabe lidar com essa questão de entrar em conflito com a pessoa para poder mostrar com convicção a sua visão do diagnóstico, então é o que eu sempre falo também pro pessoal na Liga que tem que estudar bastante antes de ir, claro que você também não vai chegar lá batendo o pé dizendo que é, mas se o profissional já não tá te dando atenção, também sendo arrogante, procura outro, demora, mas vai procurando que uma hora chega alguém que te ajuda nessa parte. A minha primeira avaliação neuropsicológica foi assim, algumas coisas eu concordei, mas na parte de colocar que era transtorno do espectro autista, ele colocou que eu tinha transtorno de aprendizagem escolar, que não tem nada a ver. Eu fiquei bem abalada com isso tudo, porque quando descobre que é autista a gente começa a fazer sentido né a nossa a vida, é um alívio, uma paz, que finalmente entendi porque eu achava que era burra, mas hoje eu sei que não sou, hoje eu consigo me expressar melhor, o diagnóstico ajuda a gente a começar a se desenvolver, antes de tanta pressão que a gente tinha, seja pela família, seja pela sociedade, e apesar da dificuldade que foi, porque eu comecei o ano retrasado mas o meu diagnóstico só saiu o ano passado em julho, então foram mais de 6 meses até que eu conseguisse, e tem gente que passa até mais tempo, 9 meses, um ano, a gente tem uma amiga nossa, hoje ela ia receber devolutiva né, eu tô ansiosa para saber o que que deu o resultado dela, mas ela também passou pelo mesmo que eu e a primeira avaliação dela também deu errado, e ela ficou bem mais abalada do que eu, mas até que essa experiência ruim que a gente tem a primeiro momento da avaliação não sair do jeito que a gente quer, do jeito que a gente espera ter, serve para gente ajudar os outros que vão chegando e passando por essa experiência ruim, mas graças a Deus já consegui o diagnóstico, estou seguindo com as terapias, no início né a gente fica muito feliz com finalmente descobrir o que tinha, e a gente fica com aquela visão de que a vida vai melhorar cem por cento,  melhora sim, mas as lutas continuam, não é um mar de rosas depois do diagnóstico tanto assim.

Michael: No meu caso, eu tive o diagnóstico bem mais cedo, só que eu faço tratamento psiquiátrico desde bem criança, comecei o tratamento com 3 ou 4 anos, com o diagnóstico de TDAH, na época, era meio que moda os médicos darem esse diagnóstico pra toda criança, e eu fui um dos que receberam. Só com 14 anos, o mesmo médico que me deu esse diagnóstico percebeu que não era. E é engraçado porque eu tenho as características do autismo bem caricatas, talvez quando eu era criança eu me esforçasse mais pra esconder isso, mas a medida que eu fui crescendo, elas foram ficando cada vez mais caricatas. Quando eu fui lá pela primeira vez, ganhei meu diagnóstico quase que instantaneamente, tanto que eu nunca tive muita confiança no meu primeiro diagnóstico. Eu sabia que eu era autista, mas ainda assim eu duvidava do diagnóstico assim como também duvidei do primeiro de TDAH, ainda mais que o tratamento com remédios pra TDAH nunca funcionou comigo. 

Tiago: E o motivo também pelo qual você desconfiava era porque o diagnóstico foi fechado muito rápido né, trinta minutos…

Michael: E depois, aconteceu isso, do diagnóstico ser fechado em trinta minutos, eu fiquei meio desconfiado. Também não segui com nenhum tratamento específico, eu fechei o diagnóstico e segui minha vida, e foi até eu entrar na faculdade com 18 anos que eu novamente precisei de ajuda médica e eu aproveitei pra fazer uma reavaliação desse diagnóstico, tive uma avaliação um pouco mais séria, e de novo eu fui avaliado na hora como autista, eu bato praticamente em todas as características, foi bem rápido também, mas eu senti mais segurança, foi com encaminhamento em uma psicóloga especialista, ela que me encaminhou pra uma psiquiatra. Depois disso começou um jubileu de diagnósticos, eu voltei pra minha cidade natal e fiz um tratamento de saúde onde ganhei de novo o diagnóstico de asperger, me mudei pro interior do Paraná, e eu passei em Curitiba pra conhecer um psiquiatra de lá, que me laudou de novo. Quando voltei pra Arapongas, eu precisei de uma receita de remédio psiquiátrico, e ganhei mais dois diagnósticos, porque minha psiquiatra sozinha não tinha muito segurança de me dar, então um neurologista deu, dentro de um ano eu ganhei quatro diagnósticos. Eu sou aquela pessoa que você olha e já sabe na hora que é autista, porque eu tenho todos os estereótipos, o que me ajudou também na hora de procurar por ajuda especializada. 

Josiane: Então, o meu diagnóstico foi bem complicado porque quando eu era criança, eu não ficava sem a minha mãe, e só de sair da presença dela eu entrava em crise, e eu tinha muitas e muitas crises. E eu lembro que minha mãe falava, me aconselhava, porque eu era considerada uma criança muito inocente e vulnerável, então minha mãe me aconselhava não conversar com estranhos. Se eu ia para a escola e alguma amiga dela ia buscar outra criança e me buscar, só que eu não ia porque minha mãe falava pra eu não conversar com estranhos, e mesmo eu sabendo que era uma amiga dela, era uma pessoa estranha pra mim, e depois a minha mãe brigava comigo, eu ficava muito confusa. Então essas questões de seguir regras, de eu ficar confusa com regras ambíguas, sempre foi muito evidente em mim. Aí na escola, durante o recreio quando tinha muito barulho, muitas crianças voltavam às salas, eu desmaiava. A minha mãe me levou no neurologista, me levou em vários médicos, eu fiz muitos exames e não foi identificado nada, não mostrava nada, e ficou por isso mesmo, não receitou remédio, nem acompanhamento escolar, não disseram nada para minha mãe, não souberam explicar porque eu estava desmaiando na escola, porque eu tinha as crises sensoriais, não souberam explicar nada. Eu acredito que foi porque eu fui uma criança que falou muito cedo, com nove meses eu já falava. A minha dificuldade sempre foi motora; eu usei duas botinhas ortopédicas porque eu andava muito nas pontas dos pés, até hoje quando eu estou feliz ou ansiosa eu ando nas pontas dos pés. Especialmente quando eu estou feliz, eu pulo na cama com as pontas dos pés. Eu fui para o ensino médio, foi péssimo, eu sofri muito bullying no porque era perceptível que era muito diferente das outras garotas mesmo que eu imitasse os comportamentos a escola sempre  me deixou sobrecarregada, o tempo todo eu estava sobrecarregada, então eu precisava me isolar um tempo para recarregar, e as pessoas não entendiam que por um tempo eu iria me isolar, mas que depois eu voltava, então eles me acusavam de ser solitária, estranha, diferente, esquisita e eu passei a encontrar refúgio na biblioteca, até aí tudo bem. Só que quando chegou na oitava série, primeiro ano, a escola era muito grande, muitos alunos, eu voltei a desmaiar na hora do intervalo, e isso deixou minha mãe extremamente preocupada. A gente foi ao médico novamente, ele só passou uma vitamina, disse que era anemia mas o exame não acusou anemia. Eu fui para a faculdade, ficar longe da minha mãe na faculdade foi um grande desafio, porque não era na mesma cidade, eu fui e morei com a minha melhor amiga. A minha melhor amiga sempre foi aquele ideal, sempre aceita socialmente, e durante a faculdade estava tudo indo bem, eu estava indo bem na teoria. Eu sou psicóloga, então chegou o estágio clínico e a minha camuflagem caiu, porque como que eu ia imitar o meu paciente? Só estava o meu paciente e eu, e eu estava muito desesperada, porque no caso eu era o refúgio do meu paciente, nós dois na sala, não tinha ninguém para eu imitar, então foi muito desesperador por causa do contato visual, sobrecarga, desabafo, o paciente também usava muitas metáforas que eu não entendia, isso para mim foi muito desafiador, foi muito difícil, eu tive muitas crises, os meus colegas que tiveram três pacientes, eu tive só uma graças a Deus. A minha professora orientadora na época foi muito gentil, me deixou ficar somente com um paciente, isso me ajudou muito porque senão eu teria tido muitas outras crises. Uma colega que estudava comigo sempre falava, Josi vai no psicólogo, Josi vai no psicólogo, e eu não tinha condições de ir até que eu cheguei na minha mãe, falei que eu estava precisando muito, a gente arrumou os orçamentos e eu comecei aí. Logo a minha psicóloga encaminhou para o psiquiatra, e o meu psiquiatra é fantástico, ele é excelente, o filho dele também é autista então ele é especialista no assunto eu acho que desde o primeiro momento que ele me viu, ele deve ter percebido. E foi mágico, foi muito bom, foi fantástico estar com meu psiquiatra, com a minha psicóloga, acredito que eles devem ter trabalhado juntos. Hoje a minha medicação é mínima, eu uso 50 mg, em novembro o psiquiatra disse que vai retirar a medicação e que eu vou continuar com a terapia por causa do treinamento de habilidades sociais, e também por causa do apoio que eu preciso, eu estou muito feliz porque agora que eu saí do armário do autismo eu não uso tanto a camuflagem, só com pessoas desconhecidas, mas em geral quando eu estou com meus amigos, com minha família, eu estou sendo eu mesma aí eu sou muito comunicativa, por causa da inabilidade social eu fingia ser tímida, porque tudo que eu falava era considerado estranho, grosseiro, inadequado pelas pessoas, então agora como as pessoas sabem que eu sou autista, eles até aceitam meu jeito estranho de ser e isso é muito acolhedor para mim.

Tiago: Só uma dúvida que eu tive quando você falou nesse processo. Quanto tempo mais ou menos até fechar o diagnóstico?

Josiane: Olha, eu acredito que foram quatro meses no máximo, foi bem rápido.

Tiago: Eu quero contar a história do meu diagnóstico também. O meu diagnóstico também envolveu um longo processo, um processo até bastante curioso, porque até os 17 anos a palavra autismo não fazia parte do meu vocabulário, eu nem sabia direito, eu pensava autismo como algo próximo da síndrome de Down, então meu desconhecimento era total. E aí ocorreu que eu tive vários processos de infância e porque eu acho que o marcador de processos de infância, e eu acho que o marcador muito bom quando se trata de um diagnóstico clínico com autismo é você observar situações de infância que indicam o diagnóstico, então por exemplo, eu tive muitos indicadores de ecolalia, os comportamentos de estereotipia, eles não eram tão visíveis para mim, mas o ambiente familiar, até as pessoas e familiares percebiam, e a questão da interação social, isso aí era óbvio no ambiente, e foi isso que foi o principal marcador que que me levou ali sobre várias coisas. Um dia na adolescência eu estava lendo na internet sobre várias coisas, comecei a ler sobre diagnósticos, eu fiz um teste da PUC do Rio Grande do Sul chamado temperamento, eu não sei nem se existe ainda, eu fiz em 2013 e era um teste gigantesco que avaliavam coisas da sua infância, você responde o formulário e nesse processo você demora duas horas para responder, são muitas perguntas, e no fim das perguntas só veio um monte de diagnósticos possíveis, e o final a mensagem pra eu procurar um  médico. Tinha atração de ansiedade, depressão, tudo que você imaginar, e tinha um que eu acho bastante curioso, que foi o principal que me fez pesquisar na internet, que é transtorno de personalidade esquizoide, eu li e identifiquei algumas coisas, procurei, e justamente pelo fato de não ter dinheiro na época pra procurar um profissional, eu fui avaliar essa hipótese procurando grupos no Facebook de transtorno esquizoide. Eu lembro que achei um que tinha 15 pessoas, mas eu não me identificava com ninguém esse grupo não via semelhança nenhuma. A diferença que eu vi entre as pessoas que tinham transtorno esquizoide e eu, é que eles tinham uma relação de desprezo com a vida, de raiva e o que eu tinha para necessariamente raiva mas é muito mais uma decepção,uma uma frustração que eu acho que pode se encontrar identificação de outras pessoas dentro do espectro que é de você alcançar um pouco de você querer alcançar algo. Uma psicóloga da instituição que eu estudava falou de imediato que ela não acreditava nessa hipótese, porque para ela não fazia sentido, e aí eu lembro que nesse mesmo grupo uma vez um cara publicou falando assim, olha talvez muitos de vocês que estão aqui dentro desse grupo não tenham transtorno esquizoide, e sim síndrome de Asperger. Aí eu fui pesquisar na internet Síndrome de Asperger o que era, eu vi que tinha uma relação com autismo, pensei autismo ah pelo amor de Deus né, vou tentar saber um pouco mais detalhadamente, aí eu entrei no grupo do Facebook em 2013, se não me engano chamado o grupo Asperger Brasil, que é um dos maiores grupos sobre autismo leve na internet, e neste grupo no mesmo dia eu encontrei um sinal de identificação, as queixas, as perguntas que são feitas nesse grupo são parecidas com as minhas perguntas! Eu pensei ah, agora eu preciso procurar uma ajuda médica, porque autodiagnóstico para mim nunca foi algo que me deixaria confortável. Eu lembro que eu fiz aquele teste que todo mundo faz, que é de um site, o Aspie Quiz faz seu mapa mental e essas coisas. E aí eu encontrei uma psicóloga aqui em Goiânia e entrou o processo de avaliação, coletou coisas da minha rotina, relatos de um amigo meu que gravou um áudio de 14 minutos falando como era a convivência comigo pra ela, então ela primeiro pensou ah, talvez você tenha algum TDAH, depressão, algo do tipo, mas ela continuou o processo aplicando alguns testes que ela tinha que se não me engano ela fez alguns cursos Estados Unidos, e aí os os testes indicaram um pouco probabilidade aí no final desse processo do relatório ela chegou para mim e falou, olha para mim pode ser que seja asperger mesmo, e ela passou para o neurologista, esse neurologista recomeçou todo o processo, então eu tive consultas com ele, depois disso eu fiz um exame de eletroencefalograma né que aquele exame que faz pra identificar se você tem lesões cerebrais, e dessa forma não teve nada, então foram vários meses e aí ele fechou o diagnóstico. Ele inclusive só me deu laudo porque eu tinha uma questão prática com ele, eu pedir gratuidade dos ônibus locais aqui porque né Ia ser algo bastante útil mas de forma geral ele nem achava necessidade de entregar um laudo propriamente dito até porque para você fazer um laudo você tem geralmente uma aplicação né, mas aí depois que esse diagnóstico foi fechado, eu continuei frequentando a comunidade do autismo, entrei na UFG, conheci o Michael, nessa época a gente frequentava o grupo asperger, e a Psiquiatra que me atendia e se não me engano atendia o Michael também na época, chegou para mim e falou, olha eu tô com dúvida do seu diagnóstico porque eu não acho que você seja autista. E aí ela levantou as hipóteses, falou de uma forma bastante gentil, e eu não fiquei chateado por isso, porque eu entendi o diagnóstico clínico, então muitas vezes você precisa testar essa hipótese várias vezes faz você ter uma realidade muito maior, e ela fez o processo todo de novo e depois viu que eu era mesmo, e aí isso até me gerou muito mais segurança, porque quando a gente lançou o introvertendo, eu já tinha esses dois diagnósticos de diferentes profissionais médicos, eu sou autista mesmo e tô falando na internet com segurança de certa forma. Mas eu acho muito curioso, é que a gente tem diferentes casos né, tem o caso por exemplo da Érica, que fez uma leitura até chegar aos profissionais, o meu caso por exemplo, que você já tem digamos assim a hipótese pessoal né, o caso do Michael, que apesar de ter sido um diagnóstico entre aspas rápido, mas já vinha de um processo de tratamento de muitos anos, e tem o caso da Josiane tinha características muito claras desde a infância. e aí eu queria perguntar para você especialmente sobre critérios de diagnóstico. Para vocês, qual é o prazo ideal de um processo de avaliação tão complexo que é o de autismo, e qual é o prazo que você fala, olha, esse prazo é bom, esse diagnóstico é confiável?

Érica: Eu não ligo muito pra essa questão de prazo. Se a pessoa é um especialista, então ela já tem um certo grau de conhecimento né, e assim, eu acho mais importante nem o prazo, é o profissional ter empatia com o paciente, é ele ter um atendimento humanizado, o que eu não tive na maior parte das vezes que eu procurei um especialista, porque o autismo masculino é diferente do feminino, até porque vai ser diferente em coisas e em alguns aspectos bem parecido, então os profissionais também precisam se atualizar, não são todos, mas a maioria é preciso ouvir os pacientes independente de diagnóstico para autismo ou não, tem que saber se portar frente ao paciente e as outras pessoas, não é com arrogância que se demonstra conhecimento, e é o nosso maior assunto da Liga, nós conversamos no dia a dia sobre como a gente sofre com profissional desatualizado, profissional mal educado. Então quando a gente acha um profissional que sabe ouvir a gente, já tá meio caminho andado. Prazo para mim nunca foi importante, a primeira vez que fui num especialista, na segunda consulta eu levei minha mãe e ele fez um questionário com ela, talvez esse tenha sido o caso do Michael também. Conforme ele ia fazendo as perguntas, eu percebi que estava mesmo certa, e que era realmente aquilo.  talvez tenha sido caso do Michael né fazendo o quê eu tava buscando. Ache um profissional que saiba te ouvir, e que queira te ouvir também, um tratamento humanizado, porque isso é básico para qualquer serviço, e que a pessoa se atualize né, não fique só na teoria ali. No caso do autismo, a gente tem prática. E mesmo assim a teoria às vezes dá uma falhadinha, né? Então, acho que é saber ouvir, ter empatia é o primeiro passo para conseguir o diagnóstico.

Josiane: Eu acredito que deve ser um diagnóstico multiprofissional. A pessoa autista deve passar pelo psiquiatra, pelo neurologista, porque o diagnóstico de qualquer forma, rotula a gente, e mesmo que a gente se encontre, mesmo que seja um refúgio, é muito bom a gente ter certeza disso mesmo, porque eu não sei vocês, mas pelo menos eu, quando alguém questiona o meu diagnóstico hoje, eu fico muito irritada, muito estressada porque só eu sei o quanto eu sofri por não saber quem eu era. Então, hoje eu posso afirmar com certeza, você está errada, eu realmente sou autista, eu posso te explicar, porque hoje eu tenho essa certeza, porque eu passei por essa equipe, e eu acho que isso é muito importante, não quanto em relação ao prazo, demorado ou curto prazo, mas acredito que o importante é passar por um equipe de profissionais especialistas, porque existem muitos profissionais que acham que sabem de tudo e não sabem de nada.

Michael: Sim, eu acho que isso que aconteceu com você, Tiago, seria um caso ideal, que você tem o médico que não apenas formule hipótese, mas vá e teste ela pra oferecer realmente isso porque no caso eu tive problema de confiar no meu próprio diagnóstico, mesmo tendo praticamente certeza que eu era autista, porque simplesmente o médico teve certeza demais no diagnóstico, tipo quem conhece sabe, eu sou meio da área das exatas e da ciência da terra, tipo, não é assim que as coisas funcionam, você formou uma hipótese, você tem que testar ela, pra ver se ela está errada. Então, assim, seria bom se o médico verificasse mesmo se é isso, dar certeza pro paciente tipo, não é ele achar que você tem, é ele verificar se você tem, que é o que aconteceu com você, eu acho isso interessante, eu queria pontuar.

Tiago: A Érica e a Joseane falaram uma coisa que eu concordo, que é a questão de você ter uma uma junção vários profissionais, inclusive no meu caso, por exemplo, o neurologista ele teve de certa forma o apoio desse relatório escrito pela psicóloga, e ele também me disse que consultou uma neuropsicóloga também para apresentar o caso, apresentar os exames, pra conversar, tirar essa dúvida, então são vários profissionais envolvidos também, tem essa essa forma de testar, né? O conteúdo.

Michael: Temos que estar trabalhando pelo menos com o médico e um psicólogo.

Tiago: A Érica falou uma coisa sobre a parte teórica e a parte prática. Às vezes eu acho que não é necessariamente a parte teórica que falha, mas assim, é que talvez não se atende uma forma mais séria as diferenças dos novos estudos, né? Porque como eu falei uma vez, eu não lembro em qual episódio ou se foi num material em vídeo do introvertendo, o autismo é uma área muito nova, muito incipiente, se a gente pensa em termos de síndrome de Asperger, entrou no DSM4 em 1994, então aquilo que a gente estabelece, como um fato, digamos assim, né? Mas aí eu queria perguntar principalmente pra Érica e pra Josiane, um tema polêmico, então provavelmente vai ter gente que vai concordar, discordar, mas aqui é pra gente mesmo estabelecer esse debate, eu acho legal. Pra vocês que são mulheres autistas, vocês acham que tem alguma questão de gênero na incidência de diagnósticos?

Érica: Sim, com certeza. Tanto que a gente vê as estatísticas, né, estão mudando e antes eram quatro homens pra uma mulher e agora já está se falando de um e meio pra uma mulher. Justamente por essa de mulher copiar muito o comportamento, as ações das pessoas e eu costumo dizer também que a mulher é criada pra ficar dentro de casa, pra aprender a ser uma dona de casa, uma boa esposa, claro que tá mudando isso também, mas ainda hoje tem essa visão, né? Que a mulher tem cem mil e uma utilidades. Então, meio que dá uma atrapalhada, porque como a gente copia comportamento, a gente passa invisível. Na maioria das vezes, se não for um um autismo assim, bem escancarado, a gente vai levando tanto que eu fui diagnosticada com 35. A mãe do Victor Mendonça, se não me engano. Olha a diferença de idade pra quando se vai descobrir.

Tiago: É. Ela inclusive é jornalista, né? Então, eu entendo um pouco o lado dela, assim, do ponto de vista de você usar a técnica jornalística também nas socializações. Mas assim, você falou sobre essa questão do estudo de um pra de um e meio e se não me engano existem umas controvérsias com relação a isso, porque digamos assim, qual estudo que fala exatamente a questão do um e meio? Porque eu já ouvi falar sobre isso, mas eu nunca fui ir atrás exatamente desse caso do um e meio.

Érica: É assim, eu li mas não lembro de onde foi a fonte. Eu não lembro, mas assim, a pessoa que me passou foi até a Adriana, a mãe da Amanda Pascoal, então eu confio bastante no que elas me enviam pra ler. E assim, eu não me atenho muito onde é que foi, eu leio e pronto, mas eu vou tentar descobrir, depois eu te passo a fonte.

Tiago: Nota do editor. Pessoal, eu tive que interromper aqui neste momento pra falar que eu li esse artigo depois da gravação do episódio e o artigo do qual, né, essa discussão está sendo baseada, não fala absolutamente nada sobre a proporção, hoje em dia, ser mais de um e meio pra um, tá? Muito pelo contrário, a discussão que é feita no artigo é muito mais sobre os critérios de diagnóstico e o fato de mulheres estarem sendo subnotificadas com relação ao diagnóstico de autismo e isso é um consenso, acredito eu, entre todos. Por isso, não vou ficar aqui me alongando, falando porque que pela minha interpreta o artigo não fala nada disso e vou fazer algo melhor. O link do artigo original está aqui. Você abre o artigo faz a sua leitura, interpreta, se você considerar que o artigo que um e meio é a proporção mais correta, a gente pode conversar, discutir, enfim, eu acho que isso seja interessante, mas isso é um assunto pra um episódio inteiro, sabe? É porque, por exemplo, os dois estudos mais respeitados que tiveram nos últimos anos, tem o do quatro por um, que foi nos Estados Unidos em 2000 que eles estabeleceram digamos assim, eles estabeleceram de forma numérica, se não me engano, e aí vocês podem quem estiver ouvindo e falar que eu tô errando alguma coisa, pode corrigir depois, que a gente faz o mais rápido possível, mas até onde eu tinha lido, digamos assim, eles fecharam em vários estados, nos Estados Unidos, a partir de um relatório com vários diagnósticos a incidência numérica são de quatro pra um. E com diferenças também de não só de gênero, mas também com relação a etnia. Então, por exemplo, eles viram que alguns estados tinham mais casos de latinos, de outros estados que eram mais brancos, os Estados Unidos e eles falavam que justamente considerando já a subnotificação de casos de mulheres, o número poderia cair pra três e meio mais ou menos. Aí o Canadá teve um dado parecido, no Canadá em 2018, que também falava de quatro e tem um de 2017, todos eles no no no site introvertendo que fala de três e meio e aí eles falam que, por exemplo, nesses relatórios eles já levam em conta casos de que mulheres eles elas entram em subnotificações, porque assim, às vezes eu vejo algumas pessoas falando desse estudo de forma negativa do quatro pra um, mas esse estudo já fala possibilidade desse número também ser revisado em 2019, 2020 porque existe uma subnotificação de casos de mulheres, e aí a gente não tem dados também de autistas no Brasil, né? Assim, de forma específica com relação ao nosso país, a gente usa dados dos Estados Unidos, do Canadá e tudo mais. 

Michael: Vale lembrar que é como a metodologia científica funciona, você é capaz de fazer uma previsão com base nos seus dados e é o seguinte, pode ser aquela previsão que elas fizeram esteja fora da realidade. É a questão? O autismo, até onde eu sei, não tem uma única origem genética. Tipo. Então, não tem como a gente fazer uma previsão muito confiável, tá? 

Tiago: Então, e outra coisa que eu vi nesses artigos, é que assim, eles focam nos casos de crianças. Então, de certa forma, eles já apresentam o número dos diagnósticos mais recentes, porque agora a gente tá tendo um boom diagnóstico, né, muitos diagnósticos mais precoces, que é diferente da nossa realidade, por exemplo, o Michael mais recente foi 14. É mais recente não, mais precoce aos 14. Então, de certa forma, eu acho que que esses números podem acabar mudando também, até porque se a gente pegar os estudos dos últimos dez anos, houve um aumento também da proporção de autistas em relação a população em geral, né? E o número desses do CDC, que é esse estudo de dois mil e quatorze, que fala de quatro pra um, fala que o autismo ele está em uma a cada cinquenta e nove crianças, que antigamente o número era de um a cada sessenta e oito, então de certa forma pode ser que daqui a três anos, gente como eu, não tão inteirado da cultura dos Estados Unidos, eu olho assim pra cultura brasileira, pro contexto que a gente vive brasileiro e como jornalista, ou seja, não como um um cientista, eu tenho a impressão de que é muito mais difícil, pelo menos assim, do que eu percebo dos casos, que é mais difícil diagnosticar mulheres do que homens, né? 

Érica: Sim, é pela questão, né? A gente tá sempre copiando, imitando, então por isso que tem essa dificuldade e é como você falou da questão de ser subdiagnosticado. Eu fui diagnosticada com depressão, até uma certa idade. E agora, com a saga do diagnóstico, eu tinha uma leve suspeita de TDAH. Então, tem o TDAH, e várias outras meninas do nosso grupo, tem outros tipos de transtornos e foram diagnosticados com esses transtornos. Então, é mais complicado ainda, né. 

Tiago: Às vezes, essas comorbidades levam ao diagnóstico de autismo de certa forma, né? Porque, por exemplo, eu só fui começar a chegar na questão do autismo porque eu trago suspeitas de depressão também. 

Josiane: Depressão é uma comorbidade que é muito comum nos autistas, né? Sempre conversando com os autistas, a gente percebe que praticamente todos que eu converso, eu, Josiane, praticamente todos os autistas que eu conversei, relataram pra mim episódios depressivos. 

Érica: É verdade, hoje a gente estava até comentando isso no nosso grupo, sobre depressão. A gente tem um novo colega que ele também tá se formando em jornalismo e ele quer fazer uma matéria sobre autismo e depressão. E aí, todo mundo lá, né? Ele perguntando quem entrou, olha. Com certeza. O entrevistados no entrevistador, vamos tá nessa nessa matéria. Foi bem engraçado certas coisas, porque quando um pergunta fulano cê sente isso assim, vai todo mundo junto, ah eu também sinto, então tá todo mundo reunido. 

Tiago: Um assunto aqui muito recorrente entre nós quatro é a questão da complexidade do diagnóstico, não só pelo processo, mas também a confiabilidade, a questão pelo fato de ser diagnóstico clínico. E aí a Érica e a Josiane falaram sobre a questão de se ter profissionais, uma equipe de multiprofissionais e o Michael falou da questão de você fazer várias conforme o método científico. Pra vocês, considerando essa esse problema, digamos assim, que a gente tá tendo, principalmente, discussões sobre certos grupos sociais que tem menos diagnósticos. Vocês conseguem ver algum tipo de solução prática a curto prazo que a gente pode pensar e discutir na comunidade do autismo para poder digamos assim rever isso de alguma forma social?

Érica: A princípio, conscientização. Que a gente sempre reforça isso, que tem que mudar essa visão que agora vem de que o autismo é só aquele padrãozinho ali, que todo mundo tem que se enfiar naquela caixinha e pronto e aquilo ali acabou. Tem que mudar, tem que ampliar a visão. Tem que tanto profissionais quanto a sociedade, tem que começar a mudar essa visão de que autista pronto, tem que curar e autismo não tem cura. Então, a princípio como você falou, tem que ser a conscientização, porque só assim que muda. Como você falou no início, você é meio que ficou em dúvida sobre  o que falaram sobre a suspeita de você ser autista. Assim como eu também fiquei a princípio também. Não sei. Mas vamos ver se é isso mesmo, e aí eu fui pesquisar porque a gente tem as informações equivocadas, então é preciso sim informar de forma adequada e é conscientizando as pessoas sobre como realmente é? 

Josiane: E só da gente hoje, agora, sobre esse episódio, é uma forma de conscientização, eu acho que nós, como autistas adultos, considerados funcionais, porque na minha opinião, todo ser humano é funcional na medida do que consegue fazer, não existe uma pessoa que não é funcional. Todo ser humano é funcional, na medida do que consegue fazer, na minha opinião, então eu acho que nós autistas nós temos sim como obrigação, entendam a obrigação entre aspas, de nos expor para ajudar os próximos autistas que estão vindo. A gente pode ser representatividade, a representatividade que a gente não teve. Eu fico muito feliz porque muitos pais vêm falar comigo, mandam vídeo dos filhos, ainda mais pais de meninas, enviaram vídeo da filha cantando, tal, eu conversei com a menina, falei que era linda, falei que ela era inteligente e ia estudar, que ela ia ser qualquer coisa, eles ficaram tão felizes e eu fiquei mais feliz ainda de poder ser a representatividade que eu não tive, porque eu sempre procurei me camuflar e imitar, porque pensei, poxa, eu eu sou assim diferente, mas aquela pessoa também é diferente, aquela pessoa é isso, isso e aquilo. Não, nunca foi assim. Então, eu acho que a gente tá fazendo isso aqui hoje, essa forma de divulgação, é uma forma de conscientização e aceitação do autismo, porque o autismo não é doença e as pessoas autistas podem fazer qualquer coisa, inclusive autistas severos, eu, por exemplo, eu sou muito fã da Carly, não sei se você conhece, é uma autista severa, norte-americana, ela é não verbal, ela é repórter, utiliza tecnologia alternativa, comunicação alternativa. Então, qualquer coisa é possível, eu acho que as pessoas têm muita psicofobia, inclusive os profissionais, muita discriminação e preconceito, por isso que nos acusam. Porque faz isso, ah não é autista porque faz isso, mas quem disse o que o autista não pode fazer, gente? Eu fico muito irritada por causa dessa afirmação, não é autista, porque eles nos acusam de não sermos autistas porque a gente se esforça e faz qualquer coisa e a gente pode fazer qualquer coisa.

Tiago: Eu queria perguntar agora pra vocês, uma coisa que talvez vá de outro lado da situação, que é o seguinte, vocês já encararam com a situação de vocês falarem sobre o seu diagnóstico, e as pessoas reagirem assim, ah, eu acho que eu tenho isso? Às vezes eu tenho impressão que tem esse lado da subnotificação, da dificuldade,  em termos de processo médico, mas também há uma ideia de autismo como algo, sei lá, diretamente com a cultura pop. TDAH pode ter sido a quinze, dez anos assim. Vocês tem um pouco de receio com com essa forma que as pessoas às vezes lidam assim, como se autismo fosse algo 100% simples e “ah eu acho que eu tenho isso” também?

Josiane: Sim. Isso acontece muito. Quando eu contei pra vó do meu namorado, porque pra ela minha forma de ser, porque ela sai muito, ela vai em forró e eu sou uma pessoa jovem, eu não gosto de festa, não gosto de barulho e aí ela ficava implicando, “Mas minha filha, eu saio mais que você!”. Aí eu fui explicar pra ela que eu gosto, que eu sou feliz e que eu achava muito bom quando ela saia, porque aí eu ficava sozinha e que ficar sozinha é ótimo. E aí eu contei pra ela do autismo, sabe? Da dificuldade de comunicação. E quando eu falei da inabilidade social, ela olhou pra mim e falou, minha filha, eu acho que eu tenho isso, porque eu estou em grupo, eu fico com vergonha de falar, eu só balanço a cabeça assim, eu falei, nossa, cê num tem noção do que você tá pensando. Eu respirei, expliquei pra ela todo o complexo do autismo, quanto é difícil ser autista e aí ela compreendeu um pouco melhor, mas às vezes ela ainda fala, minha filha, eu acho que eu tenho aquilo, porque quando eu tô com as minhas amigas, aí conversando sobre tal assunto, eu fico com vergonha de falar, meu Deus do céu. 

Érica: Quando eu comecei, a gente tinha suspeita ainda, ainda estava nessa saga e eu comentei com alguns familiares, que eu fui comentando, ah mas também sou assim e não sou autista, às vezes até é, mas não foi atrás. Como eu tô indo. Até soltaram uma piadinha: “nossa, mas se você for autista, você é uma autista espertinha”. Oi? E fora que quando eu fui no psiquiatra, picareta, teve a cara de pau de olhar pra mim pra falar, é, mas não gostar de ser tocado, muitas pessoas não gostam, não são autistas. Eu disse sim, mas tal coisa, não, você não é autista, você olha nos olhos. Você faz não sei o quê. Ah, vou ter que passar em outro, viu.. 

Josiane: Essa aqui é a minha crítica em relação aos profissionais, eles deveriam investigar, falar ok, ela está falando que é autista, vou investigar. Como que é pra você olhar nos olhos? Te incomoda? Qual é o seu método? Porque eu olho nos olhos, mas depois de uns cinco segundos, quatro segundos, eu desvio porque eu me sinto muito sobrecarregada, até aprendi essa dica com o Akira e aí eu desvio, carrego e olho de novo. Como que vocês fazem? 

Érica: Bom, assim, pra mim não é muito difícil não, né? E como no grupo vocês me chamam de CSI, eu fui aprendendo com seriados investigativos a interpretar expressões faciais, interpretar o comportamento das pessoas, foi ali que eu fui aprendendo, vendo seriado e essa questão de olhar nos olhos e tal, foi no seriado, porque eles falavam na questão do criminoso ser mentiroso. E aí foi explicando, olha, ele olha pra orelha, pro nariz, então posso fazer isso também, as pessoas não vão olhar pra mim diretamente. Então, às vezes eu faço isso, mas hoje tá tá se tornando mais fácil olhar nos olhos, mas é como você falou, depois de cinco, seis segundos eu dou uma desviada porque começa a me incomodar muito, ficar olhando sei lá, né? Aí eu vou rir, a pessoa vai ficar sem graça, né? Porque não sabe nem o que que eu tô fazendo e às vezes eu fico assim muito sem graça também porque tem situações que não é pra rir e eu vejo a parte engraçada daquilo e eu tenho que rir. Sinistro, né? 

Michael: Eu só não olho. Eu sou mais é bem simples, né? Não, eu realmente não consigo, é algo que pra mim mesmo com pessoas que eu tenho muita confiança, sou muito acostumado, eu não consigo ficar olhando no olho mesmo por períodos curtos de tempo, que é algo que quando eu era criança minha mãe fazia isso e é realmente algo que eu não gosto. 

Tiago: Isso me lembro uma vez que eu estava com o Michael no ponto de ônibus e o Michael estava conversando sobre vários assuntos, ele falou um tempo sobre sobre a vontade dele de reviver aves do terror e também falou um pouco sobre política, eu lembro. E foi mais de uma hora que a gente ficou conversando e  a gente não se olhou nos olhos durante um bom tempo. 

Érica: Se fosse com a gente, vocês tinham olhado.

Josiane: Dar uma olhadinha. Já me acusaram de estar flertando, eu nem sei se esse negócio de olhar, depois desviar, as pessoas acham que é flerte, mas na real eu eu nem sei fazer isso, é porque eu desvio, porque eu estou incomodada, não é um flerte.

Tiago: Eu acho que tem uma uma questão que eu não sei se vocês se identificam. Mas assim, eu não tenho, eu não tinha ou pelo menos eu ainda não tenho uma visão específica sobre os meus comportamentos do ponto de vista de conseguir relacionar isso com autismo. Então, por exemplo, uma coisa que eu já conversei hoje, eu não tenho dúvidas porque porque, enfim, as evidências são bastante significativas. Mas, por exemplo, eu não tinha noção sobre essa questão dos olhos, por exemplo, nunca foi algo que eu parei pra perceber e ter essa percepção pessoal. Eu acho que é por isso que no processo do diagnóstico também, uma coisa que talvez seja muito importante de falar, que é o peso da fala, do do familiar, porque você tem períodos, processos da sua vida, que você sozinho, você não tem como você falar por si mesmo assim do ponto de vista de você falar com uma propriedade com detalhes sobre processos da sua vida, porque, por exemplo, você não vai conseguir falar sobre de comportamentos, de coisas, de quando você tinha dois, três anos, cadê sua memória nem atinge. E aí, nesse momento é importante a presença dos pais, de familiares pra essa construção, digamos narrativa da sua própria vida, que é algo que você nem você mesmo tem tanto controle sobre isso, vocês tiveram um pouco disso? 

Érica: Bom, assim, eu sempre tive uma memória boa, né? Então, eu lembro de coisas que eu tinha seis meses, eu lembro de coisa quando eu tinha um ano, claro que são flashes, não é uma coisa assim, nossa, se eu lembro do dia tal, e tudo mais, mas eu lembro de certos flashes das minhas lembranças de certas coisas que eu fazia, eu lembro da minha festa de um ano e eu lembro que eu chorei bastante por causa do barulho de muita gente, eu não consegui olhar pras pessoas. Isso eu lembro claramente, inclusive, eu lembro a roupa que eu vestia no dia. E eu acho bem, assim, interessante, fazer questão da memória. Algumas características eu tinha, só que, né? Passou despercebido, foi de andar na ponta dos pés, sensorial do pescoço tem até hoje, que eu odeio qualquer coisa que encoste no meu pescoço, minha mãe comprava aquelas camisetas de gola, padrão redonda, detesto, não gosto de roupa com manga, sempre regata, porque ou eu tô com muito frio ou com muito calor. Eu chorava demais, chegava assim convite pra ir pra festa de aniversário, eu ficava empolgada, quando chegava na festa, eu começava a chorar, porque tinha muita gente e pessoas estranhas e aí eu entrava em crise que achavam que eu era uma criança chorona, e mesmo que fossem pessoas que eu convivesse no dia a dia e a festa fosse na casa dela, inclusive aconteceu uma vez que era na casa da vizinha. E ela me ofereceu tudo que tinha na festa, e eu não queria nada, só chorava que iria ir pra casa. Meu irmão me levou pra casa, quando eu cheguei em casa eu queria comer o que me ofereceram. Então, foi assim, bem complicado certas coisas, né? Então, passa despercebido, porque ou a gente é taxado de tímido, chorão, ou mimado e isso é o que dificulta também. 

Josiane: Ainda mais se é uma criança, menina, né? Porque a criança menina isola é porque é tímida, agora já o garoto não está brincando com outros garotos, né? Esse isola aí tem alguma coisa errada; e também a forma de manifestar o autismo, porque o menino tem a tendência de ser mais agressivo, explosivo, e a gente que é mulher, tem a tendência de se isolar.

Tiago: E no seu caso Michael, que você foi diagnosticado mais cedo, o discurso familiar, digamos assim, foi um peso importante no diagnóstico?

Michael: No meu caso não, porque como eu falei, se teve alguma coisa na minha infância que deu ou eu não tinha marcas de estereótipos quando eu era mais novo ou minha família simplesmente não percebeu elas, porque eles simplesmente não perceberam nada de diferente. No meu caso, a minha família não ajudou no diagnóstico porque realmente não tinham nenhuma informação que pudesse usar, tipo, nesse sentido. 

Tiago: Por fim, para quem tá ouvindo nosso episódio e provavelmente talvez possa estar dentro de um processo de diagnóstico de avaliação, eu queria que vocês falassem algo que vocês acham que sejam que seja relevante, ser dito pra pra esse tipo de pessoa que tá passando por esse processo de hipótese, de avaliação de diagnóstico. 

Érica: A princípio a primeira coisa que fazer é se suspeitou, dá uma pesquisada, vê se identifica mesmo. Se identifica vai atrás de profissional, se o profissional não tá te atendendo bem, procura outro porque o processo é desgastante, enfim e ficar meio que discutindo com o profissional não adianta, manter a calma, não ficar estressado, ansioso demais, porque lógico que vai ficar ansioso, angustiado, mas  é tentar levar isso de uma forma mais leve, porque não vai adiantar, né? Se estressar demais, ficar ansioso demais. E e isso acaba deixando a gente muito mal durante essa saga toda do diagnóstico. Então, tentar levar ao máximo com mais leveza e tranquilidade, que dá tudo certo. Sem desistir.

Josiane: Bom, a minha sugestão é que durante a saga do diagnóstico, como a Érica sempre falou, muito complicado, é difícil, traz sofrimento. Então, é importante se manter em psicoterapia pra ter o apoio, e além disso ir em profissionais que realizam diagnósticos profissionais especialistas em autismo. Eu tive a sorte e o privilégio, na verdade, é um privilégio, porque o meu psiquiatra, além de ser especialista em TEA, possui filho autista e além disso, ele contou-me que teve um professor que deu aula pra ele na faculdade autista e hoje esse professor é psiquiatra. Então, ele teve muito contato com isso. Então, eu acredito que também por isso que quando meu psiquiatra e minha psicóloga trocaram informações foi mais tranquilo. Então, se vocês estão atrás de um diagnóstico ou de alguma dúvida, vão em especialistas, independente da comorbidade, do transtorno é sempre bom em uma pessoa especialistas porque existem variados transtornos variadas patologias e algumas podem se confundir mesmo. Se você é pai ou mãe e você suspeita de que seu filho tem autismo Não perca tempo, quanto mais cedo o diagnóstico, melhor pra criança facilita muito pra vida da pessoa ficar sabendo lidar com o que ela tem e pra você também. Minha mãe foi a minha primeira professora, que foi um outro privilégio que eu tive e ela sempre incentivou, desde pequena. Quando ela percebeu a minha dificuldade social, ela abriu conta no mercadinho de casa,  e eu tinha que ir sozinha e como recompensa, eu poderia comprar o que eu quisesse no mercado, desde que eu fosse sozinha, falasse bom dia pra atendente, comprasse e assinasse. E ela sempre falava, Josi, você consegue, pode ir sozinha. Apresentação de trabalho, tudo, qualquer coisa. Ela sempre falou, você consegue sozinha. Então, se você percebe a vulnerabilidade do seu filho, se você percebe a inocência, que é a cegueira social, incentiva seu filho, nunca diga que ele é incapaz ou proteja demais, porque um dia o seu filho ficará sem você, então, incentive. Acredite nele, porque especialmente eu; tudo que eu sou hoje é da minha mãe, porque ela sempre acreditou em mim e hoje mesmo eu estou sozinha, eu estou na minha pós-graduação, estou dividindo um quarto com duas colegas que eu não conhecia, uma eu conheci hoje, então são pessoas estranhas e eu estou aqui no quarto, elas foram pro shopping, eu não quis sair, e a minha mãe até chorou na rodoviária, porque ela ficou muito emocionada por eu estar vindo sozinha, indo sozinha, e isso só é possível porque ela acreditou em mim. E se eu percebi que ela acreditou, eu tentei e eu consegui. E então é isso. Acreditem nos seus filhos.

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