Saber o que se espera de você numa festa, contar uma má notícia, pedir um favor ou até mesmo construir vínculos duradouros são ações que são muito mais difíceis para autistas. Neste episódio, nossos podcasters compartilham a importância das habilidades sociais e como autistas lidam e podem até se beneficiar com isso ao longo da vida. Participam: Thaís Mösken e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Thaís: Um olá pra você que é ouvinte do Introvertendo, este podcast feito por autistas pra toda comunidade. Meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, trabalho como administradora de sistemas e tenho hoje 31 anos e eu vou ser host desse episódio em que a gente vai falar um pouco sobre o desenvolvimento de habilidades sociais.
Willian: Eu sou Willian Chimura, sou professor de metodologia científica, também pesquiso tecnologias voltadas para o autismo e também sou autista. E habilidades sociais são cruciais para qualquer tipo de atividade ou profissão que você queira seguir na vida.
Thaís: E hoje a gente tem um recado adicional que esse episódio faz parte dos nossos episódios de despedida. Então estamos gravando os últimos episódios do Introvertendo. Espero que seja um bom fechamento. Que que você acha, Chimura? (risos).
Willian: Olha, não faço a mínima ideia também. Eu nem tava sabendo que o Introvertendo estava acabando, na verdade acabei de descobrir (risos).
Thaís: Como assim? OK. Bom, então acabei de te dar essa notícia. Achava que todo mundo tava sabendo. O Introvertendo é um podcast feito por autistas com a produção da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Thaís: E pra começar essa conversa a gente vai falar um pouco sobre a diferenciação dos níveis por assim dizer de habilidades sociais.
Willian: Exatamente. Eu acho que é importante, quando a gente fala sobre autismo na verdade em geral não necessariamente quando a gente fala somente sobre habilidades sociais, diferenciar um pouco pelo menos topograficamente falando, vamos dizer assim, no que estamos falando. Quando falamos sobre casos de autismo, de nível de suporte 1 ou 2 ou 3, né, mais ou menos, é claro, né? Não necessariamente há como fazer uma divisão tão acurada assim entre esses de suporte. Mas acho importante aqui a gente entender que em um lado do espectro existem habilidades sociais que, por exemplo, fazem parte dos programas de intervenção, inclusive, muitas vezes, dizer oi, por exemplo, cumprimentar, tomar uma iniciativa para brincar ou interagir com uma pessoa, pedir desculpas, por exemplo.
E até a outra parte do espectro, vamos dizer assim, que seriam mais ou menos paralelo ao que o empreendedorismo chama de “soft skills”. Ou seja, habilidades muito mais complexas de como você se comporta em uma entrevista de emprego, conseguindo sentir e mensurar o que é “adequado” ou “inadequado” naquele contexto. Naquele momento, ao entregar uma notícia triste a alguém, qual é uma forma que você consegue de uma maneira sutil e ir, escalando e desdobrando o relato que vai deixar essa pessoa triste ao mesmo tempo oferecer apoio a ela de uma forma empática e realmente acolhedora. E é claro sem falar que também temos as trollagens, vamos assim dizer né? E o uso de ironia e conseguir mensurar o que é adequado a que nível é adequado você fazer uma brincadeira ou não com um colega mais próximo ou um amigo mais próximo ou alguém que você acabou de conhecer.
Essas são apenas algumas das habilidades sociais que a gente consegue listar aqui num rápido pensamento. Dado que no autismo nós temos casos autistas que justamente vão ter um déficit mais expressivo no uso da linguagem de forma funcional, é claro que habilidades sociais para esses casos vão por natureza, pela própria definição, diferir um pouco do que por vezes as pessoas em geral chamam habilidades sociais, imaginando alguém realmente numa festa, por exemplo, abraçando as pessoas, fazendo amigos e coisas do tipo.
Então esse foi o primeiro apanhado de informação sobre habilidades sociais pra gente conseguir mais ou menos definir do que a gente está falando quando a gente fala sobre habilidades sociais. É claro que inevitavelmente a gente vai acabar perdendo um pouco para esse nível mais 1 de suporte aqui nesse nosso podcast de hoje, né Thaís? Pois afinal de contas, vamos falar das nossas experiências pessoais e, enfim, o que se relaciona um pouco mais com esse nível 1 de suporte, né? E não necessariamente tanto com o nível 3 de suporte.
Thaís: E é importante, aproveitando esses exemplos, diferenciar então que você ter habilidades sociais para alguns objetivos específicos ou para algumas situações não quer dizer que você seja uma pessoa extrovertida. Você pode ser uma pessoa introvertida, você pode ter dificuldades inclusive em lidar com pessoas em diversos aspectos e mesmo assim você conseguir desenvolver habilidades sociais para conseguir suprir as necessidades do seu dia a dia e conseguir viver de uma forma mais autônoma.
Willian: Perfeita observação, mesmo porque por exemplo a vida adulta demanda. É eventualmente ir para uma lotérica, pagar uma conta, ir no banco, interagir nos supermercados, se acontece alguma coisa de imprevisível, então isso também com certeza tem a ver com habilidades sociais. Apesar de que acho que vale aqui um ponto muito interessante de que creio que existem muitas pessoas, principalmente pessoas diagnosticadas com autismo que se entendem como pessoas introvertidas. E claro, tudo bem sobre isso, na verdade existem vários introvertidos que não são autistas. Mas que na verdade isso se cria, vamos dizer assim, por conta justamente de não ter repertório de habilidades sociais.
Então, por exemplo, é muito comum, principalmente na adolescência, um caso clássico, infelizmente, de bullying na escola, com adolescente autista. E aí ele diz que: “ah, eu não gosto de amigos, eu prefiro ficar em não gosta de festas” e etc. Mas ao mesmo tempo não necessariamente é por conta de ser uma pessoa introvertida, vamos assim dizer. Mas sim porque ele já havia tentado antes no passado em uma ou duas festas e as experiências foram tão frustrantes pra ele a tal ponto de que “poxa, festa é igual a isso? Se festa é igual a não conseguir conversar, não entender o que tá acontecendo, as pessoas gritarem, você sabe se não sabe nem porquê você não ia nem entender o que está acontecendo ali naquele ambiente, então logo eu não vou gostar de festas”.
Mas às vezes também se esse sujeito mesmo sujeito dois, três anos à frente conforme ele adquiriu um mínimo de repertório de pré-requisito, vamos dizer assim de habilidades sociais, pode ser que ele vá tentar ir na festa, naquele mesmo contexto ou contexto semelhante a esses do passado que antes ele não gostou. E que no início da vida adulta pensou: “poxa, na verdade eu gosto disso agora. Estou conseguindo entender, eu peguei mais o jeito agora, consegui ver a graça nisso” e assim por diante.
É claro que aqui eu dei um exemplo de festa, mas eu creio que tanto para autistas e não autistas muitas vezes a gente acaba evitando coisas que não a gente consegue lidar bem. E no caso de habilidades sociais e interações sociais e contextos de interação em grupo pode ser que também seja o caso para algumas pessoas. Eu acho importante ressaltar isso também.
Thaís: E dentro disso, a gente também tem que pensar quais são os objetivos de cada uma dessas interações que a gente tem. Não que obrigatoriamente todas as pessoas pensem sobre isso, mas normalmente eu pelo menos se tenho dificuldade em alguma coisa, eu entender o que eu quero aprender exatamente me dá um direcionamento do que eu vou estudar do que eu vou pesquisar pra conseguir suprir aquela dificuldade.
Então usando o exemplo da festa novamente, qual é o objetivo com a festa? É conhecer pessoas, é aproveitar o ambiente, aproveitar a música, aproveitar a comida? Ou é você por exemplo participar de um evento porque isso é importante para outra pessoa? Então a gente pode começar a entrar em níveis de complexidade um pouco maiores ao se definir esse objetivo. E o que eu acho importante nisso é que se você entende que seu objetivo ali é conhecer outras pessoas, então a “pesquisa”, o estudo, se você precisar fazê-los, vai ser muito mais no sentido de “como eu interajo com essas outras pessoas nesse ambiente”.
E por outro lado, se você está ali muito mais pra dar suporte para alguém, seja algum evento mais difícil, então aproveitando exemplos mais gerais… Se você está por exemplo em um funeral, você não está ali com o mesmo objetivo que você estaria na festa. Mas ainda assim você pode estar lá para dar suporte pra alguém. E como faz isso, né? Qual é a melhor forma de você dar esse suporte? Então as ações que você vai tomar elas vão se diferenciar com o objetivo que você tem em mente.
Willian: Você questionou sobre qual seria o objetivo das festas, né Thaís? E eu lembro que eu costumava dizer que festas o objetivo era se mexer sem parecer um idiota. Então seria mais ou menos isso, na minha concepção, como um adolescente. Eu via todo mundo se mexendo de formas pouco padronizadas e ao mesmo tempo eles tinham que se mexer de alguma maneira que fosse aceitável, e não necessariamente fosse esquisito de que vieram coisas nesse sentido. Parece que todo mundo estava cumprindo com esse objetivo ali.
Mas eu acho que você falou uma coisa extremamente importante que é justamente sobre isso, qual é o objetivo real de você ir à festa, né? Talvez seria muitas vezes chamado de pressão dos amigos. Porque muitas vezes eu noto isso, que os amigos justamente por muitas vezes não por mal, mas por quererem estar próximos. Essa é uma forma de também validar vínculos, suponho eu, para muitas pessoas, de desfrutar e compartilhar momentos que são significativos para eles.
Então, por exemplo, se determinado show, por exemplo, vai ser algo muito legal, muito importante, já existe toda uma expectativa social sobre aquele show, a cidade inteira já já está. E aí é claro, os seus amigos também, justamente para validar mais, aproximar mais esse vínculo, e fazem questão da sua presença lá. E caso você não queira, seja por você ser uma pessoa introvertida ou seja lá qual for o motivo, muitas vezes acaba infelizmente vindo uma cobrança. Às vezes é uma cobrança não saudável, muitas vezes, uma cobrança chata das pessoas em volta ao fazer essa pressão para que você vá de fato.
E aí, no final das contas, você só vai para agradar alguém, os seus amigos, ou não destoar tanto do padrão do grupo. Ou seja, se todo mundo vai, se todo mundo faz aquilo, todo mundo socializa daquele jeito, se todo mundo interage daquele jeito, você também vai minimamente tentar copiar ali para não parecer tão chamativo e por consequência ser submetido a situações mais custosas socialmente falando ainda.
Thaís: E quando a gente fala ainda dessa questão de objetivo, por exemplo, se mexer sem parecer idiota nunca foi um dos objetivos que eu estudei. Então eu não sei estar em uma festa e me mexer sem parecer idiota caso eu queira tentar dançar. Mas por outro lado, uma das situações em que eu acabei estudando pra ver como eu interagia melhor com as outras pessoas para aquilo especificamente é a questão de trabalho em grupo. Eu sempre fui ruim em trabalhos em grupos no aspecto de que eu tinha dificuldade em lidar com o grupo em si. Então ou eu me isolava ou eu fazia tudo sozinha. Ou eu não entendia o que as pessoas estavam fazendo. Então tem várias situações e a gente teve inclusive um episódio sobre trabalhos em grupo falando sobre essas dificuldades, mas hoje em dia no meu trabalho hoje como adulta pelo menos eu percebi que o trabalho em grupo funciona muito bem se a gente souber usar as melhores habilidades de cada pessoa ou os interesses de cada pessoa.
Então, por exemplo, no meu trabalho, se eu preciso fazer uma negociação e também preciso criar a parte técnica dentro de uma mesma atividade, eu geralmente vou procurar alguém para fazer a parte de negociação. Porque se eu fizer, eu não vou fazer tão bem quanto as pessoas que sabem fazer isso. Então eu coloco outra pra fazer a parte de negociação enquanto eu faço a parte técnica, que é o que eu sei fazer bem. E isso tem a ver também com você desenvolver a sua habilidade social para entender o que as outras pessoas têm de qualidade, o que você tem de qualidade e como essas coisas podem se complementar dependendo do contexto em que você está. Então, de novo, eu tive que estudar pra conseguir usar esse tipo de situação ao meu favor e isso é o desenvolvimento de uma habilidade social também.
Willian: Certamente. Inclusive eu entendo que me entender como pessoa autista justamente por estudar os padrões comportamentais e as características do autismo associados às pessoas que têm esse diagnóstico também foi um marco na minha vida e principalmente porque tem aquele clássico insight que você pensa: “poxa, então eu faço isso diferente de todo mundo”. E aí logo você se pergunta: “mas como a maioria das pessoas costumam fazer isso? Como a maioria das pessoas costuma interagir com outras pessoas? Como elas se relacionam com seus hobbies e vice-versa?” e assim por diante.
Eu também noto quanto a análise do comportamento aplicada e também entender sobre uma perspectiva mais teórica também me ajudou. Inclusive uma consequência natural disso foi entender que não existe alguns conceitos como preguiça ou algumas explicações fáceis que geralmente a gente acaba assumindo para justificar comportamentos que na verdade existem razões, existem motivos para eles existirem, mas isso seria uma discussão um pouco mais complexa, talvez para um livro ou enfim, alguma outra oportunidade.
Mas você citou essa questão do desenvolvimento, do estudo e do treino e isso me lembra muito pensando na minha história de vida sobre os ambientes digitais. Eu tive um hiperfoco muito explícito, muito latente durante a minha infância, adolescência principalmente também, por interfaces digitais. Então logo sempre quis estar próximo de um computador, jogando. Na infância ainda não tinha acesso a internet, mas durante a adolescência eu passei a jogar os RPGs online massivos que muitas pessoas estão conectadas no mesmo ambiente online e elas podem interagir e tudo mais. E eu notei ali naquele momento como isso foi sem querer um enorme suporte, uma plataforma que minimizava a complexidade das interações sociais.
Então, por exemplo, eu não precisava me preocupar com aquilo que o próprio critério de diagnóstico do autismo fala e descreve sobre o autismo. Eu não precisava me preocupar sobre questões relacionadas ao comportamento não verbal, por exemplo, questões relacionadas à forma peculiar de manter ou entender os vínculos. As amizades eram definidas pelo próprio status online da pessoa. Então, se a pessoa estava naquele contexto digital, OK, eu poderia acessar ela, poderia interagir com ela, se ela não estava, eu não poderia. Então, isso também já analisava sobre a prontidão da pessoa de querer interagir comigo. E afinal de contas, uma vez que ela está naquele ambiente online, é muito improvável que ela não queira. Todo aquele ambiente digital de jogo é delineado para que os jogadores tenham objetivos em comum. Então, por consequência, a socialização acaba ficando muito mais fácil.
Não que, na verdade, na minha interpretação a socialização numa festa seja na verdade tão difícil assim quanto a gente pensa. É claro que quando a gente pensa em interação social, pensa numa interação social, muita socialização, vamos dizer assim, muitas pessoas, muito barulho, é lógico que você vai pensar em festa e logo alguém pode pensar que isso é complexo. E sim pode ser complexo para autistas por diversas questões, principalmente sensoriais, né? Mas na verdade, principalmente se você está pensando em uma festa com som alto, a interação social talvez não seja tão complexa assim, se você for parar pra pensar.
Porque afinal das contas apenas comportamento não verbal é utilizado muitas vezes ou até nem isso porque é um contexto que é aceitável você não interagir tão diretamente com ninguém e está tudo bem, ninguém vai te achar estranho, ninguém vai te te questionar sobre isso ou algo nesse sentido. Então também existem outras regras no contexto de festa assim como também existem outras regras de socialização no contexto de ambiente digital e no meu caso principalmente por conta da minha alta motivação estar ali naquele ambiente e ter um relativo sucesso e conseguir jogar o jogo bem e tudo mais e conseguir ajudar outros jogadores, isso certamente foi uma porta gigantesca para o desenvolvimento e treinamento de habilidades sociais.
Hoje em dia eu vejo que existe o Discord, que é um uma plataforma que muitos adolescentes, muitos jovens acabam usando hoje em dia, que também tem mais ou menos esse papel de prover algum tipo de plataforma para que esses jovens possam ter essa oportunidade de treinar também, se conectar com outras pessoas. Mas eu diria que não é tão fácil, não é tão simplificado quanto costumava ser quando você pensa no paralelo no jogo MMO RPG lá das antigas, que era só por texto. Hoje em dia, querendo ou não, habilidades sociais por voz quando você fala no microfone, até numa webcam principalmente, é muito mais complexo do que se você estiver num joguinho ali e aquele joguinho, o seu avatar fala por você, ele que representa um balão de fala do que você digitou. Então no meu entendimento, isso costuma ser bem mais simplificado e bem mais propício para que alguns autistas consigam obter sucesso no seus relacionamentos e certamente eu fui um desses.
Thaís: Eu também tive essa questão de ter facilidade ou mais facilidade pelo menos na interação social digital. Eu comecei a falar com mais pessoas que não estivessem por exemplo no meu contexto escolar ou no contexto de um amigo da minha mãe ou um vizinho ou alguma coisa do tipo, conhecer pessoas diferentes de locais diferentes, justamente porque um fórum me permitia isso e geralmente um fórum com um tema específico que me interessava. As pessoas que estavam naquele contexto também tinham interesse parecido comigo, o que já simplifica parte das interações porque você sabe mais ou menos um assunto pelo menos que é de interesse dos dois lados. E hoje em dia eu também sinto isso no contexto do RPG. Já falamos também várias vezes sobre RPG em episódios diferentes, que eu vejo como um ambiente muito mais controlado em que as pessoas podem interagir de forma relativamente livre em termos de criatividade. Mas como é um jogo, ele tem regras. E as pessoas acabam tendo que seguir essas regras durante as interações mesmo podendo usar muita criatividade ali.
Isso simplifica muito a forma como eu interajo com as pessoas e acaba sendo um bom direcionador para esses primeiros contatos com algumas pessoas que depois eu percebo que a interação não é tão complexa assim e que eu posso trazê-las pra mais perto, por assim dizer. Então passar de um colega de jogo pra alguém com quem eu me encontro com frequência pra jogar alguma coisa, alguém pra quem eu pergunto alguma coisa que não esteja mais relacionada ao jogo, às vezes peço ajuda sobre algo do meu dia a dia e todas essas coisas acabaram sendo simplificadas justamente por terem partido de um contexto mais controlado com o qual eu sabia lidar melhor do que contextos mais gerais, como se eu tivesse que conhecer pessoas em um evento, em um parque ou então mesmo pessoas que outros colegas me apresentem e com os quais eu não tenha realmente algum contato ou alguma afinidade.
Willian: Eu acho extremamente promissor essa questão do RPG para o desenvolvimento de habilidades sociais. Tanto é que de fato existem terapeutas, profissionais que utilizam RPG como base para programas de desenvolvimento de habilidades sociais para autistas e pessoas que necessitam deste serviço mais específico. E eu acho muito legal principalmente dois aspectos do RPG que: 1) ele tem essa “atmosfera de jogo”, nesse sentido de que errar ou de alguma maneira se comportar de uma forma entre “inadequada” ou não coerente, ela não tem tanto custo quanto teria na vida real. Se você for para pensar principalmente na escola, uma turma lotada que nada de diferente acontece, todo mundo entra e sai em fila todo mundo tem o seu lugar e etc, qualquer coisa fora daquilo ali, por exemplo, alguém te dá uma instrução e aí toda a sala olha pra você esperando você executar aquela instrução. Por exemplo, ah! Levanta a sua mão. Aí eu já penso, poxa, que é levantar a mão aí, levantar o braço também, é levantar a mão enquanto o meu braço está apoiado na carteira? E aí se de repente eu sigo essa instrução de uma forma diferente do esperado, a sala inteira está olhando pra mim e de repente eu sou punido por justamente as pessoas darem risada, acharem aquilo engraçado, acaba virando motivo de chacota, vamos dizer assim. E aquilo se torna extremamente aversivo.
Já no contexto de jogo, é claro que algumas coisas podem sim ser engraçadas, mas naquela atmosfera muitas vezes o que é engraçado é justamente desejável. Você se torna uma pessoa agradável, você se torna uma pessoa que as pessoas querem ter você próximo, querem jogar junto com você porque é justamente você deixa tudo mais divertido, tudo mais legal, que faz parte justamente do objetivo daquela atividade. Então esse é um aspecto muito legal sobre o os jogos e também um outro aspecto que eu vejo, né? Aliás, pensando não somente em jogos, mas especificamente nos jogos de interpretação de papéis como o RPG é que, querendo ou não, existe uma certa linearidade e interações bem definidas. A tomada de turno, você ter esse automonitoramento pra saber, poxa, será que eu estou falando demais? Às vezes você fala demais e nem percebe muitas vezes, né? Ou às vezes você fala menos e aí você acaba participando pouco. Cabe ao mestre, a pessoa que está, vamos dizer, fazendo essa gestão do grupo que está jogando o RPG, cabe a ele também e conseguir gerar essas oportunidades de interação, né?
E isso acaba também contribuindo para o jogador ali, possivelmente um autista que está treinando suas habilidades sociais, de conseguir entender melhor e conseguir se adaptar melhor a como funciona essas tomadas e trocas de turno e até mesmo porque as próprias pessoas que estão na roda do RPG vão ajudar ele, se houver alguma dificuldade ali, a ele conseguir entender quando ele estiver falando demais, quando ele estiver falando fora do turno dele, quando eles tiveram, por exemplo, desrespeitando alguma regra do jogo ou até mesmo sendo grosseiro.
O feedback vai ser imediato, diferentemente da vida real que muitas vezes o feedback não é tão explícito, não é tão claro e não é tão imediato. Pode ser que você esteja sendo desagradável com alguém sem querer, por exemplo, você está falando alto ou você está falando um monte para pessoa, só que aí a pessoa de alguma de certa forma tem alguma relação com você, talvez seja o seu colega, talvez conheça algum familiar seu, algo nesse sentido e aí ela fica sem jeito de dizer pra você que você está incomodando, que na verdade ela não queria estar ouvindo sobre aquilo ou algo nesse sentido. Então ela só fala assim: “ah, não, legal, tal”, etc. Você pergunta: “espera aí, está tudo bem? Eu fiz alguma coisa?”. “Não, não, pode ficar tranquilo e tal”. Enquanto na verdade você sim podia estar incomodando, você falou alguma coisa que soou estranha ou etc.
Muitas vezes, nesses contextos que existe esse mascaramento social, o feedback não é tão explícito. E esse aspecto do feedback explícito e imediato que é característico dessas rodas de jogo RPGs, em interações assim que tem como esse objetivo ter essa diversão e interpretação também de papéis, eu acho isso sensacional e extremamente promissor para desenvolvimento de habilidades sociais não somente de autistas. Além é claro de outras habilidades aí como imaginação, criatividade, enfim, mas esse não é um episódio de propaganda de RPG.
Thaís: (Risos) Podia ser, mas não é. E eu acho essa questão de feedback realmente muito importante. Claro que no jogo como o Chimura falou, a gente costuma ter um feedback muito mais rápido e muito mais verdadeiro, talvez sincero? Eu acho que são termos que podem fazer sentido nesse contexto… Enquanto que, na vida real, é mais difícil encontrar pessoas que realmente tragam feedback sobre o que a gente fez pra que a gente possa ir balanceando o nosso comportamento e encontrar um ponto ideal ou pelo menos descobrir como a gente se desenvolve de uma forma efetiva.
Mas uma coisa que eu consegui fazer ao longo do tempo e que me ajuda bastante é encontrar algumas pessoas que consigam dar esse tipo de retorno direto e verbal. Porque eu sou uma pessoa que precisa das coisas faladas por inteiro, bem escritas ou algo assim. Então o que me ajudou, e eu faço com bastante frequência, é buscar algumas pessoas que são poucas mas que me dão um feedback direto verbal pra que eu saiba como reagir a partir de alguma situação. Por exemplo, se eu vou escrever uma mensagem difícil pra alguém ou criticando uma pessoa, o que costuma ser um ponto bastante sensível ao se lidar com pessoas em geral, mas no meu caso principalmente com colegas de trabalho. Se a pessoa fez algo que é um problema, eu preciso que ela saiba que aquilo é um problema. Como eu vou falar pra ela? Isso pra mim, esse “como” é muito difícil de encontrar um ponto em que não seja ofensivo, não seja simplesmente chegar e falar: “você é um idiota”. Mas que também tenha o efeito de que, no futuro, a pessoa não faça aquilo novamente daquele jeito.
Muitas vezes eu escrevo uma mensagem, releio várias vezes e peço pra uma ou duas pessoas darem uma olhada e me darem sugestões. Às vezes eu não gosto de sugestões, às vezes as pessoas tentam deixar a mensagem muito amena, que não é o que eu quero transmitir, mas geralmente isso me ajuda encontrar uma forma de me comunicar bem com outras pessoas, tentar reduzir a chance de uma falha de comunicação que gere um problema maior no futuro. Então é um tipo de técnica que eu sugiro que, quem tiver alguma dificuldade de comunicação, pode tentar fazer no dia a dia.
Willian: Nossa, eu entendo muito isso que você está falando porque em alguns contextos, por exemplo, do contexto de desenvolvimento de softwares, né, que eu encontro um bug em potencial. O bug talvez nem existe. Só que aí eu fico tão empolgado e tão focado naquilo que eu começo a falar sobre aquilo de um certo modo até maravilhado com a existência desse potencial. Só que a forma como eu falo sobre isso com as pessoas pode dar a entender, por exemplo, que na verdade é um tom de uma ameaça iminente ou algo que é muito mais crítico, mais importante e mais do que realmente é. Enquanto, na verdade, eu estou falando naquele tom porque eu estou muito empolgado com a existência, de ter identificado ele ou até mesmo ter uma explicação de porquê ele ocorreria.
Eu vejo isso ocorrendo diversas vezes, ao longo da vida, de que provavelmente todos os autistas, creio eu, passarão por situações assim, de que o tom, a forma como a mensagem foi passada para outra pessoa, pode acabar gerando uma certa interpretação bem diferente, destoando da interpretação da que era realmente esperada pela emissora da mensagem. Isso acontecia muito comigo, acontece ainda até hoje na verdade. Novamente, essa questão de automonitoramento, essa técnica de cross-check em se você forneceu é muito interessante, uma habilidade social bem sofisticada, na verdade, se você for parar pra pensar.
E ainda porque ela requer esse pré-requisito de você discriminar quem são seus amigos de confiança e quais são os amigos elegíveis para ser bons conselheiros, e bons analistas para o contexto da mensagem que você está enviando. Então isso é muito legal também bacana o conselho.
E eu acho que, como ideia final, fica o entendimento de que na verdade muitas vezes esse excesso de interação social, essa extravagância, ou enfim, empolgação exacerbada às vezes que alguns autistas podem ter ou até mesmo nem se for tão nítido assim, mas pessoas que interagem muito com outras pessoas sem nenhum filtro, na verdade isso também pode ser entendido como falta de habilidades sociais. No sentido de que, da forma como pessoas, como ser humano, inevitavelmente você vai acabar tendo um repertório comportamental, um repertório de interação. Isso é muito diferente, a depender do contexto que você está. Então quando você está na empresa, pros seus colegas de trabalho, você interage de uma forma, quando você interage com o desconhecido, alguém que você não conhece na rua, é de outra forma.
Eu vejo isso nos casos de autismo leve, principalmente crianças de cinco anos, seis anos de idade, a criança pode ser supersocial, vamos dizer assim, ela vai dar oi pra todo mundo na rua, diz coisas bonitas para as pessoas, manda beijo, dá abraço e etc e alguém pensa: “poxa, será que essa criança realmente é autista? Porque nossa ela é tão social, ela interage tanto”. Mas na verdade, uma perspectiva de se entender isso, é que ela pode interagir da mesma forma que ela interage com seus amigos próximos, com praticamente qualquer pessoa na rua. É claro que crianças vão discriminar menos, isso é natural. Mas ao mesmo tempo, não discriminar nada, de quais comportamentos seriam mais ou menos adequados, mais ou menos adaptados ou dependendo do contexto, é justamente o critério de diagnóstico proposto pelo DSM para autismo.
Então essa ideia de que excesso de interação social também pode ocorrer por conta de déficits e habilidade social é muito importante da gente pensar e sempre se lembrar, não somente para autistas na verdade, mas para pessoas com ansiedade ou enfim alguma outra condição que, na verdade, se socializar, abrir a sua toda a sua vida ou para qualquer pessoa indiscriminadamente pode ter relação sim com uma falta de sofisticação nas suas habilidades sociais.
Thaís: Bom, então muito obrigada Chimura por a gente ter essa conversa sobre um tema que eu acho realmente muito importante. Eu espero que o episódio sirva também de auxílio para algumas pessoas que têm dificuldades com habilidades sociais, seja pra encontrar algumas dicas que a gente deu e conseguir aplicar talvez para melhorar o seu dia a dia ou pesquisar mais, estudar mais sobre como desenvolver alguma habilidade em um contexto, para um objetivo específico.
Willian: E antes de acabar esse episódio, na verdade eu tenho uma confissão a fazer. No início dele, a Thaís me perguntou o que eu poderia agregar sobre a turnê de despedida do Introvertendo. Eu disse a ela: “poxa, sério? Não sei. Eu nem sabia que o Introvertendo estava acabando”. E aí ela disse: “nossa, sério? Como assim? Eu pensei que todo mundo estava já sabendo”. E, na verdade, eu sabia. Só que essa foi uma aplicação de uma pequena mentirinha, ou seja, habilidades sociais, para me esquivar dessa demanda (risos). Mas foi por um bom propósito. Afinal de contas, é um episódio de habilidades sociais e eu imaginei que isso seria útil para ele. Então me desculpe Thaís pela mentira, mas sim eu sabia que o Introvertendo estava acabando esse é um dos últimos episódios do Introvertendo, espero que vocês tenham gostado e aproveitado aí sobre as nossas reflexões relacionadas a habilidades sociais.
Thaís: Mas então você falou isso pra não ter que gravar nada lá no início, é isso?
Willian: Exatamente. Para ter essa esquiva (risos).
Thaís: OK aceito (risos). Se fosse eu, teria feito de forma mais direta, né?
Willian: (Risos)
Thaís: Teria falado: “ah, eu não sei o que falar nessa parte, pode gravar isso, se eu tiver alguma ideia, eu falo depois” (risos).
Willian: Ah, eu quis dar uma dramatizada, né, pra ter um… (risos)
Thaís: Entendi, usar como exemplo, easter egg, OK.
Willian: Exatamente.
Thaís: OK, foi uma boa ideia. E muito obrigado por todo mundo que nos ouviu, espero que vocês gostem dos nossos últimos episódios e até mais.