Se você é daquelas pessoas que nunca tiveram uma relação totalmente positiva com as comemorações de fim de ano, como Natal e a virada, talvez vai se identificar com um episódio cheio de histórias e comentários negativos! Aqui falamos sobre a comida, família, lugares para passar a virada, as canções natalinas e as retrospectivas midiáticas de ano.
Participam desse episódio Marcos Carnielo Neto, Otavio Crosara e Tiago Abreu.
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo, essa produção que é feita por pessoas com Síndrome de Asperger, dentro do espectro autista para toda a comunidade. E hoje é dia de falar de uvas passas, fogos de artifício, crianças gritando e muito sofrimento. Estou aqui com Marcos mais uma vez.
Marcos: Oi, eu sou Marcos e hoje a gente vai reviver os traumas do passado sobre as festas de família, que são problemas não só para os aspies, mas para as pessoas em geral. Então vamos compartilhar o nosso sofrimento hoje.
Otavio: Meu nome é Otavio, eu gosto de festas eu não sei porque, mesmo sendo avesso ao contato social eu amo interagir com a minha família.
Tiago: Para você que quer boicotar qualquer tipo de festa, emitir opinião ou praticar outros serviços, é só enviar a gente uma mensagem. Vamos lá.
Bloco de discussão
Marcos: Vamos começar desde a época da infância. A pior época de todas para a gente que é autista é a época da infância, das festas de família, que a família arrasta a gente para ver parente no final de ano e ter que ficar olhando para cara de parente que você só vê no final do ano e fica te perguntando: “Como é que você tá? Vem aqui falar oi com todo mundo!”. Você tem que cumprimentar 300 pessoas que você não se sente confortável. “Você é filho do fulano de tal?”. É aquelas histórias, lorotas…
Otavio: Festas familiares sempre foi uma atividade que gostei muito a vida inteira. Eu tenho três núcleos familiares (minha mãe, meu padrasto e meu pai) e eu gosto muito de todos eles. Sempre me dei bem, sempre quis participar das festividades, sabe? Eram muito alegres, eram muito divertidas e, para mim que vivia naquela rotina casa-escola, era uma boa forma de quebrar a rotina do ano.
Tiago: Virada de ano sempre foi algo fundamental para você ou para você nunca fez muita diferença?
Marcos: Para mim sempre foi uma época traumática, porque era sempre a época de perceber o tanto que o ano foi uma desgraça e você é a própria derrota na vida. É o momento do ano que todo mundo joga na sua cara que você é um fracasso completo. Eu me cobrava e ainda me cobro todo final de ano. É a parte mais deprimente do ano exatamente por perceber que o ano foi horrível e nada de legal e interessante acontece e que a gente ainda está na pobreza comemorando com um Chester ao invés de peru.
Otavio: Talvez seja pela síndrome, mas estranhamente eu nunca me senti assim. Eu me sinto um fracasso quando eu me falo. Nas festas de fim de ano todo mundo perguntava como é que eu estava no colégio e eu falava: “Tá bem”. Estava bem. Era uma coisa muito amistosa. Eu aprendi muitas coisas. Aprendi a jogar xadrez, poker e bete em uma festa familiar e eu comecei a aprender inglês em uma festa familiar porque eu tinha alguns parentes mais velhos que queriam conversar sobre algum assunto que eles não queriam os mais novos ouvissem.
Marcos: Mas então sua família está bem diferente do padrão brasileiro, então seu caso não representa todo mundo, acho que nem o pessoal que nos ouve.
Otavio: É, mais ou menos assim. Acho que o principal é que, nas três famílias que eu tenho, eu sempre fui muito amado. Eu sempre conversei demais com todo mundo, todo mundo me ouvia e eu ouvia todo mundo. Então havia uma comunicação muito boa comigo e meus parentes. Eu ainda acho que isso foi um dos fatores decisivos para eu ser a pessoa que eu sou hoje.
Marcos: Claro, parentes são fatores decisivos em quem você é hoje. Porque a desgraça que eles jogam em cima da gente, todas as cobranças e merdas que eles falam por trás constroem o caráter da pessoa.
Tiago: No meu caso, quando eu era criança e começava por exemplo um novo ciclo escolar ou mais uma série, eu sempre ficava pensando: “Nossa, uma turma nova, vou fazer amigos”. Em menos de um mês depois, tava todo mundo me odiando e querendo me bater. Então a conclusão era bastante negativa em todo o início de ano. Mas eu comecei a dar um pouco mais de valor nesta questão da virada do ano e das mudanças só quando eu estava um pouco mais velho e comecei a criar significados para isso. Então toda virada de ano era juntada com expectativa do que poderia ser feito no ano seguinte e também tinha um sentido de retrospectiva. Isso também vai se relacionando com outras retrospectivas, como música, coisas que a gente aprende. Aquele período entre 25 de dezembro até o final do ano é o período para você criar uma retrospectiva pessoal de tudo.
Marcos: O final do ano era deprimente para mim exatamente por eu não estar num lugar interessante. É sempre uma cidade pequena e horrível que eu odeio ou vendo fogos de artifício trancado numa grade da janela de casa em Anápolis, o que é horrível. Então todo final de ano também vem aquela angústia de não estar comemorando o ano novo numa cidade interessante como Sydney ou Londres. Não, estou aqui nessa caralha de lugar vendo aqueles fogos chatos brancos que assustam cachorro e deixa a gente nervoso por serem altos demais e sem graça. A única vantagem dessas festas de final de ano é a comida. É a única coisa que todo mundo concorda. Ultimamente nossa família parou de comemorar com parentes e tá sendo bem melhor agora porque a gente acaba comendo a comida sem ter que precisar interagir com aquele tanto de gente que me estressa para caramba. Depois que eu que eu virei ateu de vez mesmo e perdi a religiosidade, o natal perdeu completamente a graça e o significado. Então passou a ser só mais uma desculpa para comer peru, sobremesas e frutas gostosas no final do ano. Não aquele tipo de peru que nunca dou sorte de conseguir… (risos).
Tiago: Sobre a questão da comida, eu acho muito interessante nesses momentos que, se você não sair de barriga cheia mesmo durante uma briga de família, você não se realizou.
Marcos: Brigas de família. Esse é um problema de festa de final de ano que parece que tem famílias que adoram deixar o barraco para o final do ano para deixar a gente mais desconfortável. É sempre as cobranças: “O que você fez da vida? Você continua o fracasso de sempre? Seu primo já tá fazendo neurocirurgia na Holanda, trabalhando na multinacional poderosa e você, fracassado, só reprovando na faculdade e enrolando sem trabalhar”. Ultimamente eu acho que parente já caiu na real e nem me incomoda mais com essas perguntas chatas, então foda-se.
Tiago: Esses dias eu estava parando para pensar que meus parentes não chegam para mim fazendo essas perguntas. Aí fiquei pensando, será que não sou eu “primo chato”?
Marcos: Eles são realistas né, querido, já sabem a peça. Não vão ficar perguntando de namoradinha, emprego e tudo mais. Ser aspie é triste porque a gente nunca tem uma vida interessante para falar para as outras pessoas. A nossa vida acontece totalmente dentro da nossa cabeça, então a gente chega no final do ano e nunca tem nada de interessante para falar. A gente é sempre o primo chato sem graça nas festas. Por isso que eu nem faço questão mais.
Tiago: Eu só preciso fazer uma observação. Quando eu falo de ser “primo chato”, falo no sentido de você alcançar metas e os seus primos terem que ouvir que você alcançou aquilo e que eles são fracassados. Você já teve essa sensação?
Otavio: Já, só que eu nunca fui de jogar isso na cara, sabe?
Marcos: No meu caso, se eu fosse visto assim, acho que as pessoas estariam com uma ideia super errada de mim e estão se iludindo na vida. Provavelmente aconteceu, mas com as criancinhas de 10 anos que não entendem nada da vida mesmo.
Tiago: Uma coisa que a gente não falou é sobre amigo secreto as pessoas que inventam e fazer comemoração de amigo secreto e isso não só em natal e ano novo, mas no final de ano, seja no trabalho, na universidade, é todo mundo fazendo amigo secreto. E eu não consigo entender. Amigo secreto para mim é um dos piores coisas que existem feitas entre neurotípicos.
Marcos: E eu acho que esse é um sentimento de neurotípicos também. Eu acho que todo mundo está de saco cheio de amigo secreto ou amigo oculto. As pessoas sempre tem aquela impressão que dá presente bom e recebe presente ruim. Então meu conselho para pessoas que estão a fazer amigo secreto: Não faça. É só dizer não e não participar dessa porcaria, porque em muitos lugares ainda é opcional. Ou se você gosta, pelo menos faça entre amigos e dê presentes lixos de propósito pela graça de dar presentes lixos.
Otavio: O nome disso que você falou é amigo da onça, que é uma outra brincadeira na qual eu vou participar daqui uns dias, mas como você falou o amigo secreto é uma ideia para tentar fazer a festividade menos torturante e acaba piorando. Você quer tornar o negócio menos torturante? Primeiro, arruma um videogame para as crianças, com vários jogos. Dê outro videogame para os adultos com vários jogos, uma mesa de sinuca e uma mesa de ping pong. Não conversa, gente. Vocês não querem conversar. Faz um Clube da Luta! Que tal?
Tiago: Eu acho muito engraçado esse termo “amigo oculto”, porque sempre me lembra alguma coisa de demônio (risos).
Marcos: Seria maravilhoso agora se a gente fizesse no final do ano mesmo um amigo oculto. A gente pega um tabuleiro de ouija e vamos invocar demônios. Isso seria um amigo oculto que valeria a pena jogar.
Tiago: Agora voltando um pouco de seriedade, mas fora da seriedade, o melhor amigo secreto que eu participei de final de ano foi um da escola na quarta série em que eu pedi para ganhar um CD virgem que custava 2 reais. E foi a melhor coisa na minha vida que eu ganhei. E outra coisa já fora de moda, que as pessoas estão começando a parar com isso porque já viram que não tem graça, é as piadas do tio do pavê e aquela piada “só no ano que vem”.
Otavio: Não acho graça, mas eu nunca tive um tiozão que fez essas piadas. A piada do ano que vem eu fazia.
Marcos: Eu acho que todo mundo já chegou no consenso que ninguém aguenta mais essas piadinhas sem graça do ano novo. Então, por favor, não seja o tiozão do pavê.
Tiago: E para fechar essa parte da família, eu acho que um aspecto de frustração muito grande, principalmente com relação às mulheres, são as metas de emagrecimento que não foram alcançadas.
Otavio: Não só mulheres, eu também.
Marcos: Eu acho que o importante, na verdade, é a mídia popular se dissociar dessas ideias de que todo ano a pessoa tem que se sentir mal por ter um corpo que não se encaixa nos padrões da sociedade. Mentira, que eu chego no final do ano sempre querendo ganhar peso na academia (risos). Mas é verdade. Eu acho que a gente tem que começar a largar a ideia de que todo ano a gente tem que começar a tentar parecer com padrão novo que é determinado na sociedade. Tem que acabar com essa associação de fitness e começo de ano.
Otavio: Quem tá feliz não compra, quem tá feliz não gasta.
Tiago: Natal chegou, tá aquelas festinhas, a cidade toda decorada. O que vocês acham de decoração de natal e esse padrão estadunidense vindo para esse calor infernal de verão em pleno mês de dezembro?
Otavio: Eu acho que valeria muito a mais a pena usar o dinheiro que a gente gasta com ar condicionado. Me atrapalha dormir também, porque eu gosto e quero estar no escuro para dormir, entendeu?
Marcos: Com essas decorações todas vem a questão da sensibilidade sensorial nossa e como que a gente tem que lidar com aqueles de aqueles jingles tocados por carros de som a uma altura absurda nas ruas. A luz forte não me incomoda, mas o Otavio acabou de reclamar então obviamente tem gente se incomoda com aquilo. E eu acho que realmente decoração de natal é algo extremamente desnecessário, especialmente num país igual o Brasil que você poderia gastar esse dinheiro com outra coisa mais importante.
Tiago: Quando você junta tudo isso com o ambiente dos shoppings lotados (porque as pessoas estão para gastar seu 13º salário), esses lugares ficam impossíveis de serem visitados. Não só shoppings, mas também os lugares mais abertos como praças que estão todas decoradas. Há aquela questão do espírito natalino, que as pessoas conversam mais entre si e isso é um inferno para nós.
Otavio: Eu já combinei com a minha família que ninguém vai receber meu presente meu antes do dia 25 ou no dia 25. Não haverá presente de natal. Eu sou o presente.
Marcos: É verdade que eu não vou dar presente, mas no meu caso é por não ter dinheiro mesmo (risos). A gente não quer aderir à cultura consumista do capitalismo desenfreado natalino.
Tiago: Mas eu acho que a coisa mais triste com relação a efeitos de comemorações de natal e ano-novo chama-se animais fugindo dos fogos, principalmente cachorros. Toda virada de ano você sempre vê cães perdidos que fugiram da casa do seu vizinho porque se assustaram com os fogos e nunca mais voltaram para casa.
Marcos: Essa questão de fogos de artifício é bastante ruim para muitas pessoas no espectro autista porque o barulho incomoda bastante, principalmente se o show não for interessante visualmente para compensar o barulho insuportável. Então se você mora no interior e o show consiste na maior parte daqueles fogos chatos brancos que fazem um som dos infernos maior que a onda de choque de Hiroshima, incomoda para caramba. E eu geralmente vou junto com o cachorro pra ficar no canto escondido e evitar o barulho horroroso de fogos malfeitos. Acho que só vale a pena encarar se for um lugar específico em que tem um show pirotécnico, tipo lá na praia de Florianópolis.
Tiago: Agora nós vamos falar sobre músicas de natal que ninguém mais aguenta. E a gente tem que começar com o álbum 25 de Dezembro, lançado pela cantora Simone no ano de 1995, que traz a canção “Então É Natal”, “Bate o Sino” e todas as outras músicas que ninguém mais aguenta. Por favor, não coloque isso na sua playlist.
Marcos: Na verdade não coloque nenhum jingle saturado de natal por favor, independente de ser brasileiro, da Simone ou do caralho que seja, não importa. Eu acho que todo mundo já está de saco cheio e a única coisa boa que não satura nunca no Natal é o Grinch. Quando você cresce você vê porque ele queria morar sozinho e isolado odiando todo mundo com um cachorro numa caverna no meio do nada.
Otavio: Eu sempre lembro o Show da Virada e eu nunca vi um playback tão grande na minha vida. São todos os músicos usando playback.
Tiago: E as coletâneas de Natal no geral são muito ruins. Se você pegar esses álbuns natalinos junto com coletâneas feitas por gravadoras que juntam artistas aleatórios que nunca tiveram uma certa intimidade entre si, por exemplo, padres e pastores cantando juntos, você vê além de tudo. E é o mesmo repertório, todas essas músicas batidas. Eu acho que seria muito interessante músicas autorais e as únicas músicas de natal autorais que a gente tem no Brasil são as músicas evangélicas, os discos de natal evangélicos. Então quem não é uma pessoa protestante não tem opção que seja realmente interessante. O internacional é praticamente a mesma coisa. Temos o natal pop, que são os artistas da música pop como Justin Bieber e Ariana Grande regravando músicas na base electropop ou o natal clássico que existe alguma coisa interessante tipo Jackson 5.
Marcos: Eu só queria dizer que o pessoal não precisa associar natal com música. Não tem essa necessidade. O Natal não tem significado para um monte de pessoas, ainda mais uma sociedade em que o número de pessoas sem religião estão aumentando cada vez mais. Então qualquer forçação na indústria da música para mim é só parte da campanha capitalista consumista para forçar isso e tirar dinheiro das massas.
Tiago: Mas a arte, num sentido musical, às vezes pode dar uma acompanhada em relação ao que é discutido no mundo. Você pode fazer um disco de ódio ao natal. E eu acho que a música brasileira não tá bem representada ainda no contexto de natal. Eu nunca vi um disco de natal de funk, discos indie de natal pelo menos de músicas que você fale com você odeia o natal ou que você é indiferente. Hoje a gente tava no restaurante universitário e tava tocando isso pagode natalino, eu achei muito engraçado. Eu não ouço músicas natalinas mas eu acho que seria legal essa versatilidade. E eu, que trabalho com curadoria de música, tenho dificuldade de montar playlists. E isso desemboca no show do Roberto Carlos que é sempre o mesmo repertório . Ele é um ele é um artista de obra relevante. Só que ele tem tipo 50 discos e toca as mesmas 10 músicas há 30 anos.
Marcos: Quem que assiste televisão hoje em dia no final de ano? Sério. Eu acho que deviam tirar o Roberto Carlos do show de final de ano porque eu não aguento mais aquele velho insuportável e colocar a Tati Quebra Barraco lá cantando funk. E retrospectiva é uma das partes de final de ano que a mídia tem que lembrar todas as desgraças que aconteceram no mundo e você fica pensando: “Caralho, como que a gente chegou vivo até hoje?” Teve tsunami lá na puta que pariu, um furacão destruiu metade do Caribe, aí na área da política aí você fala: “Caralho, eu preferiria um furacão ou terremoto do que essa desgraça do Congresso Nacional”. Ou seja, retrospectiva só serve para desgraçar o seu estado emocional que já tá abalado por causa das festas de final de ano. Não liga a televisão, simplesmente isso. Eu prefiro assistir Netflix no celular que é bem melhor.
Tiago: E a canção popular de 2018 mais importante do ano para mim foi “Cai de Boca” da MC Rebecca.
Marcos: Sim, “Cai de boca no meu bucetão” seria o jingle perfeito para tocar nas famílias e afrontar a família tradicional brasileira nas festas de final de ano.