Em abril de 2016, a psicóloga Tatiana Dunajew colocou dois futuros integrantes do Introvertendo frente a frente pela primeira vez. O encontro se tornou um grupo que, anos depois, se transformou em podcast. Neste episódio, que estreia a comemoração dos 5 anos do Introvertendo em maio, Luca Nolasco, Michael Ulian e Tiago Abreu recebem Tatiana para lembrar do começo de tudo e discutir sobre inclusão de autistas no ensino superior. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Luca: Olá, sejam bem-vindos ao podcast Introvertendo. Hoje sou eu de novo, o Luca Nolasco, que vou apresentar. E o episódio vai ser com a querida Tatiana Dunajew pra falar sobre o início do Introvertendo e o trabalho dela na UFG. E já deixando claro que este vai ser o primeiro de três episódios comemorando 5 anos do podcast Introvertendo.
Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes do Introvertendo e esse episódio tem uma das coisas que eu mais gosto de fazer que é relembrar o passado.
Michael: E aí? Aqui é o Michael, o Gaivota e pra balancear aí eu detesto relembrar o meu passado. Eu gosto de passado no geral.
Tatiana: Meu nome é Tatiana, eu sou psicóloga da UFG, sou filósofa. Foi lá na UFG, fazendo um trabalho com alunos com autismo leve, que nós começamos a desenvolver essa possibilidade de pessoas com autismo se conhecerem, viverem em grupo, entenderem a dinâmica dessa vida maluca que a gente vive e como que a gente pode, da peculiaridade de cada um, se afirmar e se desenvolver.
Eu, na verdade, não participei da criação do Introvertendo, né? Mas eu posso dizer assim que eu fiz parte do proto Introvertendo. O Introvertendo começou a ser gestado nesse grupo que nós construímos juntos de alunos na UFG.
Luca: Daqui a pouco já vou retomar sobre isso que você falou. Mas eu acho que nem os Beatles têm o quinto Beatle, que foi o produtor responsável por todo o sucesso dele, eu acho que você é em essência o quinto Beatle do Introvertendo. Você foi sim responsável por todo o projeto existir…
Tiago: Eu acho que a Tatiana é tipo o Brian Epstein, foi o primeiro empresário dos Beatles, que realmente deu estilo e cara ali no início (risos).
Tatiana: (Risos)
Luca: (Risos) Lembrando sempre que o podcast Introvertendo é feito por autistas e produzido pela Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Luca: Tatiana, agorinha você falou sobre tudo que te motivou a ter interesse sobre autistas e trabalhar com isso. Mas como surgiu de fato o grupo de autistas da UFG no qual muitos de nós aqui nos conhecemos?
Tatiana: Isso foi há alguns anos. Uma colega minha de trabalho solicitou que eu atendesse um aluno autista. E eu não tinha muita experiência, só tinha leitura e estudo. Mas fui conhecer e aí me encantei, comecei a estudar mais e nesse meio tempo as coisas foram acontecendo. O Tiago fazia parte do núcleo de acessibilidade, né Tiago?
Tiago: Isso, exatamente.
Tatiana: E aí conversamos, eu conversei com outro integrante, que não vou citar o nome dele, já que não está presente. E aí eles se conheceram e foi uma experiência muito boa. Daí pensei que poderíamos criar esse espaço de interlocução entre os alunos autistas. Tive a intuição de que essa possibilidade de vocês estarem juntos e de entender o próprio funcionamento através do olhar do outro, ou seja, se reconhecer no outro e reconhecer as próprias habilidades, isso ia ser proporcionado pelo grupo. E realmente foi muito legal.
É um trabalho que inclusive teve visibilidade, né? Porque a questão do autismo ela está muito ainda inscrita ao consultório, à clínica, ao indivíduo. Essa coisa de vocês estarem juntos, conversando, trocando ideias, aprofundando vínculos, foi muito gratificante. Quando eu falei Luca assim que eu não tenho nada a ver com Introvertendo, a não ser que o proto, havia uma célula inicial lá, é porque na realidade quem mobilizou, quem criou tudo isso foi o Tiago na época, né? E foi uma coisa também que eu fiquei bem contente em ver que através desse encontro, dessa partilha, da amizade de vocês, surgiu algo muito maior. Então, para mim foi e é gratificante.
Tiago: Você falou que não vai citar o nome da pessoa porque não está aqui, mas eu acho que eu posso citar, que é o Otávio, né?
Tatiana: Isso!
Tiago: Tudo começou entre eu e o Otávio, eu lembro do dia que eu conheci o Otávio pessoalmente e foi ali onde tudo começou. Eu tenho as minhas memórias. Eu já falei aqui até várias vezes no Introvertendo de como foi a minha primeira impressão do Otávio, como foram as nossas primeiras conversas, mas eu queria saber de você como é que foi para você pessoalmente ver duas pessoas no espectro interagindo dentro do consultório, essas suas memórias das primeiras interações minhas e do Otávio.
Tatiana: É, eu tenho 20 anos de trabalho como psicóloga e eu tenho dois trabalhos assim que eu acho que são marcantes. Um que eu fiz de arteterapia e outro que eu fiz com vocês. Então, pra mim, assim, foi uma descoberta também, sabe? Às vezes as pessoas se iludem acreditando que o psicólogo tem um suposto saber e já sabe como que as coisas acontecem. Muitas vezes, a gente vai aprendendo junto com o processo. Quando eu fiz a proposta de fazer esse grupo, de começar esse grupo, eu não sabia que ia ser um grupo grande, né? Nos últimos encontros, a gente estava com muita gente lá participando, né?
Eu fui de uma forma experimental, eu queria ver como vocês iam conversar. Claro que, como facilitadora, eu iria fazer as intervenções quando necessário, mas o grupo de vocês poucas vezes eu precisei fazer intervenção. Esses são os melhores grupos, né? Os melhores grupos são aqueles em que o terapeuta não precisa ficar intervindo muito. Eu acredito nisso. Então, assim, vocês foram construindo esse encontro. Eu estava lá. Não sei se é tudo isso que vocês falaram não, né? Primeiro dos Beatles (risos), não sei se é esse peso todo, não. Eu acho que de repente eu abri um espaço para vocês poderem construir essas possibilidades de se conhecerem. Um lá no jornalismo, o outro lá na geologia, um na medicina e universos tão distantes, tão diferentes e esses universos se encontraram e formaram, como diz Espinosa, um bom encontro, foi um bom encontro, é um bom encontro, né? Tá sendo ainda um bom encontro.
Luca: Mas…
Tatiana: O Otávio foi a primeira pessoa que eu atendi, né? Primeiro aluno autista. Sim, pode falar.
Luca: São indivíduos que, apesar de terem algum tipo de semelhança em aspectos bem específicos, eram pessoas muito distintas que muito provavelmente nem interagiriam em outros ambientes. Como foi para realmente gerenciar cada um? Eu sei que você de fato não fez tantas intervenções quanto talvez em outros ambientes precisaria fazer, mas ainda eram diversas pessoas numa sala onde você tinha que gerir tudo e “guiar”, digamos assim, qual seria a pauta do dia. Como foi?
Tatiana: A pauta do dia aparecia sempre na hora que a gente tava entrando na sala, ela já aparecia. Cês lembram disso?
Tiago: Eu lembro, inclusive, que muitas vezes você queria introduzir um assunto e aí do nada a gente fugia e você tinha que puxar a gente de volta pra terra.
Michael: (Risos)
Tatiana: E às vezes eu nem puxava, eu deixava ir. O mais importante que estava acontecendo lá era o encontro.
Michael: E inclusive tem muito disso no DNA do comecinho do Introvertendo, o tópico surgindo assim bem na hora. Teve vez da gente começar um episódio, tipo a gente decidiu o assunto ali na hora, e isso é a cara do começo do Introvertendo. Foi algo que puxou muito do grupo também.
Tatiana: É porque também a função do psicólogo, do terapeuta no grupo, não é guiar o que vai acontecer, entende? A gente entra em alguns momentos específicos se necessário, mas o grupo se organiza dentro daquele campo que ele se constituiu e as coisas vão surgindo. Pode parecer bem subjetivo para vocês, mas é uma maneira de abordar essa realidade da psicoterapia e da psicoterapia em grupo. Quando eu comecei a trabalhar com vocês, que eu comecei a ler algumas coisas, diferente das que eu tinha lido, alguns artigos, eu percebi o quê? Primeiro, a maioria das pesquisas focavam na criança autista. Então, pouca coisa sobre o adulto autista, o adolescente autista.
E uma coisa que me incomodou muito e aí eu não faço crítica a quem estiver me ouvindo, a psicólogos de outras linhas. Inclusive, eu admiro, né, por exemplo, terapia cognitiva comportamental eu acho fantástico em algumas situações, mas eu nunca olhei para vocês como eu não olho pra nenhuma pessoa que eu atendo, né, como alguém que precisasse treinar habilidades sociais. A maioria das abordagens com pacientes autistas é: “precisamos treinar as habilidades sociais”. E eu acho que isso é importante também, mas não é minha linha.
Então, o que que eu procurei trabalhar com vocês? Trazer à tona as habilidades que são habilidades incríveis. Através do encontro, perceber que existem outras pessoas também que vivenciam as mesmas situações, situações parecidas, não as mesmas. E podermos construir ou reconstruir uma imagem de respeito pela sua autoridade, pela pessoa que você é, pela diferença que você é, que muitas vezes foi destruída desde o início dos anos escolares. Eu me lembro agora, não posso afirmar todos, mas a maioria dos autistas que eu atendi tiveram problemas de bullying. Bullying é uma questão muito grave. Então, o que pode interferir em aspectos da autoimagem, desenvolvimento de depressão e comorbidades.
Então, eu queria trazer essas questões para a gente poder trabalhar e ressignificar elas, e não ficar treinando vocês a como se comunicar de maneira que a outra pessoa não ache vocês diferentes. Vocês estão entendendo o que eu estou falando? Está fazendo sentido?
Luca: Faz todo sentido.
Tatiana: Então, assim, o foco do meu trabalho, sim, foi esse: possibilitar esse espaço para que vocês pudessem perceber a riqueza, a beleza de ser diferente, no sentido de não ser comum. Não que vocês teriam que se adequar ao mundo, mas aprender a andar por esse mundo sem negar a sua alteridade. Sem se diminuir por falar de uma forma diferente, por às vezes ter dificuldade de olhar nos olhos das outras pessoas, por ter uma expressão corporal diferente, cês entendem? Então, assim, é um trabalho que eu foquei muito na afirmação da diferença.
Vou falar rapidamente. No mestrado, eu estudei filosofia da diferença. E eu não vou entrar aqui no detalhe, que é muito complexo o tema, mas é o que norteia o meu trabalho como psicóloga, que aquela pessoa que eu esteja acompanhando, seja ela autista ou não, que ela se reconheça, que ela se aceite e goste do jeito que ela é.
Luca: Eu e o Tiago, nós já falamos diversos deles em outros episódios como foi no final da nossa adolescência e tudo mais. Antes de tudo, vou fazer um disclaimer: talvez essa pergunta seja um pouco íntima então, por favor, respondam até onde é confortável, mas essa pergunta vai mais para o Michael e para a Tatiana com base no que a Tatiana disse agorinha.
Michael, você já falou algumas vezes no podcast como o mundo era um ambiente bastante hostil e a Tatiana demonstrou e comentou agora como ela tentou fazer ao máximo o ambiente do grupo para autistas ser acolhedor e seguro na medida do possível. Como foi para você, Michael, a experiência de chegar lá e como foi para você, Tatiana, a experiência de receber o Michael e acolhê-lo?
Michael: Eu lembro mais ou menos como quando eu fui lá no Saudavelmente. Tipo, é até uma história engraçada, porque fui logo quando eles estavam começando a estruturar o grupo, né? Eu acho que tinha tido o quê, uma, duas sessões? E então, eu não sabia do grupo, eles não sabiam informar, no papelzinho que eles deram eu nem informei que era autista. Daí, eles me jogaram naquela sessão de acolhimento, se não me engano, e eu não consegui falar absolutamente nada, porque não estava preparado para lidar com um monte de gente (risos). Esse primeiro dia foi um desastre. Eu não lembro como a Tatiana chegou até mim depois disso, mas acho que talvez por causa da psicóloga de lá que fez o intermédio.
Tatiana: Foi…
Michael: Isso, né? A psicóloga não, a psiquiatra, você é psicóloga.
Tatiana: Ah, tinha mais psicólogos lá, eu acho, no dia. Eu lembro do dia que você chegou.
Michael: E você me convidou para o grupo.
Tatiana: Sim. Atendi você, depois te convidei para o grupo. Inclusive, Michael, eu aproveitei esse dia que você chegou para reafirmar uma discordância que tinha na forma como organizávamos o trabalho no Saudavelmente. Lá tem uma política muito interessante de acolher as pessoas em grupo, só que eu sei que tem pessoas que não podem ser acolhidas em grupo. Não é só autista. Pessoas que têm fobia social, pessoas tímidas, pessoas com muita ansiedade e outros casos.
E aí, no dia em que o Michael passou pelo acolhimento e não conseguia falar, eu aproveitei essa oportunidade para reafirmar (risos): tá vendo? Tem pessoas que não podem ser acolhidas em grupo. Assim, cada um tem sua peculiaridade. E agora, finalmente, a gente tá fazendo acolhimento individual. Mas, enfim, era só pra te dizer, Michael, que você chegou fazendo mudança já.
Michael: Para mim acabou sendo uma história bem engraçada. Minha memória não é muito boa, mas eu sempre lembro disso, sempre acho engraçado essa situação, porque assim, é algo bem típico meu, né? Chegar e já atrapalhando tudo (risos).
Tatiana: Não, mas eu não vi assim, entendeu? (risos). Eu achei legal, sim, porque é importante quando aparece, porque tem pessoas, eu acredito, tá? Eu só vi duas vezes, mas eu acredito que tem pessoas que quando chegavam lá e vinham aquele monte de gente, a pessoa nem entrava. Você entrou, você teve muita coragem (risos). Você entrou, você falou. Mas chegou num ponto que tava além da sua… Cê tava muito desconfortável com aquela situação.
Michael: Tinham outras pessoas que também se percebiam ali que elas também não estavam confortáveis, elas talvez até conseguiam se colocar pra falar, mas assim, cê via que a pessoa também tava desconfortável lá.
Tiago: E eu queria só compartilhar que eu lembro quando o Michael entrou no grupo, porque a gente também tinha a Any. A gente já falou sobre a Any aqui poucas vezes, inclusive o marido dela vai aparecer aqui no Introvertendo este ano, ainda futuros episódios. E eu lembro que ela tinha relatado no nosso grupo que ela tinha passado pelo acolhimento e tinha achado horrível. E aí veio o Michael na mesma experiência do acolhimento. E eu lembro que a Tatiana nessa época tinha uma grande preocupação, e ela falou isso várias vezes, inclusive num episódio anterior do Introvertendo que foi um rádio documentário que a gente fez lá em 2017, que eu entrevistei a Tatiana e a Tatiana falou do quão importante era ter acesso àquela pessoa que pedia ajuda da primeira vez, não pedir pra pessoa ligar de novo, vir depois, ser imediato, porque talvez aquele pedido de ajuda, aquele pedido de acolhimento tinha que ser feito naquele momento, senão a pessoa não voltaria mais.
Isso me fez lembrar de outra questão também que a Tatiana falou um pouco antes sobre essa questão de se reconhecer no mundo e fazer com que o mundo te aceite ao mesmo tempo que você se entende e reinterpreta. Eu acho que isso está muito ligado à própria discussão que vocês relacionavam com o tema da neurodiversidade. Pra quem não sabe, o Introvertendo, antes de existir quando tinha esse grupo terapêutico na UFG, o jornal da UFG procurou o nosso grupo para poder fazer uma reportagem sobre o grupo, inclusive fotos super antigas dessa época e tal. Está até na capa do episódio.
E aí eu lembro que você, Tatiana, já falava sobre isso naquela época, né? O quanto essa temática que hoje está mais disseminada na comunidade do autismo era importante pra você, esse reconhecimento dessa minoria neurológica que dá contribuições à humanidade.
Tatiana: Isso que você falou é claro, o que me deixava apreensiva de uma certa forma é que eu percebia em vocês um potencial muito grande, né? Não vamos cair naquele mito do autista gênio, não é nesse sentido, mas no sentido assim de pessoas que, quando estabelecem um vínculo com algum assunto, com alguma pesquisa, são pessoas que vão fundo, né? Que é a questão do hiperfoco.
E o que que eu percebia? Pessoas com alto potencial e baixíssimo desempenho acadêmico. Não adianta você ser um cara que gosta de um assunto, que lê, que estuda, se você está deprimido. Se você não dá conta de fazer suas coisas, se você se sente mal no meio das outras pessoas, se você se sente julgado. Se o barulho te incomoda. Isso foi que me mobilizou muito e daí eu passei a, na medida do possível, claro, né, tentar trazer a universidade cada vez mais para essa problemática, a questão do tratamento especial, que algumas pessoas do grupo conseguiram, o direito de não participar integralmente das aulas, de todas as aulas, por uma questão de equilíbrio, de sanidade, da pessoa se sentir bem com o que ela tá fazendo sem se expor demasiadamente. E aí é com o tempo algumas pessoas conseguiram ir trabalhando isso. Isso teve reflexo no desempenho acadêmico.
Isso era o que me deixava aflita, ver pessoas com tanto potencial, mas se sentindo engolidas pelo sistema, pelas dores, pelas histórias, por tudo, né, que vocês tiveram que atravessar e atravessam ainda.
Tiago: Uma coisa que não é muito legal na verdade, mas que eu acho que é importante pontuar, é que daquele grupo original de autistas, né, que assim, se a gente considerar todas as pessoas que a gente teve, quase 20 pessoas eu acho no grupo terapêutico ou talvez um pouco mais e ao longo desse tempo nós tivemos apenas uma pessoa que conseguiu se formar no prazo, no caso fui eu, e alguns outros dois ou três que conseguiram concluir o curso, né. Muitos ficaram pelo caminho.
E isso tem a ver com recursos de acessibilidade, também tem a ver com questões da vida. A gente também atravessou uma pandemia, eu acho que isso também dificultou bastante, mas a gente consegue ver, mesmo num contexto que teve o seu acolhimento, que teve essa estrutura do Saudavelmente, a dificuldade de permanecer na universidade.
Tatiana: Sim. Mas é porque a universidade ainda está estruturando para receber vocês, entendeu? Ainda não tem esse objetivo claro. Estabelecer diretrizes, estabelecer normativas, estabelecer práticas para favorecer com que o aluno autista permaneça e ele consiga finalizar seu curso. Estamos ainda engatinhando. Tá num processo de construção, as coisas são muito lentas, tem essa questão da pandemia. Ela deu uma desacelerada geral em tudo, mas a gente precisa resgatar esse propósito e trabalhar com ele. E aí eu também me coloco nesse rol, nesse grupo, para me colocar de uma maneira mais ativa para auxiliar os alunos que estão chegando, os que ainda estão na universidade, na permanência deles, mas que seja uma permanência o mais confortável possível. Não no sentido dele ficar acomodado, não foi confortável nesse sentido.
Confortável em que a universidade pode proporcionar a essa pessoa que ela permaneça de acordo com as peculiaridades dela, que não são só dela, são de várias pessoas. Então o nosso sistema educacional foi feito se baseando num padrão de funcionamento mental, emocional e vocês sabem que não é por aí, né? Então o que a gente tem que fazer é criar outros modelos levando em consideração a diferença.
O que o aluno autista precisa para ele permanecer no curso? Como é que dentro de uma sala de aula é organizada a estratégia ou só são organizadas estratégias de ensino e aprendizagem? Como é que eu vou lidar com esse aluno em relação aos outros? Eu vou colocá-lo para trabalhar em grupo? Eu vou colocá-lo para trabalhar sozinho? Ele precisa participar de todas as aulas que estão na grade? Quais disciplinas que para ele seriam mais fáceis de participar presencialmente ou online, entende? Então, são muitas questões, muitos meandros que a gente começa a pensar e tenta encontrar outros caminhos.
Tiago: Muitos aqui que ouvem o Introvertendo sabem da história pregressa que o Introvertendo surgiu a partir de um grupo terapêutico da UFG. E alguns até são de Goiânia e ficam perguntando: “Ah, mas o grupo ainda existe?”. Até onde a gente sabe, o grupo acabou. Tem um motivo específico do porquê o grupo acabou propriamente dito?
Tatiana: Eu estou formando outro.
Tiago: A segunda geração (risos).
Tatiana: É a segunda geração (risos). Mais difícil é organizar os horários. Então, tem várias pessoas que estão chegando, que estão procurando. Mas a dificuldade é poder colocar todo mundo no mesmo horário, no mesmo lugar, no mesmo dia. Se a gente for olhar assim, aí a gente vai esbarrar mais na filosofia (risos). Eu não vou ficar viajando aqui não, né? Mas se tem seu tempo.
Então, assim, tem aquele momento do começo, da animação, aí tem o apogeu e depois tem a decadência. Decadência que eu quero dizer assim, no sentido das coisas se dissolverem, né? Mas elas não se dissolvem para acabar. Elas podem dar espaço para o novo. Então o que aconteceu? Algumas pessoas foram embora. Lembra? O Michael voltou para o Paraná. Aí eu tirei, eu tive que tirar algumas licenças de saúde. Depois teve pandemia. E sinceramente, se precisar, eu faço, né? Mas um grupo desse eu não gostaria de fazer online. Ele tem que ser presencial. É outra maneira de fazer o trabalho, de estar junto.
Tiago: Olha, eu particularmente concordo, apesar de que eu sei que tem autistas que se sentiriam mais confortáveis no online, mas eu acho que a grande maioria, entendendo a proposta, entendendo o formato, seria nesse sentido, e eu tenho memórias também sobre esse processo do grupo e eu acho que eu posso falar aqui que é uma informação legal de bastidores que a audiência do podcast pode interessar.
Eu lembro que me formei no final de 2018 e eu levei algumas pessoas pro grupo na época, eu levei o Luca, eu apresentei o Marcos. Quando eu fui me distanciando, algumas pessoas também foram, o Marcos foi para São Paulo, o Michael foi embora em 2018 ainda, o Luca tava muito ocupado com o pré-vestibular e também já tinha uma dificuldade de frequentar. E aí eu lembro que o grupo foi se renovando, mas eu mesmo fui perdendo contato já em 2019.
E eu acho que isso tem um pouco a ver também com a própria trajetória do Introvertendo. Porque nós do podcast paramos de nos ver pessoalmente e começamos a gravar os episódios remotamente. Quando a pandemia baixou em 2020, a gente já fazia o podcast remoto quase sempre, então isso foi um processo muito natural. Tanto é que pra gente se reencontrar pessoalmente é bem difícil. O Luca e eu gravamos um episódio deste ano junto que foi o “Autistas no alistamento militar” que saiu mês passado, mas geralmente a gente faz tudo online mesmo. Até porque hoje em dia, cada um mora em um estado.
Mas eu tenho uma memória, sabe, muito romântica daquele período porque os nossos encontros eram quinta-feira, uma da tarde, era uma logística complexa: pegar ônibus no sol de Goiânia, naquele clima seco, principalmente ali em pleno inverno e primavera. O clima era muito seco, era um sofrimento andar e, principalmente em relação aos estímulos sensoriais em relação aos autistas que tinham mais hipersensibilidade, tipo Marcos. Mas a gente estava firme e forte ali e eu acho que foi um período que valeu a pena.
E eu fico muito feliz, Tatiana, que agora a gente vai ter a segunda geração aí. Porque uma coisa que eu queria comentar: já estou falando demais, mas eu vou continuar. É que a gente tem uma realidade de 2021 pra cá que tem sido muito popularizada até nos jornais dos coletivos autistas. Vocês já devem ter ouvido falar que tem autistas universitários que têm se juntado em grupos para reivindicar coisas, mas também para formar grupos sociais. Teve um caso na USP, teve um caso na UNICAMP, na UFRGS.
E lá na UFG eu lembro que em 2015, um ano antes do grupo Asperger – o grupo que tinha esse nome ainda quando tinha o diagnóstico de Síndrome de Asperger – eu tentei me articular com algumas pessoas. Eu mandei e-mail para o pessoal, inclusive o Marcos, “vamos nos encontrar pessoalmente”. A gente se viu uma, duas vezes, mas o negócio não prosperou, depois teve o grupo terapêutico e eu agora a gente está em outro momento da história do autismo. Isso passou nem dez anos, sabe? Agora o pessoal está formando laços, está se articulando. E eu acho que isso é super importante, assim, não só do ponto de vista terapêutico, mas do ponto de vista social, político. Então, esse momento, eu acho que é muito legal.
Michael: A gente fazia antes de ser moda.
Tiago: Exatamente. A gente fazia antes de ser moda (risos). A UFG talvez na história teve aí seu primeiro coletivo autista que não chegou a ser um coletivo autista.
Tatiana: Me fugiu a palavra agora. Era até um nome que o Sartre usou em um jornal com esse nome. Eu esqueci, mas acho que define bem esse nosso momento dos precursores, né? Sem romantizar, né? Mas a gente está fazendo uma coisa absolutamente nova, estamos experimentando, estamos aprendendo juntos. Eu acho muito interessante que esses movimentos estejam se articulando para que o ensino, o MEC e as pessoas que pensam em educação no nosso país possam estruturar diretrizes que incluam as pessoas em geral, sejam elas autistas ou não, né? Mas no nosso caso aqui.
Acho que é para isso que a gente tem que se mobilizar, mobilizar mesmo no campo social e político. A gente precisa gerar um certo tipo de desconforto para sair da zona de conforto e poder ter novas experiências. Então, assim, quando você tira um autista do ambiente online, onde ele está seguro e tem controle, e o traz para o grupo, há sofrimento, ansiedade extrema, vontade de sumir, vontade de chorar. Mas quando ele chega lá, ele passa a ter outra experiência, outro olhar do que é estar com outras pessoas. Ele pode estar com outras pessoas que se sentem como ele, né? Então, a experiência que ele não vai ter online. Estou falando assim sensorialmente mesmo.
Tiago: Eu concordo em absoluto, assim. Eu acho que eu já falei isso aqui em outros episódios do Introvertendo: conhecer autistas pessoalmente foi um divisor de águas pra mim, porque eu já tinha o diagnóstico de autismo, já tinha contato com a comunidade, com a coisa da internet muitos anos atrás, mas foi o momento que eu conheci outras pessoas, conheci o Michael, Luca e tal, que foi realmente o grande diferencial.
Tatiana, tem uma surpresa pra você aqui, tá, nesse episódio. No início desse ano, a gente não chegou a anunciar que em áudio, a gente só anunciou nas nossas redes sociais, o Otávio saiu do podcast por questões de saúde mental. Ele teve algumas coisas bastante desafiadoras, ele não estava conseguindo conciliar as várias atividades dele. Mas o Otávio fez questão de gravar um áudio com uma pergunta pra você, e a gente vai tocar aqui essa pergunta pra você responder (risos).
Tatiana: Saudade do Otávio. Nossa…
Otávio: Tatiana, uma vez você comentou que você se interessou em trabalhar só com autistas, talvez ter algumas questões acadêmicas ou ter esse perfil de pacientes. O que fascinou você tanto em nós?
Tatiana: Ai que pergunta, gente… Vocês estão querendo que eu exponha a minha alma?
Tiago: (Risos)
Luca: (Risos)
Tatiana: Eu sabia que vocês iam me encostar na parede. Eu estava só me preparando. Complicado, sabe? Falar sem parecer estar romantizando. Eu não vou falar de forma técnica, acho que vocês não me chamaram pra isso, né? Pra eu ficar falando de forma técnica. Eu achei assim desafiador e alguns desafios eu gosto muito, alguns, tá? A sinceridade que eu percebi assim, a espontaneidade. Eu sempre vi beleza nisso. Não sei se vocês lembram. Claro que vocês vão lembrar porque eu falei agora no início, da questão das habilidades sociais. A gente vive num mundo tão normótico e hipócrita, que você aprender a mentir ou falar o que você não quer dizer é você estar apto a viver socialmente. Pra mim isso é uma grande falácia.
O que que eu comecei a admirar em vocês? A espontaneidade. O falar aquilo que não poderia ser dito de outra forma. Ou seja, o que é o verdadeiro. Argúcia nas análises de qualquer assunto que vocês viessem a trazer à tona, a não resistência a aprender. Isso achei muito legal, tanto no individual quanto no grupo é um trabalho que a gente faz que é colocar você em contato com sentimentos, qual que é o nome disso que você está sentindo? Se você perguntasse isso pra um autista, ele fica perdido, mas a gente precisa fazer esse trabalho. E a disposição de vocês de fazer esse trabalho, a disponibilidade mesmo com as dificuldades que o Tiago falou.
Por exemplo, o Michael saía lá de Aparecida [de Goiânia], o Marcos com aquela dificuldade que ele tinha de lidar com o calor, com os barulhos, mas vocês iam, né? Então, essa disponibilidade interna de aprender, de se entender, de estar junto, porque vocês criaram vínculo, né? Isso é muito legal. Começaram a sair juntos, a criar outras possibilidades de encontro. Então, Otávio e meninos, são algumas coisas que, para mim, beiravam o fascínio. Eu fiquei muito impactada, deu-me muita vontade de me aprofundar e conhecer mais, entender esse modo de funcionamento, esse modo de existir no mundo.
Otávio: Essa provavelmente vai ser a última manifestação minha no podcast, mas acredito que, ou não, esse podcast começou bem no começo com você. Então, você tem 5% de crédito. Parabéns!
Tatiana: Que gracinha! Obrigada Otávio, muito obrigada.
Luca: Bom, ele corrobora com isso de você ser o quinto Beatle nosso.
Tatiana: (Risos) Nossa gente, e cadê o dinheiro? Cadê o dinheiro dos Beatles?
Tiago: Infelizmente, a gente está falido (risos).
Michael: Eu acho que tem conta, né Tiago.
Tatiana: Uai, quem sabe mais pra frente, né?
Luca: Certeza, o Tiago está embolsando tudo, cara (risos).
Tiago: Vou sair de iate em breve.
(Risos)
Luca: Nós comentamos diversas vezes sobre Saudavelmente, sobre o Núcleo de Acessibilidade da UFG. Tatiana, você quer falar para o nosso ouvinte que é da comunidade acadêmica sobre dicas, algo que ele deve fazer, caso sinta que há necessidade de acolhimento? Óbvio, não são todas as instituições que vão ter acolhimento específico para pessoas autistas, mas tem alguma dica geral que você poderia dar?
Tatiana: É, como você disse, tem o Núcleo de Acessibilidade, se alguém tiver interesse entra no site que tem o número do telefone, do email e, se for o caso, o Núcleo de Acessibilidade faz o trabalho lá mesmo, que eles têm um trabalho bem interessante também ou encaminha para o Saudavelmente. Saudavelmente é comigo, já assumi essa responsabilidade. Se a pessoa tem um diagnóstico ou se ela ainda não tem o diagnóstico, mas ela percebe que ela tem aqueles traços, que ela tem aquelas características, ela pode entrar em contato com a Secretaria do Saudavelmente, que eu esqueci o número de telefone, tá bom? Mas é fácil de encontrar. E pedir para agendar comigo um acolhimento porque o pessoal de lá já sabe também que já há algum tempo eu faço esse trabalho. Está bom?
E aí nós estamos formando esse grupo. Tem essas duas pessoas, tem outras pessoas que eu estou atendendo individualmente, né, autistas. Mas o horário não está dando certo. Então se alguém estiver ouvindo, que for aluno da UFG que quiser participar, entre em contato com a Secretaria do Saudavelmente e aí nós conversaremos para poder organizar a segunda geração.
Tiago: Quem sabe surge um novo Introvertendo aí, hein? (risos)
Tatiana: Aí teria que ter um outro Tiago, né?
Luca: (Risos).
Tatiana: Um Tiago com muita vontade de fazer as coisas, né? Claro que o Introvertendo não foi obra apenas do Tiago, né? Mas a iniciativa foi sua. De você correr atrás, de você ver patrocínio. Eu me lembro (risos), vocês lembram quando acabava o grupo, aí vocês organizavam para fazer o Introvertendo, pegavam um quadro branco. Nunca entendi muito bem por que vocês pegavam aquele quadro branco.
Michael: Para a acústica, né?
Tiago: Exatamente. Era para questão de acústica. As salas tinham muito eco, né? Quem ouve o Introvertendo desde o início sabe que os episódios tinham um eco horroroso e a gente tentava compensar com aquilo, mas não adiantava muito não.
Michael: (Risos)
Tatiana: Eu já levei umas broncas, viu? Vou contar para vocês aqui. Porque no dia do grupo, que era o dia que vocês faziam o Introvertendo, a sala ficava quase que o dia da tarde toda fechada, né? Aí eu levei umas broncas assim, falei: “ah não, estou nem aí. Pode ficar aí fazendo, pode fazer o Introvertendo. Não tem problema”. E foi maravilhoso. O trabalho que vocês fizeram e estão fazendo é muito legal. Eu tenho certeza que vocês alcançam muitas pessoas nos mais variados lugares, pessoas que às vezes têm essa possibilidade de reconhecer na fala de vocês, no jeito de vocês entenderem e traduzirem a realidade, aquilo que elas estão sentindo e vivenciando. Então é um trabalho maravilhoso. Vocês estão de parabéns mesmo.
Tiago: Você não está vendo, mas a gente está fazendo um coração aqui com as mãos.
Tatiana: Ah, queria ver.
Luca: E você havia comentado que o Introvertendo tem no Tiago um pilar fundamental. Eu não quero deixar de ser humilde. Óbvio que tem muito do meu árduo trabalho nisso. Mas eu tenho certeza que não teria passado do segundo episódio se não fosse a chatice do Tiago (risos), de arrastar a gente, de pegar e botar o microfone na cara. Então, realmente, é um projeto em que boa parte do crédito é merecido.
Tatiana: É que o Tiago é determinado, né? Quando ele põe uma coisa que vai fazer, ele faz.
Tiago: Já falaram que eu sou uma formiguinha trabalhadeira.
Luca: (Risos).
Tatiana: (Risos) Que bonitinho!
Michael: Tatiana, eu queria agradecer. Foi muito bom reencontrar você. Agradecer ao pessoal também, por ter, agradecer o Otávio. Eu estava imaginando que ele ia acabar pulando mesmo esse, mas foi muito bom ver que ele conseguiu gravar alguma coisa. Valeu, Otávio!
É assim, eu gostaria de deixar a palavra final pra você mesmo, mas realmente ficaria esse agradecimento nosso, meu, do Tiago, do Luca, tenho certeza que do Otávio também, tanto pela participação hoje, quanto pelo grupo. E eu acho que é isso. Tatiana, se você quiser complementar com alguma coisa, por favor, me ajuda, socorro!
Luca: (Risos).
Tatiana: (Risos) Tá salvo! Não, gente, só tenho que agradecer por vocês terem me convidado. Uma grata satisfação poder estar aqui com vocês, sabe? O mais importante pra mim é o encontro, né? Então, reencontrar vocês foi muito bom, tá sendo muito bom, né? Ver o Michael, que há anos eu não vejo, o Tiago, pessoalmente não, mas eu já vi ele online, o Luca também, eu tinha perdido o contato. Então, assim, o Otávio, né? Que de uma certa maneira também, esteve presente. Então, assim, eu só tenho a agradecer por vocês terem me convidado e terem me proporcionado esse encontro maravilhoso. Sinceramente.