Como estreia da série Introvertendo: Despedida, um episódio narrativo. Carol Cardoso, por meio de seu nome artístico Varusa, conta a sua história de vida e descoberta do autismo, em um texto que contém verdades e mentiras. Ilustração: Carol Cardoso. Design: Vin Lima.
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Texto original que baseou o episódio
Eu gosto mais de dançar rock do que outros tipos de música. Geralmente no rock as pessoas não precisam fazer movimentos complexos, só pular e gritar, e isso eu sei fazer muito bem. Quer dizer, mais pular do que gritar. Às vezes quando é para gritar a minha voz não sai.
Eu já sabia que o tema da festa implicava que não haveria nenhum rock tocando. Seriam músicas em espanhol. Mas assim como eu não consegui me vestir de acordo, também não consegui dançar de acordo. Então eu só bebi e fumei muita maconha pra fingir que tudo estava bem e que eu conseguia ficar ali, conversar e dançar igual as outras pessoas.
E aconteceu o que sempre acontece: eu dei pt, não sem antes passar vergonha e fazer uma menina chorar. Ainda não sei exatamente o porquê, mas isso me lembra da vez em que eu fiz algo semelhante. Na ocasião eu só disse para uma desconhecida de todas as vezes na minha vida em que me deparei com a presença dela. As pessoas acharam que eu era uma stalker e saíram falando isso pras outras pessoas da festa. Até eu perceber que guardar todas essas memórias em detalhes sobre alguém que eu não conheço deve ser considerado estranho.
Nesse caso eu não consigo saber se me diverti. Nem lembro de qualquer coisa sólida pra saber se foi divertido ou não. Mas eu sei que foi no mínimo interessante falar sobre coisas que em geral mantenho escondidas no fundo da mente por bloqueios autocríticos.
Eu acho que não consigo tolerar quando em breves instantes da minha existência eu não sinto desprezo por mim mesma. E aí quando o efeito das drogas passa, o desprezo precisa vir em dobro, pra compensar. Eu não acho que este seja o jeito certo de fazer amigos. Me falaram pra sair e conhecer gente, e eu estou fazendo isso. Mas não avisaram que isso me traria tanto desconforto. Ou que esse desconforto me desviaria do foco. Eu acho que a gente precisa dar tempo às coisas.
Às vezes a minha intensidade me faz achar que eu vou em uma noite conhecer alguém muito especial. Isso raramente acontece. Mas, por um breve momento, é bom socializar. É bom quando as conversas acontecem com indivíduos fora da minha cabeça.
Dá vontade de viver toda a vida tudo de novo, pra ver se teria um sabor diferente. Quando fui à minha primeira festa da vida, um aniversário-balada de uma colega precoce aos 11 anos, eu acabei indo chorar no banheiro. Demorei pra entender o porquê. A resposta veio anos mais tarde. Na época eu não poderia saber que a minha angústia infantil era por tentar conversar e as palavras não saírem, ou saírem distorcidas.
Ou quando eu via os famigerados “montinhos” de gente e não entendia o que unia aquelas pessoas, por que elas agiam tão parecido. Por que eu agia tão diferente delas? Sempre que eu tentava imitar, elas sempre me desmascaravam. E eu passava por mentirosa, até para mim mesma, que não sabia ser eu e no mesmo universo socializar.
Parecia que essas duas verdades eram mutuamente excludentes. Ainda parece.
Um dia a minha prima me disse que eu não deveria ir nesses lugares, se eu sempre ficava me sentindo mal e com vontade de chorar e ir embora. E eu segui esse conselho por tanto tempo que, quando vi, o lugar onde fiquei se tornou tão desconfortável quanto. Decidi sair pois percebi que eu passava boa parte dos meus dias imaginando como era ter amigos pra sair e conversar. Imaginava os nomes e as ocasiões em que nos encontraríamos, baseadas nos livros infanto-juvenis, filmes e séries.
Nesses cenários mesmo aqueles indivíduos solitários arrumam uma companhia. Até o fim da história fazem algum amigo, ou encontram um amor, porque seria deprimente demais pensar que existem aqueles que nunca chegam nesse ponto.
Na minha história eu felizmente cheguei, apesar da demora.
(Vinheta de introdução do Introvertendo)
A primeira vez em que eu assisti a um filme em 3D eu tinha 14 anos. Eu chamei algumas colegas da escola com quem eu simpatizava. Uma delas era muito engraçada e extrovertida. Eu disse à minha mãe que nós íamos nos encontrar lá. Ela queria esperar até que elas tivessem chegado, mas eu disse que não precisava, porque eu queria ficar no cinema e ver o filme independente delas irem ou não, já suspeitando que talvez não fossem. Não queria perder a oportunidade de ver ao último filme do Harry Potter nos cinemas, e este ser meu primeiro filme em 3D, sendo no dia 11/11/11. Tinha que ser especial.
Elas não apareceram, e o Harry Potter tinha saído de cartaz no dia anterior, e eu comprei uma pipoca grande demais pensando em dividir, e um refrigerante pequeno demais que acabou antes da pipoca, deixando a minha boca rachada de tanto comer pipoca salgada sem nada pra beber.
O filme que acabei assistindo foi tão ruim que prefiro nem comentar qual foi, para não causar polêmicas, apesar de ser um consenso o filme ser realmente um lixo. Foi meu primeiro filme em 3D, e certamente a experiência foi marcante. Inaugurou meu desejo de ter amigos.
Eu disse à minha mãe que gostaria que ela me levasse a uma psicóloga, porque eu percebia que estava precisando aprender a me desenvolver socialmente. Ela ficou feliz, porque ela já tentava me levar a uma fazia anos, mas eu nunca aceitei a ideia.
O cheiro do consultório dela era de maçã verde. Sempre que eu ia ao supermercado, eu procurava a sessão de shampoos e ficava abrindo as tampas, uma por uma, das fragrâncias de maçã verde. Queria sentir o cheiro do consultório mesmo não estando lá. Nunca comprei nenhum deles, porque eu não queria banalizar a experiência. O cheiro no supermercado era só um bônus.
Eu fiquei muito focada em escrever as pautas das sessões. Algumas vezes as sessões passaram a ter pautas de mais de 3 páginas digitadas. O assunto era prolongado principalmente quando envolvia relatos de sonhos. Mas eu também compartilhava com ela alguns dos meus desenhos a lápis. Principalmente aqueles feitos em folhas de cadernos, que eu rabiscava nas aulas.
Sempre que eu tinha uma consulta marcada pra tarde, eu não conseguia pensar em mais nada no dia, e ficava tão ansiosa que não parava de suar. Quando as consultas eram desmarcadas por algum imprevisto, era uma grande tragédia no meu dia. Eu sentia o meu peito congelar em contraste com o calor que emanava de mim nos dias de consulta. Era menos um dia pra poder falar da minha vida com alguém.
Certo dia levei uma lista de agrupamento de traços faciais comuns entre pessoas não relacionadas que eu conhecia. Sempre que conhecia uma pessoa nova eu adicionava o seu nome na pilha de outros nomes que eu acreditava terem traços faciais parecidos. Se essa pessoa não tivesse nada em comum com nenhuma outra, eu criava uma pilha nova só para ela, e esperava encontrar alguém com um rosto parecido.
Fiz a mesma coisa com timbres de voz.
Havia também uma outra lista em que eu comparava os rostos das pessoas com animais. Algumas se sentiam ofendidas quando eu dizia com quais animais elas se pareciam. Uma delas me disse que era errado dizer que nós vínhamos de animais, porque nós viemos de Deus.
Um dia a psicóloga me perguntou se eu já tinha ouvido falar de síndrome de Asperger. Eu disse que não. Então ela me perguntou se eu já tinha ouvido falar sobre autismo. Eu disse que havia um personagem autista na série Cold Case, que não gostava de amarelo, o que é o oposto de mim, já que amarelo é a minha cor preferida. E também havia o personagem André da Turma da Mônica.
Então ela me passou um dever de casa. Disse que era para eu procurar sobre a tal Síndrome de Asperger e para eu dizer a ela se me identificava com as coisas que encontrava.
Ela mal sabia que instalava em mim uma nova obsessão.
Eu tinha disso. Criar obsessões pelas coisas. Depois ela me disse que não era pra chamar de obsessão, e sim de hiperfoco. Era impossível parar, exceto se eu percebesse que tinha esgotado o assunto, ou se surgisse alguma coisa melhor para ficar obcecada. Tive diversas obsessões inúteis ao longo da vida. A que talvez tenha sido mais presente durante a infância foi aquelas tampinhas de refrigerante estampadas com os personagens de Scooby-Doo. Todas as tardes eu fazia questão de conta-las e enfileira-las por personagem. Em ordem decrescente de maios número de tampinhas eu tinha: Salsicha, Scooby-Doo, Velma, Fred e Daphne.
Quando ela me disse para procurar sobre a Síndrome de Asperger, eu fui atrás do que tinha de mais fácil sobre o assunto, e encontrei a lista de características na Wikipedia. Em 2011 as respostas eram bem menos refinadas do que agora. Encontrei coisas como memorizar placas de carros e sequências numéricas, o que hoje não faz o menor sentido. Eu não memorizo placas de carro nem sequências numéricas, só fatos específicos sobre desconhecidos que eu por acaso via com frequência nos lugares.
Encontrei um blog de uma portuguesa que dizia ter sido diagnosticada com Síndrome de Asperger aos 14 anos, que era a minha idade naquele momento. Achei a coincidência curiosa, então li todos os posts. O blog assumia a forma tradicional de diário eletrônico e a autora contava sua vida e desafios, estigmas que as pessoas assumiam sobre ela por ser “aspie”. Ela era considerada histérica, emocional demais, e por conta disso as pessoas subestimavam suas habilidades.
Quando voltei na consulta seguinte, tive que passar muito desodorante pois eu suava demais, principalmente por ser outubro, o mês mais quente. Eu havia escrito uma lista de coisas com as quais me identificava. A lista tinha 12 páginas, porque eu não me contentei em só dizer a característica, descrevi as ocasiões da minha vida em que elas se fizeram presentes.
A psicóloga achou isso meio exagerado.
Eu gostaria de dizer que nesse dia ela me disse que eu podia ter também a síndrome de Asperger, mas não foi o que aconteceu. Eu não consigo dizer o que aconteceu, porque a história de verdade se fundiu com a história de mentira que é o que eu gostaria que tivesse sido.
A história de verdade envolve uma quase-psicóloga de 16 anos, que foi quem me olhou e pensou na palavra autismo enquanto a gente andava no meio do mato ao meio dia. Nesse dia eu vi uma cobra vermelha, preta e branca cruzar a trilha, e nunca mais esqueci.
Essa quase-psicóloga um dia se tornou uma psicóloga de verdade, e eu tenho certeza que ela é excepcional, apesar da gente ter perdido o contato. Ela entrou na minha lista de rostos e de vozes, e na lista de rostos parecidos com animais ela entrou sob a categoria papagaio.
A menina portuguesa de 14 anos me disse no seu diário que era possível ter diagnóstico de síndrome de Asperger nessa idade. Não era algo exclusivo de meninos na infância. A minha psicóloga de verdade disse que se eu fosse autista eu teria sido diagnosticada na infância, mas ela se esqueceu que a minha fase ideal para o diagnóstico – até os 3 anos – aconteceu nos anos 90, e foi só nessa década que a síndrome de Asperger virou diagnóstico, só que do outro lado do mundo, muitos anos depois que o pediatra que me acompanhou já tinha terminado o curso de medicina, e muitos anos antes das pessoas que moravam na minha cidade ouvirem falar dessa forma de ser autista.
Eu só sei que não existem culpados pra isso, e não tem como mudar o que já foi. Mas alivia um pouco a culpa de ter me integrado em grupos de autismo no Orkut, porque afinal de contas eu era autista mesmo.
A gente acha que quando recebe essa heterodeclaração de que a gente tem algo errado as coisas vão mudar. E mudam. Mas não do jeito que a gente espera. Por exemplo, hoje eu me odeio por motivos diferentes. Não é mais por não saber explicar o que está acontecendo quando tenho crise, isso já passou. Agora eu me odeio porque, sabendo da minha diferença, já deveria ter construído alternativas melhores pra lidar com ela, e que em vez disso eu acho que me escondo atrás do diagnóstico pra não fazer as coisas. É claro que no fundo eu sei que não é bem isso. A gente nem sempre percebe os nossos limites.
Eu gostaria de poder encontrar de novo aquele blog da menina portuguesa com síndrome de Asperger, mas ele já foi tirado do ar desde 2015. Dez anos depois eu escrevo sobre pra inaugurar meu próprio blog. Só que eu não posso mais ser chamada de menina com síndrome de Asperger, porque nem mais sou menina nem tenho síndrome de Asperger; agora se chama TEA.
Eu sempre me pergunto aonde foi parar essa menina, cujo nome não me recordo de jeito nenhum, mas as suas palavras sempre retornam ao meu pensamento. O jeito é eu permanecer por aqui, porque a internet às vezes opera milagres – ou desgraças – no quesito encontrar pessoas desaparecidas.