Introvertendo 256 – Autistas na Escola

Uma das principais preocupações de familiares de autistas diz respeito a experiência escolar. Isso porque o ambiente da escola, em muitos casos, é o primeiro lugar onde as pessoas percebem um desenvolvimento diferente da média. Isso faz com que haja barreiras de aprendizagem, dificuldade na interação social com outras crianças, e até problemas de bullying. Neste episódio, nossos podcasters relembram suas vivências escolares no ensino infantil e fundamental e a relação do autismo com tudo isso. Participam: Carol Cardoso, Luca Nolasco, Tiago Abreu e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Luca: Sejam bem-vindos ao podcast Introvertendo, um podcast sobre autismo. Hoje sou eu novamente, Luca Nolasco que vou apresentar e é o episódio sobre autistas na escola.

Willian: Eu sou Willian Chimura, youtuber, um ativista também pelos direitos dos autistas e tem sido um prazer gravar aqui no Introvertendo especialmente este último episódio aqui de podcast. Como sabemos, a escola pode ser um pouco difícil para autistas e espero que essa seja uma discussão muito produtiva hoje.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho 26 anos, sou autista diagnosticada em 2018 e apesar de traumas escolares eu sigo na carreira acadêmica fazendo hoje mestrado em arquitetura na UFMG.

Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, também no espectro do autismo e a escola é um ambiente em que a gente também aprende a sofrer.

Luca: Como vocês já sabem, provavelmente, estamos em uma turnê de despedida do podcast onde teremos vários episódios especiais e esse é um deles. Esse episódio foi sugerido pelo Francisco Paiva Júnior, um queridíssimo lá da Revista Autismo que nos apoia no Padrim. Eu espero que esse episódio seja muito especial porque com certeza vai render diversas histórias interessantes. Lembrando sempre que o Introvertendo é um podcast feito por autistas e produzido pela Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Luca: Durante outros episódios, eu acredito que todos nós em algum momento ou outro já falamos como foi nossa infância, como foi o processo de diagnóstico de cada um aqui. Mas eu quero saber especificamente sobre a escola. Já começando por você Carol, como que você era percebida pelos colegas? Como os professores te tratavam quando você começou a estudar?

Carol: Eu acho que essa pergunta é um pouco difícil, porque nas primeiras fases da minha vida eu tinha uma percepção das outras pessoas muito fragmentada. Mas eu lembro que a minha mãe sempre comentava com as pessoas da minha família como era estranho o meu comportamento na escola em relação ao meu comportamento na família. Porque eu sempre fui uma criança dentro de casa que era meio agressiva, que batia na nas primas, na minha irmã. E na escola eu era absolutamente quieta, não falava quase nada. Não falava com ninguém e as pessoas me batiam e eu não fazia nada, não revidava como eu fazia em casa, por exemplo.

A minha mãe sempre esteve muito presente na minha vida escolar e ela gostava de interagir com as outras mães das coleguinhas. E eu acho que isso me ajudou a ter uma certa proximidade com elas, porque a minha mãe estava falando com as outras mães, as crianças estavam ali, então isso gerava uma certa proximidade. E eu lembro que em relação às professoras, teve uma situação que eu acho hoje muito engraçada. Teve uma professora que uma vez a mãe dela foi e ela foi me apresentar pra essa mãe dela. A professora disse: “olha mãe, essa aqui é a menina que tem dor de barriga todo dia”. Eu aprendi que se eu dissesse que eu estava com dor de barriga, eles iam me tirar da sala.

Então todo dia que eu não queria mais ficar na sala por questões sensoriais e, enfim, outros motivos, era só dizer que eu estava com dor de barriga. Até que eu virei essa pessoa que tem dor de barriga todo dia. E eu lembro também de outros dois comportamentos que hoje me chamam muita atenção era de que eu sempre estava meio que vivendo (eu acho que) aquele estereótipo do autista que vive no mundo dele. Mas pra dar um exemplo disso era que eu criava um universo interno para lidar com o que eu tinha de externo.

Então eu lembro que eu fazia música na minha cabeça com o barulho que eu ouvia das pessoas como uma forma de me distrair das pessoas e lidar com esse excesso que eu sentia. Mas eu acho que a coisa mais interessante dos primeiros anos da minha foi a criação do meu alter ego que hoje leva o nome do meu nome artístico, que é Varusa. Muita gente não sabe de onde veio esse meu nome, Varusa, como meu nome artístico. Mas ele veio da minha infância, dessa primeira fase da infância na escola em que eu criei essa persona que era muito interativa, que era mais comunicativa do que a Carol, por exemplo. Então, tinha certos dias em que tinham surtos de falar muito, de querer conversar e de querer interagir e eu dizia que eu não era Carol, que eu era a Varusa. Não sei de onde veio essa ideia de Varusa, como essa pessoa comunicativa, mas tinha alguns dias em que eu ia pra escola e eu me apresentava pras outras crianças como Varusa e eu chegava em casa e eu dizia: “não, hoje eu não sou a Carol, hoje eu sou a Varusa” e no dia seguinte a Carol voltava e eu voltava a ser essa pessoa que não falava com ninguém.

Luca: Pra você, Willian, como foi esse processo de inserção na escola?

Willian: Bom, no meu caso eu nasci na capital de São Paulo, iniciei os meus estudos em um colégio particular na primeira, segunda série. E aí no meio, se eu não me engano, na verdade da primeira série, a minha família se mudou para uma cidade do interior do estado de São Paulo, que aí era uma cidade bem pequena mesmo do contexto familiar do meu pai e tudo mais. Acabei tendo essa experiência de já nos primeiros anos do ensino fundamental, era uma escola bem conteudista mesmo. Eu lembro que na época eu já sabia fazer operações de multiplicação e enquanto essa nova turma dessa nova escola do interior não havia aprendido ainda esse tipo de operação matemática e tudo mais.

E aí eu lembro que isso acabou contribuindo de certa forma para que eu fosse o aluno interessante da turma que as pessoas tinham curiosidade pra saber como que era a capital, como que era São Paulo, se eu já tinha visto neve, coisas nesse sentido. Foi um choque muito grande pra mim, foi um conflito muito grande na verdade entre um contexto escolar infantil muito complexo de regras complexas que eu não entendia muito porque acontecia, eu já tinha uma certa ansiedade desde os primeiros anos da pré-escola, da primeira série do fundamental, para um contexto que era muito mais acolhedor, que os colegas eram bem mais interessados e isso com certeza me desenvolveu um mínimo de habilidades sociais e uma certa interação social, principalmente porque eu tinha videogame e tudo mais e aquele contexto do interior, apesar dos colegas gostarem de videogame e tal, não era toda a família que tinha naquela época. Então isso acabou sendo um vetor aí de socialização bem grande. Foi uma das decisões mais importantes, eu diria, na verdade, da minha família, no sentido do meu desenvolvimento aí infantil, com certeza foi uma decisão que pesou muito.

E ouvindo o relato da Carol sobre ela ter logo aprendido quando ela estava com dor de barriga e tudo mais, ela era retirada da sala, aí passando com a minha experiência na quarta série, quinta série, sexta série, principalmente do ensino fundamental, eu também fui desenvolvendo essas estratégias. Então é dor de cabeça, era crises de ansiedade, mas apesar de que crise de ansiedade eu tinha crises reais. O sintoma mais concreto eram dores no estômago e tudo mais por conta da ansiedade, justamente dessa quebra de rotina e tal.

Eu notava que os professores, os meus colegas em geral, diferentemente das primeiras séries do fundamental, já nas últimas mais próximas do ensino médio, eles já me notavam como alguém mais nerd, vamos dizer assim. Alguém mais recluso, alguém que sempre tava falando sobre videogames e tal e etc. E também tinha a questão das olimpíadas de matemática e tal que eu acabava gostando bastante desse evento e etc. Então acabava tendo mais essa essa percepção por parte dos meus colegas.

Luca: Só pra contribuir com essas histórias de dor de barriga de vocês, eu também tinha as minhas. Eu era muito mais genérico que vocês dois, só falava “estou passando mal” uma vez por semana pelo menos e voltava pra minha casa. Por muita sorte, tanto a coordenadora da minha escola quanto minha mãe que autorizava a volta eram muito receptivas quanto a isso. Elas sabiam que era bobagem, mas elas entendiam que eu fazia porque era necessário. Eu não conseguia ou não queria estar inserido ali mais do que aquilo, então ou era passar mal ou era ficar isolado na sala de de livros da escola pra não ficar dentro da sala de aula mesmo por algum tempo. Mas e pra você Tiago, como que foi?

Tiago: Minha história é um pouco parecida com a do Willian por ter nascido em São Paulo. Depois eu fui pra Minas, eu entrei na escola com dois anos muito cedo porque eu já falei aqui várias vezes que eu tive problema de desenvolvimento de fala. Então eu tive muitas experiências escolares antes dos sete anos e o meu ensino fundamental foi em maior parte na escola pública em Goiânia. Quando eu estava no ensino infantil, ou seja, essa fase antes do ensino fundamental, eu sempre estava em turmas pequenas, o que permitia também os professores observarem um pouco mais do meu desenvolvimento. E eu fui uma criança que desenvolveu habilidades de escrita muito rápido. Eu era muito bom de leitura. Mas ao mesmo tempo não era tão bom de socialização.

Quando eu morava em Minas Gerais, isso já no início do ensino fundamental, porque eu fiz aí 6 meses mais ou menos antes de ir pra Goiânia, eu já tinha uma fama de ser uma criança muito falante, eu falava pelos cotovelos e aqui vale um aviso: falar muito, interagir muito, não significa interagir bem. Quando eu fui pra Goiânia, houveram vários problemas de adaptação. Eu era um aluno de primeira série, fui colocado na segunda série, então já estava com alunos mais velhos, mas mesmo assim eu não deixei a peteca cair, eu tive boas notas, eu estava indo muito bem nos conteúdos, mas aí começou a ficar aquela contradição: ele é muito inteligente, mas ele não interage com as outras crianças. Logo, ele não quer socializar. E aí começaram a me atribuir várias coisas que eu era arrogante, que eu me achava. Eu sofria bullying, mas eu era o culpado porque eu não sabia ler o ambiente social.

E eu lembro de um momento muito emblemático, que eu fui parar na sala da coordenadora, e ela fez um monólogo bem longo dizendo que eu não seria sozinho pra sempre, que eu tinha que fazer amigos. Basicamente me atribuindo toda a culpa pelas dificuldades que eu tinha. E era um contexto bem chato, eu voltava pra casa sempre triste, eu pedia várias vezes pra mudar de escola, mas não tinha nenhuma opção próxima, então era uma coisa bem complicada até pra minha família de uma forma geral. Eu fiquei nessa escola durante todo o fundamental, algumas coisas obviamente melhoraram, mas outras não mudaram e eu acho que é mais ou menos isso que eu vou falar um pouco depois.

Luca: Já é de senso comum que a hora que todo aluno mais espera na infância é do recreio, porque é quando você vai conversar, vai comer, vai brincar. Mas dado que suas experiências já foram muito únicas, cada uma de vocês foi bem particular, como que era a hora do recreio pra cada um de vocês? Começando pelo Tiago.

Tiago: Eu acho que o recreio, junto com a aula de educação física, são os momentos que você consegue ver que uma pessoa, no caso, autista sem diagnóstico, é diferente. E eu não gostava do recreio. Hoje eu fico pensando retrospectivamente os motivos pelos quais eu não gostava do recreio. Eu acho que o principal deles é porque eu não sabia o que fazer. Durante todos esses anos de ensino fundamental, eu passei por várias fases. Uma delas foi a criação de um telejornal fictício que rodava na minha cabeça em que eu era o âncora e eu ficava vagando pela escola meio que entrevistando o pessoal. Ninguém entendia no geral o que eu estava fazendo, e eu tentava de alguma forma ali fazer parte dos núcleos sociais, mas óbvio que eu não participava de fato. Eu também tive a época que tive cartões telefônicos de orelhão e eu ficava nos orelhões o tempo do recreio inteiro testando se tinha unidades restantes nos cartões que o pessoal me dava, parentes, colegas e etc. Aí teve uma situação que furtaram parte dos meus cartões telefônicos na escola eu parei de fazer isso e aí eu comecei a conversar com o pessoal da limpeza da cantina, quem trabalhava ali no âmbito da escola. Já que não dava certo de conversar, de interagir com crianças, de fazer parte dos grupos, estava conversando com o pessoal mais velho.

E com os anos, eu comecei a adotar a estratégia de ficar vagando pela escola. Então eu ficava fazendo caminhada basicamente sozinho pra lá e pra cá. Só que isso começou a me trazer problemas, porque tinham colegas que implicavam comigo e começaram a fazer bullying durante o momento do recreio. E no final do ensino fundamental eu fui acolhido por um grupo, o grupo dos nerds da sala. E eles me acolheram mais por dó do que qualquer outra coisa e eles deixaram isso bastante claro. E como eu não tinha outra opção, eu aceitei esse ato de dó e fiquei ali entre eles mais ou menos por um ano, um ano e meio.

Carol: Isso que tu falou sobre estar no meio de grupinhos e ainda assim se sentir solitário, eu realmente me identifico muito. Porque durante todos esses anos escolares, tanto do começo da infância como até o ensino médio, eu tinha muita essa sensação, mesmo que eu estivesse em grupo eu me sentia muito solitária. Nessa primeira fase da infância da escola eu tinha certos grupinhos em que eu estava junto, mas eu não conseguia interagir de fato com eles. Não conseguia participar das conversas.

Eu lembro que teve uma vez em que eu vi um grupinho brincando e o meu jeito de estar presente era só correr pra perto deles e ficar lá no meio assim como se eu fizesse parte daquilo. E aí eu saí correndo, fui pra perto deles e só fiquei lá do lado. E aí uma menina não gostou da minha abordagem, mesmo que eu não tivesse falado uma palavra. Isso considerando sou uma pessoa que não teve problema pra falar, então eu falei bem cedo. Mas eu não conseguia verbalizar em ambiente com muitas pessoas. E aí eu cheguei sem falar nada e uma menina não gostou da minha abordagem e ela só empurra a minha cabeça na parede. E aí eu meio que não fiz nada, não chorei nem reclamei nem nada, porque eu não esboçava nenhuma reação quando eu passava por coisas do tipo. Porque eu achava que interagir era isso, eu achava que ter amigos era isso.

E tinha uma outra colega minha que eu tenho quase certeza que ela era autista também porque tinha quase os mesmos comportamentos que eu tinha e as pessoas realmente sempre falavam que a gente era parecida em em comportamento de não falar com ninguém, não falar nada e ela tinha uns tiques também que hoje eu vejo que seria como se fosse esses stims. E a gente passava o recreio juntas e às vezes a mãe dela fazia bolo pra vender e sempre a mãe dela mandava bolo pra ela lanchar na na lancheira. Eu amava aqueles bolos e ela já estava enjoada, porque ela comia tanto. A gente passava o recreio juntas e a gente trocava o nosso lanche da lancheira. Eu acho isso interessante, porque a gente não conversava, a gente não sabia nada da vida uma da outra, mas a gente estava presente juntas interagindo. Então, não eram amigas, mas a gente via uma outra como companhia para suportar essa hora do recreio.

Luca: E pra você, Willian?

Willian: Basicamente nesses anos iniciais do fundamental, acabou sendo um um recreio mais típico. Eu lembro, tenho recordações até de ter tentado participar das mesmas atividades convencionais que as outras crianças. Apesar de nunca ter gostado de futebol, eu lembro de ter tentado algumas vezes justamente por estar tão cativado. Realmente fui muito bem recebido nessa escola. Então tentar qualquer coisa ali que junto com aqueles meus colegas estava sendo muito legal. Tinha atividade como pular corda, amarelinha, ping pong, enfim. Entretanto, não demorou muito para eu já revelar o meu hiperfoco em RPG desde muito cedo, sistematização das coisas, probabilidade básica, com regulagem de dados e enfim. E aí eu comecei a falar sobre RPG com os meus colegas desde a segunda, terceira, quarta série do ensino fundamental.

Eu não sabia que existia D&D ou sistemas de RPG, mas eu sabia o básico das regras do que consistia de RPG e aí eu fui ensinando os meus colegas desde muito cedo e isso perdurou até a quarta série, eu usando o horário do recreio como se fosse um mestre de RPG. E isso era muito legal, era muito bacana, os meus colegas também ali da época gostavam, então tudo certo. Até que eu mudo na quinta série, sexta série e também principalmente que o recreio ali envolvia outros adolescentes, mais velhos e etc. Então isso complexificou muito as minhas interações, até sofrer bullying por conta do RPG no recreio, então já não era a mesma coisa. Eventualmente algum ou outro amigo meu queria ainda jogar RPG e aí eu tentava algumas coisas assim, mas realmente não não era a mesma coisa, certamente nunca foi mais a mesma coisa a partir dessas séries.

Estava as mesas de tênis de mesa ali no intervalo, eu sempre estava ali jogando, mas era um pouco complicado porque sempre tinha um ou outro aluno que queria tirar proveito de mim, porque era a questão da fila. Então, aí alguém roubava a minha vez e tudo mais, eu era sempre muito passivo nesse sentido de evitar conflitos, e eu acabava aceitando. Inevitavelmente eu só aceitava que era assim por volta da oitava série e aí já quase no ensino médio tive a ideia de ter uma interação muito atípica, mas até semelhante ao que o Tiago narrou.

Por conta do meu irmão ter ido no Japão muito cedo e tudo mais, eu tive acesso a algumas tecnologias, então meu irmão havia enviado pra minha família de presente uma câmera. Uma câmera bem básica e tal, ela filmava poucos minutos na verdade, só que eu acabei gostando muito daquela ideia de levar a câmera escondido ali pra escola e na hora do intervalo eu acabava filmando as interações dos meus amigos e tal e as pessoas realmente gostavam. Então no final das contas acabou sendo uma forma de interação bem atípica na verdade, porque eu estava sempre atrás da câmera, mas de repente alguns adolescentes me pediam para filmar eles jogando bola ou coisas nesse sentido. Acabei gostando e acabei conseguindo interagir também de alguma forma por conta da câmera. Mas fora isso, ou não fazia nada ou só ficava na minha no canto quieto esperando o tempo passar ou quando tinha o tênis de mesa jogava o tênis de mesa e era isso. Foi realmente por muitos anos isso e por isso também que eu não gostava muito de ir pra escola claro. E concordo totalmente com o Tiago de que o intervalo e a aula de educação física são os momentos mais complexos do ensino fundamental.

Luca: Minha experiência é até um pouco mais breve aqui e muito contrastante com o Tiago, porque eu não tive nenhuma pessoa antagônica na escola, não tive nenhum uma pessoa que fazia bullying especificamente comigo. Vez ou outra acontecia de uma pessoa tentar ter um comportamento mais próximo de bullying comigo, só que eu tinha um problema durante a infância, que eu perdi o controle, eu parti pra cima e brigava e derrubava a pessoa no soco. Era inevitavelmente suspenso, mas porque eu tinha um ótimo comportamento dentro de sala de aula, os professores geralmente passavam pano pra mim apesar desse comportamento.

O recreio era sempre um um período de tensão, porque eu nunca sabia se alguém iria provocar uma coisa e eu não tinha exatamente um grupo de amigos meus pra ficar sozinho com eles, então eu vagava, eu comia meu lanche, esperava o tempo e voltava pra sala. Até que eu descobri a sala de biblioteca. E aí eu passei três anos todos os dias nessa sala de biblioteca durante os intervalos porque tinha um gibi, tinha menino jogando truco e eu ficava nessa daí até o tempo passar. Foi relativamente rápido isso.

Tiago: Nossa Luca, você destravou uma memória minha que eu também frequentava muito a biblioteca. Essa foi uma das minhas estratégias para lidar com a hora do recreio. Nessa época eu devorei muitos, muitos livros, só que a bibliotecária começou a implicar comigo dizendo que eu passava só o recreio dentro da biblioteca, que eu tinha que interagir com as outras crianças e eu basicamente fiquei “expulso” de lá. Nossa, como eu odeio aquela escola!

Luca: (Risos)

Carol: É, eu também tive essa fase de me esconder no recreio, de me esconder na biblioteca.

Luca: Mas já pegando um pouco a veia da minha experiência desagradável de brigar e alguma coisa assim, é algo que muitas pessoas até se questionam. Vocês chegaram a ter conflitos verbais, físicos, alguma coisa mais direta com as pessoas na sua escola? Você, Tiago.

Tiago: Demais. Eu era a pessoa que estava sempre em conflito. Mas não eram aqueles conflitos óbvios que os alunos mais brigões estabeleciam, às vezes eram coisas até mais sérias. Eu me envolvia bastante em brigas e apanhava em quase todas elas. E o que mais preocupava a minha família principalmente era o fato de que eu não me defendia, eu não reagia de forma a me proteger. A única coisa que eu geralmente fazia era abaixar e colocar a mão na cabeça, tipo NPC de GTA, sabe? Então eu não me impunha nas situações de uma forma geral. Eu tentava sempre correr o máximo possível para escapar daquele lema “eu te pego na saída” e deu certo na maioria das vezes. E como eu sofria bullying, teve alguns contextos que eu tentei reproduzir o bullying que eu sofria. E eu lembro que uma delas eu falei uma coisa com um colega meu e na primeira vez que eu falei ele me desceu de porrada e aí eu nunca mais fiz isso. Anos depois ele se tornou uma companhia, foi uma pessoa bem legal na minha vida.

Mas tem uma história que não é muito legal, que ocorreu mais ou menos em 2007 ou 2008, que eu tinha um colega de turma, que ele não gostava de mim e eu não lembro exatamente quais eram as razões e eu já estudava de manhã. Então, o portão da escola abria às 7 da manhã e antes desse portão abrir os alunos se juntavam em torno daquele portão, então na rua. E eu cheguei na escola umas 6h40min e ele me deu um empurrão. Voltei a conversar com o público como se nada tivesse acontecido. Ocorre que ele continuou. Então ele me deu um empurrão mais forte, depois começou a me agredir e eu não estava me defendendo. Eu virei um saco de pancada. Só que tinha uma escola inteira observando isso, não tinha professor, não tinha ninguém porque estava todo mundo dentro da escola ou era cedo demais pra isso.

A coisa ficou tão séria que uma vizinha da minha mãe viu na rua e saiu correndo, foi acordar ela porque minha mãe geralmente dormia, eu ia pra escola sozinho e ela foi lá e eu fiquei bastante machucado. Esse aluno levou suspensão. Então o meu contexto no geral era isso. Era agressões verbais, obviamente, porque eu era o aluno que tinha uma fama ruim de aluno inteligente que em tese se achava, que muitas vezes tinha até uma imagem de X-9 porque eu falava e fazia coisas que o pessoal não gostava, mas também se estendia a agressões físicas bastante sérias.

Carol: Estou até com vergonha agora de falar porque também já apanhei mas nunca foi nesse nível e eu também tinha essa reação de não reagir (risos). E inclusive ainda tinha um agravante que eu participava de muitas atividades religiosas e uma das coisas que sempre falavam era que a gente tinha que perdoar as pessoas. Eu tinha um raciocínio de que se alguém me batesse, eu tinha que imediatamente perdoar essa pessoa. Então além de eu não reagir, eu já achava que estava tudo bem porque eu deveria automaticamente perdoar essa pessoa. Então várias vezes as pessoas me batiam ou me empurravam ou faziam alguma coisa, gritavam comigo e eu achava que o certo era eu não fazer nada. Porque se eu reagisse eu estaria sendo errada, eu estaria guardando rancor e coisas do tipo. E eu meio que fui feita de saco de pancada real dessas meninas, principalmente meninas que eram aquelas meninas que andavam em grupinho e que não tinham o que fazer e queriam tirar sarro das outras pessoas e às vezes passavam pro lado físico. E eu era o alvo perfeito pra isso, porque eu era esquisita, eu não sabia falar nada e não sabia me defender e também não levava adiante de denunciar porque eu achava que que eu deveria perdoar.

Willian: Eu sofria muitas provocações, mas eram principalmente verbais. Então, eu tinha em geral muito receio mesmo e medo até a tal ponto que eu ficava calculando milimetricamente em quais corredores eu ia passar, quando eu ia passar, eu estava sempre em constante estado de vigilância,. Era frequente isso. Meu colega ali ele é meio imprevisível, ele já praticou bullying comigo antes, ele já tinha falado que ia me bater em algum dia e tal, então eu tenho que ficar muito distante dele e eu tenho que calcular os ambientes que eu vou frequentar para não estar próximo dele. Eu realmente sempre gastava um bom tempo e uma boa energia nisso. A minha estratégia geral para as provocações era ser extremamente passivo, 100% passivo, a tal ponto de realmente nem ter reação. Então era assim, era sem querer uma tentativa de procedimento de extinção hardcore com tudo.

Então por exemplo, começavam as provocações e eu notava que eles tinham outros alunos que também sofriam bullying infelizmente e tal. E eu notava que eles sempre reagiam de certa forma ou faziam cara feia ou pediam para parar e etc e eu desde muito cedo aprendi essa estratégia que é: eu não vou esboçar nenhuma reação, vou simplesmente fingir como se eu não tivesse ouvindo de fato. E é claro que hora ou outra alguém esbarrava em mim ou algo nesse sentido. Só que em geral isso dava certo. Porque eu também combinava isso com as minhas estratégias de estar vigilante para evitar contextos de alunos que possivelmente poderiam fazer alguma agressão ou algo nesse sentido e eu lembro que eu também gostava de desenhar por causa dos RPGs e tal e etc, então lembro de algumas agressões nesse sentido de outros colegas de pegarem meus desenhos rasgarem e tal e eu simplesmente fingia que nada tinha acontecido, nem reagia nem nada. E eu olhava pros meus outros colegas ao lado que estavam presenciando aquilo também olhando e vendo por que aquilo teria acontecido e eu simplesmente voltava a falar normalmente com eles como se nada tivesse acontecido, literalmente ignorando 100%.

Isso não garantiu que 100% das situações eu conseguisse me livrar. Eu tenho uma memória marcante de um dos alunos que eu realmente até hoje não sei, não consigo nem sequer ter uma hipótese do porquê isso aconteceu. Mas eu estava simplesmente voltando do intervalo quando um aluno estava escondido atrás da porta e aí eu passei a porta pra entrar na sala de aula e ele colocou as duas mãos no meu pescoço, me enforcando mesmo contra a parede e tal e etc como o intervalo tinha acabado de se encerrar, a professora ainda não estava em sala de aula tal e etc, e aquilo perdurou por algum tempo, os alunos dando risada daquilo e eu tentando me livrar e tal e etc. E aí a professora chegou, notou aquilo que tinha acontecido, meu pescoço já tinha ficado marcado.

O aluno em questão levou suspensão e nunca soube o porquê isso aconteceu. Nunca soube. E aí de resto nunca mais falei com com esse aluno. Lembro do nome e do sobrenome dele até hoje. Lembro da marca do agasalho que ele costumava usar, a cor e o padrão da mochila, então eu sabia tudo esteticamente falando associado a ele justamente porque eu precisava evitar ele a todo custo. Então esse era um dos alunos que principalmente ali no final do ensino médio de fato começou a me perseguir e tudo mais. Então eu tive algumas situações nesse sentido, mas nunca estive envolvido assim no sentido de agredir outra pessoa, só de realmente ser agredido. Mas eu diria que eu consegui me safar muito. Se eu não tivesse nesse estado de vigilância com certeza eu teria sofrido muito mais agressões do que eu sofri durante meu ensino fundamental, principalmente por causa do meu físico que nunca foi realmente característico de alguém que poderia em um conflito físico me defender e tudo mais, então eu acabava sendo infelizmente um alvo fácil. Por questões estéticas do meu cabelo grande e etc, aparência de nerd e tal, acabava sendo alvo de bullying.

Luca: Vocês acham que a coordenação, os professores e os funcionários poderiam ter feito alguma coisa para ajudar vocês? Ou eles chegaram até a fazer? Por que tudo foi da maneira que foi pra vocês?

Tiago: Recapitulando o que eu disse no início do episódio, eu sinto que os professores davam coro a exclusão que eu sofria. Eles trabalhavam na seguinte lógica: se ele tem boas habilidades acadêmicas, logo é ele que provoca todas as situações que ele passa. E eu acho isso muito ilustrativo pra gente pensar que muitas vezes há na internet aquela imagem de que o autista é um ser legal, um ser bonito, um ser admirável. Mas no dia a dia das escolas eu arriscaria dizer que a grande parte dos autistas não são vistos assim de uma forma positiva. E eu vejo que a gente precisa de estratégias melhores para lidar com bullying e outras formas de discriminação. E por que outras formas de discriminação? Porque existe um vício das pessoas acharem que é autista são apenas autistas. Mas nós temos uma classe social, nós temos cor, nós temos gênero, nós temos várias outras características que fazem com que nem tudo seja o autismo. Por exemplo, um autista que é gordo, muitas coisas que ele pode passar dentro do ambiente da escola vão estar mais relacionados com o fato dele ser gordo do que necessariamente ser autista. E a gente precisa ter essa nuance pra observar.

Eu acho que é muito complexo fazer isso. Porque quando você é autista e não tem um diagnóstico e você está no ambiente da escola, principalmente nós que somos dessa geração que não fomos alcançados por um diagnóstico precoce, é muito fácil ver essas crianças e pensar assim: “ah é tudo mal criado” ou uma falha de caráter. E nesse sentido, eu acho que faltou um melhor acompanhamento do processo de socialização. E baseado em tudo que eu disse, eu não sei se treinar professores pro autismo é suficiente.

Willian: Com certeza concordo. Na verdade o bullying ele precisa de uma abordagem sistêmica. Então é aquele clássico que é: “ah eu vou chamar a sua mãe aqui”. O aluno ali naquela situação que fez que praticou algum bullying ou algum tipo de violência, discriminação, OK ele pode se sentir envergonhado naquele momento, consigo entender como a escola pode pensar que isso pode “corrigir” o comportamento do aluno. Mas no final das contas o que acontece é que esse aluno volta e aí na não presença de autoridades de adultos ou enfim, esse aluno vai voltar a praticar bullying e tal, principalmente se os outros colegas reforçam esse tipo de comportamento.

E você precisa de uma abordagem muito mais ampla que envolve treinar os funcionários a identificar e como intervir principalmente em situações assim. Você precisa de funcionários no entorno da escola, então não é somente os professores, mas sim funcionários em geral e é claro, você também tem que ter uma abordagem para conscientizar e demonstrar também com modelos e exemplos, quais são os comportamentos aceitáveis e inaceitáveis para os colegas. Porque os colegas muitas vezes que patrocinam, vamos dizer assim, ainda, sem querer, o bullying.

Essa abordagem precisa ser muito mais profunda. E respondendo a pergunta, pensando no que poderia ter sido diferente, eu acho que também agora pegando no nicho específico do autismo, eu me lembro por exemplo que parte das agressões que eu sofri era porque algumas pessoas achavam que eu era arrogante. E eu consigo entender o porquê elas achavam isso. Em algumas situações, por exemplo, em aulas que eu me interessava mais ou que de alguma forma eu encontrei alguma abertura com a professora, eu costumava fazer muitas perguntas. E também característico do autismo, antes eu falava muito alto. Falava de uma forma espalhafatosa e aquilo incomodava a sala em geral, a professora. Eu lembro de professores às vezes achando graça, dando risada da forma como eu estava perguntando e as perguntas não muito adequadas que eu fazia enquanto toda a sala estava naquela conformidade de quanto menos perguntaram para o professor melhor, porque daí a aula vai acabando mais rápido, a gente fica mais livre e mais rapidamente.

Porque muitos professores acabavam deixando os alunos ali conversarem baixinho ou livremente e tudo mais e eu acabava estendendo esse momento de explicação que ninguém gostava, às vezes fazia alguma pergunta não adequada para os professores e eu não entendia isso. Eu não conseguia entender isso. E eu demorei muito tempo para entender que aquele comportamento era reprovável de alguma maneira. Então o que poderia ter sido diferente é: todos esses comportamentos que me colocassem em uma complexidade, uma situação complexa socialmente falando, seja lá qual for a questão, alguém poderia ter me avisado. Simplesmente, poderia ter sido um colega, poderia ter sido os próprios professores, poderia ter sido um psicólogo, uma psicóloga treinada pra acompanhar o caso na escola, mas isso teria sido assim muito importante. Eu demorei muito tempo só aos 17, 18 lá na faculdade que eu fui entender esse meu comportamento e o porquê ele incomodava. Informação poderia ter sido diferente também pra mim, além é claro dessa abordagem ao bullying que a gente sabe que é um pouco mais custosa de conseguir garantir ela, infelizmente.

Carol: Eu acho que uma coisa importante de ressaltar é que a escola, de um modo geral, não está pra lidar com qualquer tipo de diferença. E eu sinto que mesmo que durante o meu período escolar eu não entendesse e me entendesse como uma pessoa com deficiência, eu me lembro muito bem da forma como as pessoas que tinham diagnósticos ou tinham deficiências aparentes eram tratadas tanto pela escola quanto pelos colegas. Então eu acho muito real isso que o Tiago falou que os funcionários davam coro à exclusão que ele sofria na escola porque realmente é isso. As pessoas não não aprendem desde cedo a lidar com as diferenças. E eu acho que é muito difícil você estar num ambiente em que tem pessoas, tantas crianças e poucos profissionais para isso, você realmente dar conta da variedade de pessoas que você atende. Então essa padronização que a gente entende hoje a educação como se a gente precisasse seguir um certo modelo como se a gente precisasse moldar as mentes para serem de um certo jeito, ela é contra qualquer tipo de diversidade, seja de deficiência, seja de gênero, sexualidade, enfim. Então eu acho que mesmo que a gente aponte algumas soluções dentro desse modelo que a gente vivenciou e que ainda é presente nas escolas hoje, eu acho que só isso não é suficiente. Eu não sou educadora, não sou nada disso, mas eu sinto que a própria escola, essa própria instituição escola, tem tantas falhas que é muito difícil apontar formas de superar essas dificuldades dentro desse mesmo formato.

Luca: Eu acho que nesse episódio eu acabei transparecendo muito quão privilegiado eu fui porque a minha experiência foi a melhor dentro de todas as possibilidades. A coordenação me auxiliava quando eu tinha problemas de socialização, eu brigava muito, mas a coordenação também possibilitava que eu voltasse pra casa sempre que eu achasse necessário. Então no ensino fundamental eu não tive nenhum problema grande, fui muito bem acolhido. Então acaba que a minha experiência destoou muito das de vocês três. Ainda assim eu concordo plenamente com todos porque eu acho que há muito a se mudar. Porque não é toda experiência que não vai ser igual a minha, e mesmo com todo treinamento do mundo, com todas as possibilidades. Como Tiago trouxe, nem todos os problemas que há na escola para um aluno autista são derivados do fato dele ser autista, também tem toda uma gama de questões que envolvem ele como pessoa. Então tendo em vista isso, eu acredito que o que todos trouxeram aqui é extremamente válido e de certa forma muito importante de se analisar. Essa foi a discussão de hoje, espero que tenham gostado, eu particularmente adorei, e vejo vocês no próximo episódio. Muitíssimo obrigado, viu.

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