Introvertendo 251 – Autistas são “menos deficientes”?

Vagas de estacionamento, filas prioritárias de supermercados, são vários os espaços que contém alguma menção ao autismo. Mas como autistas se sentem ao usufruir desses direitos? Na prática, existem muitos desconfortos e desrespeitos. Também há quem não se sinta pessoa com deficiência, ou menos merecedor dessas ações de acessibilidade. Neste episódio, continuamos a conversa sobre os contrastes de se ter uma deficiência visível e invisível, e como a comunidade do autismo interpreta essas questões. Participam: Carol Cardoso e Tiago Abreu. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, também sou autista e nunca é demais falar sobre deficiência.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, sou autista, diagnosticada em 2018, e faço mestrado em arquitetura na UFMG.

Tiago: Este ano nós lançamos um episódio chamado Deficiência Visível x Deficiência Invisível. Também já falamos sobre deficiência em outros contextos. Mas agora é a hora de dar uma continuação a esse assunto para falar sobre o quanto autistas se sentem mais ou menos pessoas com deficiência.

E antes da gente partir pra discussão propriamente dita, eu queria aqui fazer um agradecimento a todas as pessoas que ouvem o Introvertendo e mandaram mensagens de carinho pra gente nessas últimas semanas desde que a gente anunciou que o Introvertendo vai acabar. Mas eu também gostaria de fazer alguns esclarecimentos. Muita gente tem questionado os motivos pelos quais o Introvertendo vai acabar. E sobre isso, eu fiz um vídeo que está no nosso canal do YouTube em que eu falo um pouco sobre os motivos que levaram a gente a definir esse fim. Também dei uma entrevista pra Revista Autismo que eu falo um pouco sobre a história do podcast, os nossos principais marcos e como a gente está preparando essa despedida, então vocês também podem ler.

Muita gente achou, inclusive, que o teaser que nós lançamos era o último material que ia sair sobre o Introvertendo. Gente, é muito importante prestar atenção no que a gente falou ali, o Introvertendo vai acabar dia 22 de setembro de 2023. Ou seja, vai sair episódio toda sexta-feira até o dia 22, é a nossa série de despedida de 11 episódios.

E ao longo das semanas, a gente vai responder outras questões que as pessoas têm nos questionado. Como é que vai ficar o site? Como é que vai ficar as redes sociais? O catálogo do podcast vai continuar no ar? Vamos explicar com detalhes, mas eu posso adiantar que mesmo depois do fim do Introvertendo vocês ainda vão poder ouvir os episódios nas plataformas, que a gente vai fazer o esforço pra manter eles no ar, beleza?

Se vocês quiserem saber mais detalhes, continuem ligados na gente, continue seguindo o podcast na sua plataforma favorita e também nas suas redes sociais. Nós estamos no Facebook, Twitter e Instagram e por enquanto nós temos o nosso site. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Nós lançamos um episódio em 2022 que é uma versão embrionária de uma palestra que eu tenho feito sobre autismo e deficiência. O episódio se chama O autismo é uma deficiência?, que lá a gente dá uma conceituação do que é deficiência. Então se você não ouviu o episódio, ouça. E a gente lançou o episódio Deficiência visível x deficiência invisível, que é um episódio que visa discutir um pouco então sobre esses contrastes entre deficiências que as pessoas podem ver e aquelas que são invisíveis. E aí tem uma questão muito importante que a gente precisa pontuar, de que no imaginário popular, quando a gente fala sobre deficiência, as pessoas já imaginam de imediato num cadeirante, por exemplo. Tanto é que, ao longo da história, as pessoas tinham muito mais a noção de que o autismo e outras deficiências que são invisíveis eram muito do domínio, por exemplo, da psicologia, de outras áreas e não tanto da discussão específica sobre deficiência. O ativismo da deficiência até os anos 1980 era um ativismo de pessoas com deficiência física. E mais tarde esses campos começaram a se aproximar.

Carol: Recentemente eu participei de uma cartilha que falava justamente sobre essa noção de visibilidade e invisibilidade quanto às deficiências. Eu acho que faz sentido pensar que no imaginário das pessoas elas têm como deficiência aquilo que é imediatamente visível. A gente trouxe um pouco uma discussão sobre deficiência visível e invisível, mas ela pode ser tão profunda que às vezes as pessoas nem consideram como deficiência aquilo que não está imediatamente diante dos olhos delas. E então isso fala muito sobre como que a sociedade é estruturada, nesse regime de hipervisibilidade de certos grupos e que quando tem alguma coisa que destoa muito do padrão a que as pessoas estão acostumadas, ela sempre fica mais em evidência.

E uma outra coisa que a gente pensou sobre isso é que não só a deficiência, como outras formas de visibilidade, ou seja, outros marcadores sobre os nossos corpos criam uma noção do que seria uma deficiência padrão ou um indivíduo com deficiência padronizado e que acaba reforçando essa noção de do que que é visível, o que que é invisível. Então é isso.

Tiago: Acho muito importante o que você disse, Carol, e queria adicionar então entrando mais no contexto do autismo que o autismo em si enquanto modo de existência, enquanto diagnóstico, enfim, no que você considerar, é um conceito muito desafiador. Essa palavra “autismo” representa muitas existências, muitas formas de viver e cada existência dessas muitas vezes é muito contrastante uma com a outra. Então, quando você fala ou autista, quem é esse autista? Pode ser uma pessoa muito dependente, uma pessoa, por exemplo, que não consegue se expressar pela fala, quanto uma pessoa extremamente independente, que talvez em algum contexto você vai ter dificuldade para identificar que essa pessoa é autista.

E é claro que essa diferença que existem entre os autistas dentro da comunidade do autismo e aqui, situando não só autistas, mas as pessoas que fazem parte dessa rede de apoio, isso acaba alterando como as pessoas se sentem dentro do espectro do autismo, como elas se sentem como autistas e como elas se sentem com a temática da deficiência. Então, na comunidade do autismo, por exemplo, muitas vezes existe um estereótipo de que “esse autista é um autista leve, é um autista com menos dificuldade”. As pessoas não falam isso literalmente, mas às vezes elas têm aquela ideia de que “ah, se ele é leve, ele é menos autista, se ele é mais dependente ele é mais autista”, né? Então isso acaba fazendo com que muita gente talvez não se entenda tanto quanto autista ou tão pertencente a direitos que autistas mais dependentes teriam.

Carol: E eu acho que também é uma coisa importante de ressaltar é que essas polaridades entre os autistas que tem mais dificuldade versus os artistas que têm menos dificuldades faz parte do capacitismo. Então é como se existisse uma escala de evolução entre uma pessoa que é totalmente dependente e uma pessoa que é completamente independente. De uma ponta, você tem um autista que consegue fazer “tudo” e na outra ponta você tem o autista não verbal. Eu acho que esse tipo de raciocínio só atrapalha pra entender a complexidade do autismo, porque mesmo esses autistas que tem um nível de autonomia eles podem ter momentos da vida de ter comportamentos de não conseguir verbalizar.

Esse espectro é tão variado e quanto a outras deficiências, existem pessoas com outras questões físicas e enfim. Em certos contextos elas têm um grau de autonomia muito grande, mas em outros elas te veem impedidas. E se a gente for colocar tudo num pacote de mais ou menos deficiente, a gente não dá a complexidade necessária para abordar o capacitismo.

Tiago: E aqui vale pontuar que a gente tem o episódio 150 – Capacitismo, que a gente ali conceitua capacitismo. Eu acho muito importante essa questão do capacitismo em si porque as pessoas entendem o capacitismo como preconceito contra pessoas com deficiência e isso é muito pouco. A gente entende o capacitismo com uma teia de relações em sociedade que envolvem todos os aspectos das pessoas com deficiência.

Nesse sentido, a gente tem discussões na comunidade do autismo que são discussões que eu particularmente encaro como discussões em aberto. Tinha antes uma divisão do autismo em outras categorias, como a Síndrome de Asperger e a gente até já falou isso no episódio 198 – O fim da Síndrome de Asperger e a Supremacia Aspie e depois a gente engendrou todas essas experiências, essas vivências do autismo em uma única categoria que é o Transtorno do Espectro do Autismo.

Mas mesmo depois que essa categoria “espectro autista” começou a ser adotada, tem essas discussões na comunidade que a gente precisa subdividir o espectro, aí agora teve últimos anos uma discussão sobre a categoria “autismo profundo”, que é pra falar sobre experiências do autismo com maior dependência que geralmente estão associadas a deficiência intelectual, e isso causa muitos ruídos dentro da comunidade. E eu realmente concordo contigo Carol que se por um lado a gente parece que sempre precisa dessa especificidade para poder descrever melhor as coisas, ao mesmo tempo parece que a gente cria uma casta do que é mais autista do que é menos autista, do que tem mais legitimidade do que tem menos. E isso de certa forma afasta as pessoas.

Aliás Carol, sobre o que você disse agora e o que eu disse um pouco atrás, me faz lembrar sobre a própria definição de autismo dentro do DSM-V. A gente tem essa ideia de níveis de autismo que a comunidade do autismo fala bastante. A gente inclusive fez um episódio sobre isso, que foi o episódio 95 – Os Três Graus do autismo, lá de 2020. E essa definição de níveis de autismo é geralmente interpretada para níveis de suporte. Ou seja, o autista nível 1 precisa de suporte, mas é menos que o nível 2 e o 2 menos que o nível 3.

Só que é um pouco difícil de pensar no dia a dia o que seria um nível de suporte maior ou menor, o quanto você precisa de assistência em uma situação ou em outra. Essa definição de níveis de suporte do autismo que o DSM traz não é a única forma de categorizar, de pensar o autismo. A gente tem a definição da CID-11, que também já falamos em outros episódios, que vai definir o autismo não por níveis de suporte, mas sim por presença de transtorno de deficiência intelectual ou uso da linguagem funcional. Então são formas diferentes, considerando esse ponto de vista médico sobre o autismo de definir essas diferentes formas de viver. Mas aqui não é um livro fechado, as coisas vão mudando, as definições vão mudando e a gente vai ter talvez outras perspectivas em pouquíssimo tempo.

Nós já falamos várias vezes aqui no Introvertendo sobre a dificuldade de muitos autistas “leves”, que é de certa forma grande parte do nosso público. Afinal, o nosso podcast também tem esse perfil. A gente vê que essa parte do espectro muitas vezes tem uma dificuldade de ser reconhecida, de ser respeitada dentro da comunidade do autismo… às vezes também não respeita outras formas, mas isso é outro assunto (risos). E frequentemente estão sendo comparados com todo o espectro. Então é exatamente o que a gente já tinha falado, né? Autista mais leve, então implica ser menos autista, menos pessoas com deficiência.

E aí eu comecei a me perguntar nessa comparação de deficiências visíveis e deficiências invisíveis: quais são as “vantagens” e quais são as “desvantagens” em você ter uma deficiência invisível, como o autista “leve” em relação a outras deficiências e o que eles têm em vantagem em relação a nós?

Carol: Eu acho que falar em vantagem é forçar um pouco a barra, mas eu acho que de fato existe uma diferença no acesso de pessoas com deficiências invisíveis em relação às pessoas com deficiências visíveis, principalmente aquelas que envolvem a mobilidade e a acessibilidade no fato de realmente chegar nos lugares. Mas queria dar um exemplo de uma questão que talvez ilustre um pouco da complexidade disso.

Recentemente eu tive uma oportunidade de trabalho que envolvia expor algumas obras artísticas minhas em uma galeria de arte e era uma galeria bem pequena. E pra acessar essa galeria ela não tinha nenhum recurso de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida, que precisavam subir escada por exemplo. Ela tinha uma escada muito estreita e só pessoas magras poderiam passar por aquela escada e pessoas que não conseguem subir escada também não poderiam acessar a galeria. Então pessoas da minha família não conseguiram ir ver as minhas coisas, por serem idosas e tal.

Por um lado, o meu corpo conseguiu chegar nesse espaço. Só que eu também não consegui permanecer nesse espaço por mais do que cinco minutos porque o barulho era ensurdecedor, tinha muita gente. Era uma espécie de comunicação muito complicada e eu simplesmente fiquei lá por cinco minutos e não aguentei e saí. E quase tive crise, mas não tive crise. Eu só fiquei meio nervosa e consegui me acalmar. Então eu acho que isso fala sobre diferentes formas de acessar os espaços e também permanecer nesses espaços. Por um lado, a gente tem pessoas com mobilidade reduzida que não conseguem chegar nesse lugar e pessoas que têm outras deficiências conseguem chegar mas não conseguem permanecer e com isso não conseguem construir nada naquele espaço porque ele não foi acessível para esse grupo.

Tiago: Acho que você tocou no ponto mais importante, Carol. Porque eu acho que a essência não é a gente fazer uma olimpíada de quem sofre mais, de quem sofre menos, né? Mas pensar nessa comparação é pra gente entender que existem desafios para todo mundo e que esses desafios são diferentes. Porque em relação ao próprio autismo eu vejo frequentemente algumas pessoas falando assim: “ah, mas os desafios dos autistas com maior dependência é muito grande. Eles sofrem muito”. Aí vai ter outra pessoa que vai dizer assim: “ah! Mas os desafios sociais que os autistas ‘leves’ tem é muito grande, o sofrimento, o isolamento, porque eles percebem, porque eles entendem”. E aí vira uma briga que perde o sentido.

Observar os contextos sociais também é algo válido. Porque no fundo, no fundo, isso diz menos sobre a dificuldade em si e mais sobre os impactos que elas podem ter. Independentemente se, na percepção da pessoa, isso é mais leve ou menos leve. Por exemplo, uma pessoa que é cadeirante vai ter uma dificuldade maior pra acessar espaços do que a Carol e eu, por exemplo. E aí quando a gente pensa em vagas de estacionamento, por exemplo, existe um princípio sustentado por muitas pessoas de que a vaga de estacionamento prioritário para pessoas com deficiência é para quem tem mobilidade reduzida.

Mas ora, o único impacto com relação ao trânsito, a atividade de dirigir, tem a ver só com a distância, com o impacto físico? Autistas, por exemplo, tem uma série de questões sensoriais, de estresse, que torna a experiência de dirigir muito mais difícil. E nós já falamos aqui no Introvertendo no episódio 152, que foi o Autistas no Volante. Ou seja, pensar o estacionamento só para mobilidade reduzida é reduzir também a percepção sobre deficiência.

E aí eu posso contar uma experiência que eu tive muitos anos atrás, no ano de 2016. Eu tenho um amigo que tem uma deficiência física e ele tinha a possibilidade de estacionar em vaga, e ele me recomendou inclusive ir no Detran para poder conseguir também o mesmo direito. E quando eu cheguei lá, passei por um desconforto, falaram que era só pra mobilidade reduzida, sendo que pra mim é um estresse muito grande de dirigir, é uma coisa realmente muito desgastante o próprio processo de ter que estacionar no lugar e tal.

De alguns anos pra cá tem ocorrido essas vagas exclusivas para autistas. Porque já que as vagas ali seriam exclusivas para pessoas com deficiência, você cria uma vaga para autista e pronto, está resolvido, o que não é bem o caso. Porque essa política é feita de forma descentralizada, até um pouco mal formatada. Ao invés de você expandir as vagas de pessoas com deficiência de uma forma geral e criar uma política de conscientização para que deficiências como autismo, por exemplo, sejam incluídas, você cria uma coisa exclusiva que acaba tendo muito ruído. Inclusive eu fiz um vídeo sobre isso meses atrás, o link também está na descrição.

E aí, quando nós pensamos em uma pessoa com uma deficiência física, por exemplo, essa pessoa tem uma série de impactos na sua saúde física, pelo fato de não se movimentar. Ao mesmo tempo, o que eu mais conheço são autistas que levam uma vida nada saudável. Não saem de casa, não pegam sol, que muitas vezes têm síndromes associadas que levam a várias dificuldades motoras. No contexto do autismo, e a Carol falou isso muito bem, tem as questões sensoriais que também trazem uma diferença bem significativa. E no final das contas o que une essas diferentes pessoas com deficiência que aparentemente não tem nada em comum entre elas é a dificuldade de estar e permanecer nesses espaços. Todos têm impactos diretos na qualidade de vida. Então existem vários aspectos que vão de fato fazendo com que a gente não olhe só para deficiência da pessoa, mas também o contexto social em que essa pessoa está envolvida.

Acho que um dos maiores símbolos em relação a isso é o uso por exemplo de filas prioritárias. As filas prioritárias em mercados, em lotéricas, em estabelecimentos comerciais de uma forma geral são muito ligadas a pessoas com deficiência física e principalmente idosos. E nesse contexto, o autismo é considerado prioridade por lei. Mas a gente sabe que muitos autistas, quando vão utilizar desse direito, eles se sentem constrangidos, eles se sentem desconfortáveis, muitas vezes não se acham merecedores de acessar esse direito. E a gente fala aqui também de acesso por exemplo a lugares pra sentar no ônibus. Então a questão é: Carol, na sua experiência, você faz uso de filas prioritárias?

Carol: Depende. Na maior parte do tempo eu só uso fila prioritária quando eu estou com sobrecarga sensorial. Até porque eu fico pensando que se eu encontrar uma pessoa idosa, por exemplo, dependendo do momento me sinto capaz de ceder o lugar pra essa pessoa. Então pra evitar desgaste de comunicação, eu prefiro não usar fila prioritária se eu não estou num estresse muito grande. Mas às vezes eu estou nessa situação e aí eu já entrei numa fila prioritária uma vez quando eu estava com uma sobrecarga extrema no supermercado. Era uma coisa que eu não podia adiar, porque eu precisava fazer compras e eu precisava sair dali porque era aqueles supermercados que a pessoa fica passando com o carrinho e falando no microfone e anunciando as promoções, e eu precisava sair dali o mais rápido que eu podia. E a pessoa atrás de mim ficou reclamando dizendo que eu estava grávida de dois meses e achava que podia pegar a fila prioritária. E isso só acaba atrapalhando a nossa vida, esse tipo de atitude.

Então eu acho que a gente tem que também acessar as filas prioritárias não só como uma medida de acessibilidade, mas como uma forma de se posicionar como pessoa com deficiência invisível, porque não é só autista que sofre isso. Às vezes pessoas que têm deficiência auditiva não têm a sua deficiência escancarada. E a gente deve ocupar esses espaços também como uma forma de educar as pessoas. Não que a gente tenha esse papel o tempo todo, né? Mas isso acaba exercitando a flexibilidade das pessoas para outros tipos de deficiência.

Tiago: Eu concordo completamente contigo, Carol. Antigamente, muitos anos atrás, eu não fazia uso de filas prioritárias, por exemplo, em nenhum aspecto, nada, nada, de jeito nenhum. Lugar pra sentar no ônibus também não. E aí chegou o momento que eu me via tão cansado, tão desgastado dos lugares e principalmente depois que eu me mudei de estado que eu comecei a pensar assim: vou fazer uso sim, como uma forma política também de me manifestar. Isso começou durante a pandemia. Eu ia no mercado sempre cedo, então eu pegava sempre a fila de fila prioritária de idosos e tal, mas eu não tinha problemas porque não tinha muita competição. Mas às vezes as pessoas estranhavam, o caixa estranhava.

Teve uma vez que um caixa perguntou pra mim, falou assim: “olha, aqui é só para pessoa com deficiência”. E eu falei: “eu sou pessoa com deficiência”. E a pessoa: “ah, você pode mostrar o documento? Porque a gente já teve problema aqui”. Porque tem idoso que reclama, gente que realmente vai lá, questiona e isso cria realmente um mal estar. Uma vez eu estava no supermercado no horário de pico que eu precisava ir. Eu até falei sobre isso, acho que no Twitter na época que ocorreu, e aí tinha um idoso que ele foi muito hostil, não só comigo, mas com um cara que claramente tinha deficiência visual.

E aí eu bati e falei assim: “espera aí, eu estou na fila, sou prioritário”. E aí ele começou a me questionar assim, me desconcertei todo. E eu fui pegar minha carteira pra procurar porque eu já estava irritado. E aí quando ele viu que eu estava indo pegar a carteira pra mostrar o documento, ele: “não, não, não, tudo bem, tudo bem”. Agora em ônibus, por exemplo, não tenho coragem. Em aeroportos eu faço uso e frequentemente, principalmente se o voo está atrasado e já tem uma longa fila, as pessoas ficam fazendo comentários. Eu percebo. Isso me incomoda bastante, mas eu sempre fico naquele raciocínio de fazer aquilo pra se marcar também, pra mostrar que deficiência nem sempre é algo visível.

E isso me faz lembrar também que frequentemente a gente vê relatos de autistas assim na internet: “fui pegar um ônibus e as pessoas se incomodaram porque eu estava sentado em tal lugar, fui no mercado e não consegui fazer uso de tal fila prioritária”. Tem inclusive um post no Reddit que está na nossa descrição do episódio de uma pessoa autista no Rio de Janeiro que sofreu constrangimento por tentar usar a fila. Então a gente vê que isso está na legislação, a gente tem um símbolo do autismo nos estabelecimentos, mas as pessoas ou não fazem uso do direito por medo do que elas podem sofrer de retaliação de outras pessoas, de outros cidadãos ou às vezes são pessoas que fizeram uso, mas que sempre que sempre tem esse desconforto. Então acaba sendo uma coisa muito chata. E aí não bastou ter uma legislação, não bastou colocar o símbolo do autismo nos estabelecimentos, porque também aí a gente volta naquela questão de que as pessoas têm uma visão padrão do que é ser autista, do que é o autista. Então muita gente pensa: “ah, autista é uma criança”. Tem essa outra questão que a gente nem chegou a comentar.

E aí começou-se a ter uma atitude dentro da comunidade do autismo das pessoas andarem com colares de autismo, de ter algum símbolo de autismo na roupa, de fazer uso do colar de girassol, que é um símbolo muito relacionado às deficiências invisíveis, inclusive recentemente o Governo Federal sancionou esse símbolo como símbolo oficial para deficiências ocultas. Então tem várias ações sendo feitas para que as deficiências invisíveis como autismo sejam reconhecidas, que as pessoas não passem por esse constrangimento, né Carol? 

Carol: Eu particularmente só me sinto representada pelo símbolo específico do autismo porque eu sinto que até por uma questão comunicativa, se alguém encrencar comigo, posso só apontar pro símbolo do autismo no local. Então quando não tem o símbolo específico do autismo, eu fico pensando duas vezes antes de acessar alguma fila prioritária ou algum espaço desse tipo. Mas ao mesmo tempo eu acho que é alguma coisa que o tio faso fala que isso acaba segregando as deficiências em aparência, grau.

E eu acho que existem duas questões pra gente pensar sobre isso em relação aos símbolos específicos. A gente nunca vai conseguir representar todas as deficiências e um símbolo só. Então a gente pode ficar infinitamente criando vários símbolos específicos para cada deficiência e nunca vai ter algo que sintetize de fato. E se a gente começa a criar esses símbolos, a gente confunde as pessoas e acaba não tornando visível o essencial que é tornar aquele espaço acessível pra gente.

Acho que essas medidas são importantes porque vendo narrativas de autistas pela internet, elas falam que esses símbolos facilitam a vida delas, o cotidiano delas, causa menos estresse. Mas ao mesmo tempo, de um modo geral, eu não sei. Eu acho que só o tempo vai ajudar a avaliar melhor essa questão da visibilidade do autismo para a população em geral.

Tiago: É que querendo ou não, um desconforto que eu tenho com relação ao uso desses símbolos é que você acaba tornando algo que pode ser privado em público. Pra mim, o meu autismo, tirando o momento que eu estou aqui no Introvertendo, é um assunto privado, é um assunto da minha vida pessoal. Você é tão desrespeitado socialmente que você precisa apresentar essa informação para que as pessoas minimamente respeitem. Então acaba sendo uma uma questão muito chata e muito desagradável.

E eu acho que você tocou num ponto importantíssimo que é: o mais importante, no final das contas, é que as pessoas se sintam confortáveis para acessar aquele direito e que elas tenham acessibilidade nos lugares onde elas passam, o que muitas vezes é negado. E eu acho que isso se liga ao tema desse episódio. Autistas são menos deficientes? Medir se alguém é mais ou menos deficiente é inútil. O que importa é que a gente reconheça que todas as pessoas aqui, no caso em relação ao espectro do autismo, são classificadas como pessoas com deficiência não só por uma questão legal, mas também para acesso a vários contextos sociais. E eu acho que isso é o mais importante. É todos nós nos reconhecermos enquanto pessoas com deficiência e entender que nós precisamos de ter acesso a direitos.

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