Introvertendo 247 – Onde o Capacitismo e a LGBTQIA+fobia se Encontram

Pessoas autistas sofrem discriminação, e pessoas LGBTQIA+ também. E quem é as duas coisas? Neste episódio, Carol Cardoso e Tiago Abreu recebem Vini Pezzin. Os três relembram o passado e relacionam as formas como as características do autismo e as suas expressões de gênero e sexualidade se cruzaram e se diferenciaram dos preconceitos que viveram, além de fazerem reflexões sobre como a comunidade do autismo e o meio LGBTQIA+ lidam com essas diferenças. Arte: Vin Lima.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, nosso contato do WhatsApp, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de alguma palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Luiz Anisio Vieira Batitucci, Marcelo Venturi, Marcelo Vitoriano, Nayara Alves, Otavio Pontes, Priscila Preard Andrade Maciel, Tito Aureliano, Vanessa Maciel Zeitouni e outras pessoas que optam por manter seus nomes privados.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts | Amazon Music | Podcast Addict e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados ou relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes desse projeto e o tema de hoje com certeza é o tema mais difícil que eu já gravei.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, sou arquiteta, faço mestrado na UFMG e esse tema é muito confuso pra mim, principalmente porque eu tenho dificuldade pra ver as nuances entre o capacitismo e LGBTfobia. E eu acho que vou descobrir um pouco melhor agora conversando com vocês.

Vini: Oi, gente. Meu nome é Vini Pezzin, sou psicologue e também sou uma pessoa autista e TDAH, meus pronomes são neutros e acho que esta pauta enquanto eu estava pensando um pouco sobre ela assim, acho confuso de separar na minha própria vida, muitas das vezes se encontram, então isto vai ser bastante interessante hoje.

Tiago: E o tema de hoje é onde o capacitismo e a LGBTQfobia se encontram. É uma discussão pra gente relacionar então essas duas questões que fazem parte da vida de muitas pessoas autistas e de outras pessoas com deficiência. E esse é um tema muito pesado para algumas pessoas. Então, se você é uma dessas pessoas que tem uma certa sensibilidade a essas questões, a gente sugere que você ouça com calma, pode pausar ou talvez pular o episódio, a gente entende perfeitamente, mas aqui a gente vai tentar trazer uma discussão que seja acolhedora e que ao mesmo tempo não se afaste também das experiências positivas ou negativas que a gente teve em relação a essa questão. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Capacitismo é um tema que já foi explorado aqui no podcast no episódio 150 em que a gente dá uma definição mais teórica. E a gente também já falou bastante sobre questões LGBTQIA+, tanto nos episódios comuns do Introvertendo, afinal nós temos uma equipe que tem várias pessoas que pertencem a sigla e também séries específicas sobre sexualidade desde 2018.

Mas em nenhum momento nós fizemos um episódio especificamente sobre a discriminação que nós passamos tanto quanto pessoas com deficiência quanto pessoas LGBTQIA+. E eu queria perguntar pra vocês como vocês percebiam LGBTQfobia na infância de vocês? Isso tanto no aspecto familiar ou escolar, enfim do que vocês se sentirem mais confortáveis.

Vini: Eu acho que eu consigo lembrar de muito cedo assim em vários ambientes da minha vida de passar LGBTQ+fobia. Eu cresci em uma família muito religiosa, cristã, desde muito cedo lembro mas pais cuidando sobre como me portava, minhas mãos. Na escola também acho que uma das primeiras memórias que eu tenho assim são de pessoas comentando coisas como: “ah, menininha”, não sei o que. E eu não tinha ideia do que era isso assim e só com o passar dos anos que eu fui dando conta que estavam querendo dizer com isso.

Carol: Pra mim também a minha infância foi marcada por essa relação familiar muito vinculada à igreja, a religião. O meu ciclo social também era muito restrito à igreja e eu sinto que parte disso vem da minha dificuldade de me socializar na escola. Então como a minha vivência familiar e comunitária, digamos assim, estava vinculada à igreja, eu tive mais contato com pessoas desse circuito. Então a gente sabe que LGBTQ+fobia nesses lugares é sempre uma coisa muito forte, muito violenta e que é recorrente.

Eu nunca me esqueço de uma vez que eu fui pra uma missa do dia dos pais e o padre escolheu usar todo o tempo dele da homilia pra falar de homofobia, pra falar sobre como que ele achava errado famílias homoafetivas e coisas do tipo, né? Muito se resume a homens gays, né? As pessoas geralmente se referem a isso. Quando a gente foge um pouco desse padrão que as pessoas entendem como… já é escandaloso você ser um homem gay, mas você ser uma mulher lésbica, você ser uma pessoa trans, você é naturalmente e imediatamente excluído porque isso não existe nem na fala das pessoas.

E eu sinto que eu por boa parte da minha infância eu nem sabia o que era lésbica, eu nem sabia que isso existia, eu sabia que existiam gays e eu sabia que isso era errado. O fato de eu nem saber que existia essa possibilidade de ser lésbica me trouxe um incômodo muito grande desde cedo por eu saber que tinha alguma coisa diferente em relação a isso, nos meus afetos, mas eu não consegui nomear. E quando eu soube o que era lésbica eu soube imediatamente que isso era uma coisa errada. Então isso lá pelos meus 10 anos eu já tinha introjetado a noção de que se eu não sabia nem que isso era uma possibilidade, a partir do momento que uma possibilidade eu já descartei como algo natural. Eu já naturalizei que aquilo não era natural.

Vini: Falando isso, Carol, me lembrou a sei lá certas coisas assim, acho que uma das primeiras lembranças que eu tenho da infância é eu colocar um colar da minha mãe que era tipo um colar meio que de pérolas falsas e ouvir do meu pai que as crianças tinham razão de estar me chamando de menina. E sempre foi muito confuso pra mim tudo isso assim porque eu nunca tive consciência sobre gênero. Eu nunca vi gênero em mim. E as pessoas sempre falavam empurrando as coisas que seriam de meninos socialmente. Então foi muito confuso até eu entender que não existiam essas separações de gênero, o que era supostamente que eu deveria fazer e tudo mais. Então até eu me dar conta do que realmente estava acontecendo, levou um bom tempo assim, sabe?

Tiago: Eu também me identifico com vocês, principalmente quando vocês falaram sobre a influência religiosa. Mas no meu caso, a minha experiência com capacitismo e, dentro do meu recorte, com a homofobia, não se deu tanto no meio religioso. Ela ficou mais escancarada em outros âmbitos. Eu acho que uma coisa muito importante que eu gostaria de pontuar é que eu só recebi o diagnóstico de autismo na vida adulta como grande parte dos autistas que vem aqui no Introvertendo, que fazem parte da equipe, e mesmo não automaticamente sabendo que era gay o capacitismo e a LGBTfobia na minha vida eram muito concretos mesmo não sabendo esse nome. Acho que não existe mais nada na minha vida que eu consiga pensar de coisas que eu experienciei, que eu sentia e não tinha o nome. Mas essas duas coisas eram muito concretas.

No meio familiar, todo mundo sempre percebeu que eu era um pouco diferente. E aí eu lembro de algumas características que podem ser associadas tanto à questão da sexualidade quanto à questão do autismo. Por exemplo, eu sempre tive a coordenação motora desajeitada. Sempre tive essa fama de ser meio esquisitão. O meu jeito de brincar era diferente. Ao mesmo tempo, eu era afeminado. Eu tinha interesses e gostos diferentes. Existia a pressão pra ser homem, ser macho. Ao mesmo tempo, pela dificuldade de coordenação motora… “Ah, ele é frouxo”, sabe? Então tinha essa coisa assim.

Já no contexto da escola, eu vejo que a questão do capacitismo e LGBTfobia eram mais violentas. Porque eu fui punido por colegas e professores ao mesmo tempo. A gente pensa muitas vezes que esse tipo de situação ocorre muito entre pessoas que estão no nível, como bullying por exemplo. Mas no meu caso, por exemplo, a homofobia ocorria até por parte dos professores. Por colegas eu sempre sofri bullying. Então sempre tinha piadinhas, comentários como viado, bicha, boiola. Teve uma época que eu tinha uma colega que me chamava de tigresa e o pessoal repercutia isso. Se tinha um personagem gay numa novela, virava apelido. Eu lembro que teve a novela Da Cor do Pecado, que tinha um personagem gay que se chamava Abelardo. Aí o pessoal ficava chamando.

Aí eu tinha dificuldades sociais, eu interagia estranho com os colegas e também interagia estranho com os professores. E tem uma situação assim que eu nunca esqueci na minha vida quando eu tinha 11 anos. Eu tinha uma professora de inglês que ela se irritou comigo, eu não lembro nem qual era o contexto, mas ela gritou comigo na sala de aula e falou assim: “vai rodar bolsinha”. E eu nem sabia o que que era isso exatamente ela falou isso pra um aluno de 11 anos, mas por que ela disse isso? Ela falou uma coisa tão absurda dessa pra uma criança, um pré-adolescente de 11 anos, porque ela me via como alguém gay mesmo não tendo essa identidade ainda reconhecida. E isso me marcou demais.

Mas voltando essa questão da escola, uma coisa que eu percebo é que os meus colegas LGBTQIA+ eles sofriam discriminação, mas eles tinham habilidades sociais. E isso era o diferencial, sabe? Eu lembro que eu tinha muitas colegas que tinham um comportamento mais masculinizado e hoje pelo menos as que eu tenho nas redes sociais todas se identificam como lésbicas ou algo do tipo. E alguns desses colegas por exemplo que…OK, eles tinham contextos de discriminação, mas muitos eram respeitados e eram até às vezes alunos populares dentro da escola. E isso comigo nunca ocorreu, sabe? Eu sinto que o nível de homofobia que eu passei foi diferente, foi pior porque eu também sou uma pessoa com deficiência e essa questão da deficiência se entrelaça. Então acho que tem muito a ver com o que vocês falaram também de ter uma dificuldade de separar, porque eu acho que as coisas atuam juntas, né?

Eu vejo que eu era o perfil perfeito, era afeminado, nerdão, eu era visto como alguém chato porque eu tinha minha dificuldade de interação, então eu me envolvia sempre em gafes sociais e isso acabava sendo uma coisa que justificava a própria discriminação que eu passava, sabe?

Vini: Sobre a questão de ser difícil, de separar, essa coisa do capacitismo da LGBTQ+fobia. Não sei se vocês conhecem a Nick Walker. E ela tem um livro chamado Neuroqueer alguma coisa, não vou lembrar o…

Tiago: Neuroqueer Heresias, seria em inglês, mas eu não lembro.

Vini: Isso, perfeito. E eu lembro de ter um trecho onde ela fala sobre essa coisa que muitas pessoas artistas têm, essas mãozinhas de dinossauros. E como isso é próximo dos trejeitos mais atrelados aos gays, como as duas coisas são muito punidas socialmente, e como às vezes não dá pra separar. E aí eu li isso e eu fiquei: “gente, isso fez muito sentido com a minha vida”. Porque realmente eu era também essa criança mais espalhafatosa, eu tinha essa questão da coordenação motora, era uma crença terminada. Eu só fiquei pensando como realmente é muito difícil separar as duas coisas.

Carol: No meu caso, eu sinto que eu não percebia tanto isso porque eu era aquela pessoa com quem ninguém falava e ninguém tinha meio que coragem de falar. Eu acho que eu devia ser… Assim, as pessoas dizem que eu tenho uma cara de braba. Esse termo é extremamente pejorativo, tá? Mas dizem que eu tinha cara de índia braba. E eu sinto que as pessoas às vezes não mexiam comigo por conta dessa minha expressão, dessa dificuldade de se ter uma expressão facial mais variada. Então o meu rosto normal, relaxado, já tem uma expressão de hostilidade pras pessoas. E por conta disso, muitas pessoas não se aproximavam de mim e eu não tinha tanto isso de as pessoas tirarem graça de mim. Eu tenho a impressão que as pessoas tinham um certo medo de mim ou algum receio ou alguma coisa assim. E que na primeira infância eu não percebia esse tipo de aproximação, esse tipo de bullying.

Mas depois da pré-adolescência eu comecei a me aproximar mais das pessoas, tentar pelo menos criar um vínculo mais forte de amizade e eu fiz uma amizade assim meio esquisita com umas meninas que elas só meio que me mantinham por perto por interesse de querer colar de mim e essas coisas e elas eram extremamente femininas. E eu não era. E foi quando começou as primeiras piadinhas sobre a possibilidade deu ser lésbica. E eu acho isso muito interessante porque isso não diz nada, alguém, sabe? As pessoas podem ser lésbicas e serem muito femininas e vice-versa. Mas eu sinto que nessa fase da vida esses são os primeiros sinais que chamam a atenção das pessoas que fazem com que elas marquem as outras dessa forma.

Tiago: Achei muito interessante essa observação porque são histórias contrastantes que eu acho que ao mesmo tempo têm uma relação com autismo. Porque você ter a cara de braba, como você disse, de certa forma também tem uma relação com o autismo. Então a sua experiência como autista te protegeu, até um certo momento. Ao mesmo tempo que as minhas dificuldades sociais não me protegeram. Então esse tipo de situação começou a ocorrer comigo com 7 anos. Com 7 anos eu já era chamado de viado na escola. E isso me deixava em estado de pânico gigantesco e eu não tinha estratégia para lidar com isso. Assim como não tive até a vida adulta.

Mas dando continuidade, muitas pessoas pra contornar a LGBTfobia e eu lembro disso desde a época da escola, elas têm as suas estratégias para se proteger. Muitas vezes elas tentam não parecer uma pessoa LGBTQIA+, eu me envolvi inclusive nesse processo, fui me tornando mais retraído, mais fechado, mais travado ao ponto que as vezes tem gente que chega pra mim e fala assim: “ah, eu achava que você era hétero”, sabe? E isso não me ofende diretamente, mas me deixa reflexivo. Ou às vezes tentam ter uma rede de apoio robusta, ter muitos amigos, ter pessoas que de fato vão te proteger em contexto de discriminação.

Em relação a autistas, vocês acham que essas duas possibilidades de tentar não parecer ou ter um grupo social é mais desafiador?

Carol: Eu acho que é muito interessante essa pergunta, porque eu vou explicar um processo que eu levo para minha lógica interna, que envolve estratégias de socialização. Eu acabo criando certas regras pras coisas para evitar desgaste emocional quando eu me deparo com uma situação social um pouco difícil. Então quando eu comecei a me descobrir lésbica, eu comecei a prestar atenção em como mulheres hétero se comportavam e tentava incorporar esse comportamento ao meu para despistar os outros, pra que ninguém descobrisse.

E isso é muito interessante porque eu acabei incorporando muitos papéis de gênero que não fazem sentido pra mim e que de fato não não dizem muita coisa. Por exemplo, teve uma coisa que aconteceu que… (risos). Eu perguntei pra única pessoa que sabia que eu era lésbica na época, quando eu tinha uns 16 anos, que foi a primeira pessoa que eu contei, eu perguntei pra ela se ela achava que eu parecia. Aí ela disse que eu parecia um pouco. E aí eu fiquei desesperada e eu perguntei, mas o quê? Aí ela disse, “ah, quando tu usa aquele tênis preto”. Gente, isso é a coisa mais ridícula que alguém pode dizer, que um tênis preto faz alguém parecer lésbica ou não.

Tiago: (Risos)

Carol: Mas enfim, foi isso que ela me falou. E eu fiquei desesperada porque esse era o único tênis que eu tinha, era o tênis que eu usava pra ir pra escola e ela era uma pessoa muito hétero assim, de performar uma feminilidade muito muito forte, e eu levava em conta muito o que ela falava. E eu sinto que o fato de eu levar ao extremo essas características me comprometeu muito assim, a minha saúde, a minha forma de me relacionar comigo e com as pessoas. Ao mesmo tempo em que eu comecei a criar certas regras que no futuro me atrapalharam porque eu criei uma inflexibilidade para lidar com outras formas de se manifestar.

Então eu ainda não tinha uma comunidade que me fornecesse suporte pra eu entender que aquilo também era errado, que aquilo era uma forma de lesbofobia comigo, de tentar controlar o meu comportamento para que eu performasse também o mesmo nível de feminilidade e aos poucos eu demorei muito pra conseguir criar essa comunidade, conseguir conhecer outras pessoas. E foi muito dolorido pra mim fazer esse processo. Porque quando eu comecei a me descobrir lésbica foi quando as minhas ideações suicidas aumentaram muito e isso já acontecia desde que eu tinha uns 11 anos e tal, mas depois desse período foi quando piorou. E eu sinto que eu não ter essa comunidade teve um impacto significativo nisso. Porque eu incorporava essas regras como se elas fossem definitivas.

Eu demorei muito pra ter uma rede de apoio, até porque demorou muito até eu me descobrir enquanto pessoa LGBTQIA+. Eu sabia que eu estava ali no meio, mas o termo gay não fazia sentido pra mim, não abarcava totalmente quem eu sou. E só no começo da pandemia tinham realmente me deparei com o termo pessoa não-binária que as coisas começaram a fazer mais sentido aos poucos, bem desse contato com a internet, que não é uma coisa… Eu não moro em Rondônia, um estado super conservador e a gente não tem muito contato com as pessoas LGBTQIA+ assumidas, que falam tanto publicamente assim. E a partir de eu me descobrir como uma pessoa não-binária, eu também fui me deparando a me descobrir uma pessoa assexual e arromântica, eu posso dizer que muito recentemente me conectei mais com pessoas a ponto de ter pessoas que entendem da minha experiência e falem comigo, sabe?

Tiago: Vini, eu me identifico muito contigo nessa questão de viver e de ter estado em estado bastante conservador porque eu morei muitos anos da minha vida em Goiás. E Goiânia é uma capital que, em certos aspectos, consegue ser mais conservadora do que o próprio interior de Goiás. É uma coisa muito bizarra. E as minhas experiências contam por si só, porque quando eu comecei a sofrer essas coisas foi exatamente de quando eu saí de Minas para morar em Goiânia. Mas saindo da parte crítica a essa cidade, eu também me identifico com vocês nessas questões de não saber entender também muito bem como não parecer uma pessoa LGBTQA+, que foi o que a Carol falou do tênis preto. A gente ouve isso agora e eu tenho vontade de rir. Mas ao mesmo tempo é muito tenso quando você vive esse estado de tensão do: “ah, não vou gostar disso porque vão me associar a isso, não vou usar isso”. Acaba sendo uma questão que limita muito a gente.

Eu lembro que eu não tinha habilidades sociais, eu não tinha amigos, vivia sempre muito isolado e às vezes eu tentava andar com pessoas que iam com a minha cara e que não parecessem LGBTQIA+ também. Depois mais tarde, com o tempo, é que eu fui tendo os meus primeiros amigos, os meus meus primeiros amigos mais sólidos vieram só depois do diagnóstico, alguns deles vão fazer ainda 10 anos que eu sou amigo deles. Por exemplo, os que eu trouxe no episódio de 69 – Amizade. Eles tornaram meus amigos, mas todas essas questões de sexualidade eu tinha muito medo de compartilhar. Todos eles são héteros. Eu vejo que muito do meu círculo social por um certo período eram só formados por pessoas heterossexuais. Talvez isso também possa ter contribuído para aumentar essa passabilidade, digamos assim, e eu só fui me abrir pra eles depois de 3 anos que eles eram meus amigos, com muito medo. E o acolhimento deles foi o que me permitiu ficar um pouco mais à vontade, começar a sair, a ter encontros porque até aquele momento como ninguém sabia eu ficava naquela sensação de impostor. Então acabava sendo uma questão bastante difícil.

E já focando nessa questão das comunidades, já que a gente está falando aqui de LGBTQfobia e capacitismo, a gente tem que falar sobre deficiência, sobre autismo e sobre a comunidade LGBTQIA+. Vocês acham que muitos membros da comunidade LGBTQIA+ são capacitistas e que muitos membros da comunidade autista são LGBTQIAfóbicos?

Vini: Isso que eu vou falar é pela minha experiência. Ninguém está me vendo, mas eu sou uma pessoa branca, magra, com uma expressão de gênero mais próxima do que geralmente consideram pra uma pessoa que foi designada homem quando nasceu. Então principalmente pensamos em questão de relacionamentos sexuais e românticos assim, eu vejo que as pessoas se aproximam com uma certa rapidez, mas eu vejo que depois quando elas me conhecem mesmo, me veem que eu não sou uma pessoa neurotípica, eu vejo que a relação vai ficando cheia de conflitos e até se romper muitas vezes e acho que é muito desta expectativa que as pessoas têm de eu funcionar de determinada maneira em que eu não vou funcionar. Então não tenho tantas experiências em termos de relacionamentos. Eu acho bastante marcante essa coisa do capacitismo sim. Ainda que não dita com todas as palavras, você percebe que está envolvido ali.

Carol: Eu acho que sem dúvida eu sinto muito mais capacitismo dentro da comunidade LGBTQIA+ do que eu sinto LGBTQIA+fobia na comunidade do autismo. Eu vejo que na comunidade do autismo ele se manifesta muito em falas de pais e mães e afins. Mas eu vejo que… eu não sei se isso se concretiza nos dados, enfim. Mas pela minha experiência, é muito menos frequente as pessoas cis e hétero dentro da comunidade do autismo do que o contrário. Eu acho que tem uma diversidade muito grande do espectro em relação a isso. Em conversa com autistas, eu vejo que eles são menos LGBTQIA+fóbicos do que a população em geral.

Só que dentro da comunidade LGBT quem é mais eu sinto que isso realmente acontece. Porque eu sinceramente não vejo outro motivo que não seja o capacitismo pra minha dificuldade de me relacionar com as pessoas. Eu me considero uma pessoa legal e uma pessoa bonita e interessante, eu não entendo como que eu me aproximo das pessoas e em pouco tempo parece que alguma coisa se fragmenta. Alguma coisa faz com que esse contato e essa interação se rompa. E eu estou num momento muito bom da minha vida. Eu sinto que eu estou conseguindo superar isso cada vez mais. Mas essa dificuldade ainda está ali. E às vezes as pessoas não sabem inicialmente que eu sou autista mas elas começam a perceber certas coisas e que isso distancia elas.

E eu sinto que existe um elemento que é muito interessante também, que uma das formas de empoderamento na nossa comunidade é a gente criar certos padrões entre nós, uma certa linguagem interna. Isso é muito comum quando se criam grupos, se criam comunidades, essas comunidades exibem comunicações próprias, internas. Então existe uma certa linguagem, uma certa performance de mulheres lésbicas e coisas do tipo que fazem a gente se identificar através dessas performances. E quando a gente vê alguém que está dentro da comunidade, mas que não tem essa mesma performance, cria uma dissonância. Então as pessoas criam estranhamento e elas começam a ler esse comportamento como resistência, como um distanciamento, como se fosse uma rejeição.

Eu não sei como lidar com isso, eu acho que eu prefiro dizer logo que eu sou autista e eu criei um mecanismo bem simples que é mandar o Introvertendo pras pessoas ou mandar um texto específico do meu blog que eu falo sobre síndrome de Asperger que, enfim, em breve vocês vão saber. Eu não falo diretamente: “olha, eu sou autista”, mas eu dou indícios logo de que eu sou autista pra tirar isso do meu caminho. Porque eu sinto que se eu me prolongo muito, as pessoas vão me cansando e se cansando de interagir comigo. E eu acho que por ser um tema que as pessoas não têm no cotidiano, hoje em dia eu vejo que falar de LGBTQIA+fobia é muito mais frequente do que falar de capacitismo. Então as pessoas não tem tanto repertório para discutir a questão quanto elas tem sobre LGBTQIA+fobia. E eu acho que com o tempo, com esses processos que a gente está fazendo, de tornar visível esse debate, isso vai se dissolvendo aos poucos.

Vini: Eu nunca interagi muito com pessoas autistas que também não fossem pessoas LGBTQA+. Da parte da comunidade nunca veio na minha direção LGBTQIA+fobia. Mas uma coisa que me estressa muito é o fato principalmente e de profissionais que fazem avaliação ou mesmo terapeutas falam sempre muito de autismo como se fosse uma coisa muito homogênea, só de pessoas hétero cis, quando a gente vai ver tanto a própria comunidade até de dados, de estudos, a gente saber na verdade é muito mais provável da pessoa ser uma pessoa LGBTQIA+ do que gerar uma pessoa hétero cis. Então isso é uma coisa que realmente as vezes me pega sabe ou coisas do tipo assim.

Tiago: Vocês tocaram em pontos bem interessantes e eu tenho outros. Em relação à comunidade LGBTQIA+, eu acho que sim, muitos membros são capacitistas. Eu acho que existem duas frentes nesse sentido e aqui eu vou falar especificamente sobre homens gays porque é o território que eu mais conheço. Eu vejo que tem aquele segmento que são intencionalmente capacitistas, que são aqueles homens gays que gostam de mostrar que discriminam e tem prazer e orgulho nisso. Que desprezam pessoas com deficiência, desprezam pessoas gordas, a pessoa não se contenta em ter só o seu critério de atração, ela precisa deixar bastante claro que tais pessoas, tais grupos sociais não são desejáveis para ela.

E existe um outro grupo que talvez é maior e que é menos problemático do que este, obviamente, que são as pessoas que são capacitistas sem a intenção de ser capacitistas ou porque elas não têm o repertório. Porque elas estão tão envoltas nos códigos sociais da comunidade, como a própria Carol disse, que isso começa a ocorrer quase que “naturalmente” sabe?

Por exemplo, dentro do meio gay existe uma muito mais fluida em relação às relações amorosas, em relação ao sexo e tem gente até que diz assim: “o meio gay é superficial”. E eu quero só fazer uma digressão aqui dizendo que eu discordo completamente disso por dois motivos. O primeiro motivo é que eu acho que a relação mais livre com sexo mais “libertina” que algumas pessoas podem dizer é primeiro em consequência dessa privação das relações sociais, da normalização das relações homoafetivas ou de outros tipos de relações dentro da questão LGBTQIA+. Ou seja, a gente é privado de, por exemplo, levar um namorado ou namorada dentro de casa pra família e etc, a gente não pode andar de mão dada, a gente não pode fazer uma série de coisas, então de certa forma a gente é privado e a gente vive as nossas experiências da forma que é possível.

E a segunda questão é que eu acho que esse comentário é muito moralista, sabe? Eu acho que nós que somos LGBTQIA+ nós estamos menos propensos a ficarmos presos nas normas sociais, sabe? Então por isso que existe talvez essa experiência mais livre, mais fluida. Tanto é que eu acho muito esquisito como héteros experimentam a questão do sexo. Eles conhecem uma pessoa, eles saem, aí tempo pra ficar de mão dada, aí tem um momento pra se beijar, aí às vezes tem gente que começa um relacionamento e só depois transa. E eu fico assim: meu Deus, estamos em 2023, sabe? A não ser que você por uma escolha que não goste de sexo ou por algum outro aspecto, tem uma convicção religiosa, as pessoas têm o desejo e elas se privam disso por causa das regras sociais, sabe?

Saindo dessa digressão, eu acho que o contexto LGBTQIA+ muitas vezes é capacitista porque justamente por essas regras sociais é muito mais difícil identificar o ponto das coisas, já que nós temos às vezes uma forma mais concreta e mais literal de lidar. É mais difícil de entender e lidar com coisas que as pessoas normalizam. Por exemplo, como é que autistas vão lidar com a questão do ghosting? Que é uma questão que simplesmente as pessoas desaparecem e não deixam nenhuma resposta.

Carol: Inclusive ghosting, odeio. Lidava super mal com isso. Credo. Sofria mesmo.

Vini: Apesar de que tem a outra parte. Gente, eu sou péssimo pra responder mensagem. Então…

Carol: (Risos)

Vini: As pessoas geralmente surtam assim, então têm esse outro lado da história também.

Tiago: E eu concordo com vocês que, mesmo com todos esses problemas, a comunidade LGBTQIA+ tem muito acolhimento não só para autistas mas pra neurodivergentes de forma geral. Porque eu acho que existe uma intensificação nesse sentido, né? A própria neurodiversidade, enquanto teoria, ela é emprestada muito das questões LGBTQIA+. Mas agora voltando pra questão dos membros da comunidade autista ou membros da comunidade do autismo serem LGBTQIA+fóbicos, eu acho que há muito disso sim e principalmente de familiares de autistas, de pessoas das redes de apoio. Nesse sentido eu concordo com a Carol.

E eu observo isso muito, por exemplo, se você olhar lá no Instagram da Revista Autismo, por exemplo, que é um portal de notícias. Tudo o que é publicado sobre autistas LGBTQIA+, chove de comentários negativos, hostis, de gente falando assim: “Ah, que absurdo”. Aí vai falar de ideologia de gênero. E aí as pessoas começam a questionar a própria identidade autista das pessoas. Então a gente vê muito aquele discurso do anjo azul e a gente faz uma crítica ao anjo azul falando assim: “ah porque o anjo azul é uma visão do autista que não tem sexo”. Muitas vezes nem é isso, é uma visão heteronormativa do autismo mesmo. Ah, o autista tem interesse, tem desejo, mas é um desejo heterossexual e cisgênero.

Eu acho que outro reflexo dessa questão da LGBTfobia na comunidade do autismo é que se a gente se questionar, por exemplo, quantos autistas trans têm mais de 50 mil seguidores na comunidade do autismo? Eu não estou falando nem de pessoas trans que foram diagnosticadas autistas e hoje em dia são populares. Estou falando de gente que é do berço da comunidade, que frequenta essa discussão mais sobre o autismo. Não tem, sabe? Quantos autistas que são do vale se sentem à vontade para ter fotos com seus parceiros, com seus namorados, suas namoradas? Como a gente vê, por exemplo, autistas que são heterossexuais? É muito pouco e raramente às vezes chove e às vezes um comentário ou outro hostil. Então a gente vê que tem muita coisa pra se avançar.

Eu vou falando aqui da minha experiência. Só o fato de eu passar cinco anos fazendo o Introvertendo, cuidando das palavras, falando às vezes da sexualidade de uma forma muito sútil. E aqui nesse episódio eu falei coisas que eu nunca falei publicamente que às vezes são tensas pra mim. Eu acho que isso reflete um pouco, sabe? Eu realmente precisaria esperar cinco anos pra poder falar o que eu estou falando aqui, entendeu? Então são coisas que me deixam um pouco pensativo.

Carol: Eu me identifico muito com o Tiago quanto a isso de falar publicamente e se privar muito de falar as coisas. Porque quando eu entrei no Introvertendo eu também tinha esse medo principalmente das pessoas do meu círculo social ouvirem o Introvertendo e ao mesmo tempo que eu queria levar informação sobre o autismo, eu tinha medo de me posicionar quanto a outras coisas da minha vida por causa das pessoas descobrirem (risos).

Ao mesmo tempo que eu tenho um certo medo ainda ou receio ou enfim, insegurança das pessoas saberem que eu sou autista através do Introvertendo, eu também tenho medo das pessoas descobrirem que eu sou lésbica. Não que eu não seja assumida, mas as pessoas da minha família principalmente né? Só que todo mundo sabe. E ouvirem principalmente as histórias podres, as histórias ruins que eu conto. Porque eu fico pensando: quem me conhece e escuta vai saber que me fez mal. E ao mesmo tempo que eu quero que as pessoas tenham essa noção, essa ciência, eu fico pensando: caraca, eu estou expondo pro mundo uma violência que eu sofri de pessoas que são próximas de mim.

Então é muito delicado esse nosso lugar de ao mesmo tempo ter essa responsabilidade, essa vontade de falar, mas esse receio das consequências da vida interpessoal que às vezes a internet não chega.

Tiago: Então pessoal, essa é a nossa discussão, espero que isso tenha sido produtivo. Não vai ser a única discussão relacionada ao mês do orgulho LGBTQIA+. Nosso próximo episódio também vai ser voltado para essa questão, só que de um ponto de vista talvez mais positivo. Mas eu queria agradecer Vini por ter topado esse desafio, esse tema que é duro e por você estar junto aqui com a gente nesse momento da gente estar compartilhando. Então queria que você falasse sobre o seu trabalho, sobre a sua atividade e mais uma vez agradecer pela parceria aí nesse episódio.

Vini: Bom, eu queria agradecer muito o convite. Quando recebi a mensagem, eu me senti. Sei lá, fiquei muito animade de falar sobre esse assunto porque realmente é uma coisa que está muito presente na minha vida, de experiência própria, quanto com as pessoas com quem eu trabalho. É uma coisa que eu passaria, sei lá, horas e horas falando sobre. Acho que é isso, obrigado pelo convite de verdade. Vocês conseguem achar no Instagram como Terapia Neuro-Afirmativa. Eu falo bastante lá sobre questões envolvendo neurodiversidade de forma geral. Tenho parado nos últimos dias, mas vou voltar a postar próximos, inclusive falou um pouquinho mais sobre pessoas neurodivergentes que também são pessoas LGBTQIA+, então podem ver e me seguir lá também.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: