Introvertendo 234 – Deficiência Visível x Deficiência Invisível

O autismo é uma deficiência que, a princípio, não se vê. E, por isso, há quem não veja o autismo da mesma forma que outras deficiências. Neste episódio, Carol Cardoso e Thaís Mösken conversam com Jialu Pombo e Micael Silva, pessoas autistas que convivem também com outras condições, para um debate sobre as relações entre deficiências invisíveis como o autismo com deficiências visíveis. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Thaís: Um olá pra você que é ouvinte do Introvertendo, esse podcast feito por autistas pra toda a comunidade. O meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, hoje eu trabalho como administradora de sistemas e tenho 31 anos. E hoje eu vou ser host deste podcast em que a gente vai falar sobre deficiências visíveis e invisíveis.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho 25 anos, fui diagnosticada com autismo em 2018 e atualmente sou mestranda em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Micael: Pessoal, tudo bem? Aqui quem fala é o Clem, sou o dono do canal Clem Sobre Vida, um canal dedicado ao autismo, deficiência física e depressão. Fui diagnosticado com autismo também em 2018, durante um período de tratamento. Fora o canal no YouTube eu também sou músico, poeta, MC de batalha de rap e representante do coletivo de hip-hop da minha cidade.

Jialu: Oi, eu me chamo Jialu, eu tenho 37 anos, eu recebi o diagnóstico tardio de autismo em 2020, eu tinha 35 e nesse mesmo ano eu recebi o diagnóstico de espondiloartrite, que é uma doença crônica autoimune. No momento eu tô terminando um projeto que se chama diversidade invisível sobre a interseccionalidade entre as deficiências invisíveis e a diversidade de gênero e sexualidade. Eu tenho doutorado em psicologia clínica, mas a minha formação e a minha atuação na maior parte da minha vida foi com as artes virtuais.

Bloco geral de discussão

Carol: E pra contextualizar um pouco sobre autismo, deficiências visíveis e invisíveis, vale a pena a gente entender um pouco melhor sobre o que é a deficiência e sobre como o autismo é entendido como uma deficiência. E pra isso você pode ouvir os nossos episódios 227 – O autismo é uma deficiência?, que foi uma palestra ministrada pelo Tiago Abreu e o episódio reportagem 232 sobre a Lei Berenice Piana, que completou dez anos de existência e foi feita em parceria com a Revista Autismo.

Thaís: Bom, vocês dois convivem com duas que podem ser consideradas deficiências. Como é que vocês sentem o entrelaçamento entre a vivência dessas deficiências e o autismo?

Jialu: Pra mim esse entrelaçamento é muito forte. Tanto o autismo como a espondiloartrite são condições que sempre estão ativas. Tem uma modulação, tem uma variação do que que eu sinto, de como se manifesta, mas estão sempre ativas. E assim, pra quem não conhece, eu posso só dar uma explicada muito rápida assim, que a espondiloartrite é uma condição que ela acontece por autoinflamação e no caso da espondiloartrite, autoinflamação, ela se manifesta nas principalmente nas grandes articulações, no quadril, na coluna toda, mas também algumas pequenas articulações, como nas mãos. A inflamação acaba afetando muito o intestino e eu acho que isso também em alguns casos de autismo também é uma uma uma questão que faz um entrelaçamento. Então no meu caso isso é bem forte. E essa inflamação ela gera dor e enrijecimento.

Um dos exemplos que desse entrelaçamento da espondiloartrite com autismo que pra mim tem sido muito presente é o contraste entre o hiperfoco do autismo e a necessidade que a espondiloartrite me dá de estar sempre fazendo as coisas em doses homeopáticas, né? Ou seja, eu tenho que fazer de pouquinho em pouquinho. Eu tenho que sentar um pouquinho, levantar um pouquinho, me mexer um pouquinho, deitar um pouquinho. Se eu fico muito tempo na mesma posição, a tendência vai ser doer mais e enrijecer mais as minhas articulações. Só que quando eu estou hiperfocado trabalhando em alguma coisa ou pesquisando alguma coisa, por exemplo, eu não quase não consigo levantar da cadeira né? Eu fico muito tempo, fica muito difícil, eu começo a sentir muita dor e eu continuo ali.

E eu acho que também na rua, no mundo assim, quando eu estou por exemplo num transporte público, eu sinto que eu tenho muita dificuldade de estar ali tanto pelo autismo quanto pela espondiloartrite. Porque se eu estiver em pé, vai chegar uma hora que vai doer, eu não vou conseguir pedir pra sentar porque aparentemente eu não pareço estar nenhum problema, com uma deficiência, com uma limitação. Na mesma situação do autismo, eu posso estar com uma questão ali de hipersensibilidade, geralmente eu não consigo falar nada. Então acaba que também as situações se potencializam.

Micael: A questão da deficiência com autismo que nem o Jialu falou, no meu caso, se entrelaça muito em diversos aspectos. No caso eu tenho hemiplegia, uma doença causada por AVC. Eu tive um AVC ainda durante o período de gestação com aplicações no parto. E ela consiste basicamente na paralisia parcial de um hemisfério do cérebro, o que afeta também todo o corpo. No meu caso, foi o hemisfério esquerdo, que afetou o lado direito. Então, por consequência disso, meu lado direito é totalmente atrofiado e mais enrijecido. Eu ando mancando, eu tenho chefe de dificuldade em alguns movimentos, parte da minha movimentação comprometida, tenho dificuldade em subir e descer escada, em degraus, meu equilíbrio é quase nulo.

Fora isso também eu tenho toda a questão do cansaço excessivo que nem o Jialu comentou, porque essas deficiências físicas quando que nem ele comentou ele fica hiperfocado, a gente não consegue fazer as doses homeopáticas de tratamento. Eu por exemplo não posso ficar muito tempo sentado, sedentário, eu preciso de uma movimentação do meu corpo porque com o tempo, até mesmo em curto período de tempo aquele atrofiamento pode acabar causando espasmos ou dores por eu ficar muito tempo preso em uma só posição.

Só que quando eu estou mais hiperfocado, eu só fico sentado e não faço absolutamente nada. São níveis diferentes de deficiência, é um nível tão visível quanto invisível e na rua, várias pessoas às vezes se atentam mais pelo meu jeito de caminhar, pelo meu jeito de andar do que pelo meu jeito de agir, de falar. Se entrelaçam muito esses dois caminhos, porque muitas das vezes, principalmente na rua, pessoas interpretam alguns trejeitos meus que eu tenho a ver com autismo com a hemiplegia ou vice-versa. Por exemplo, eu tenho mania corporal, às vezes é ficar me tocando em partes do meu corpo, principalmente no meu dedo, que eu tenho aqui um anel, que eu guardo comigo, eu fico girando ele toda hora. E com isso, meu braço atrofia um pouco pro lado direito, ele fica meio grudadinho assim em mim. E aí, né, eu tenho esses jeitos por causa dos espasmos devido ao enrijecimento muscular.

E aí as pessoas falam, nossa, tem um hábito engraçado, parece que toda hora você tem mania e não é mania. É uma mistura tanto do gesto pacificador do autismo quanto os espasmos musculares que eu tenho devido a hemiplegia. Tanto em um quanto no outro necessitam ser bem vistas e bem tratadas e principalmente na questão de como convive uma pessoa que tem tanta deficiência visível quanto invisível, como age, como é a vida, como é a rotina, como pensa, quais os tipos de situações que esse tipo de pessoa enfrenta. E depois que eu descobri o diagnóstico de ambos os laudos, isso ajudou a elucidar muito mais sobre os aspectos que eu tenho na minha vida.

Carol: E eu fiquei me perguntando sobre a diferença entre uma condição crônica de saúde e uma deficiência, como que uma gera outra, como que é a percepção social sobre essas condições quando elas são entendidas como uma deficiência? Então eu queria entender como vocês percebem a diferença entre condições crônicas de saúde e a deficiência.

Jialu: No momento tem mais perguntas do que respostas. Eu acho que também em relação à pesquisa do que acontece socialmente né das perspectivas sociais sobre isso também acho que é uma pesquisa ser aprofundada, mas atualmente existem poucas diretrizes e poucas definições, poucas leis em relação à doença crônica, principalmente leis federais, tem mais leis municipais estaduais do que uma lei só como tem a LBI, que é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Mas quando eu leio a definição da deficiência na LBI eu me sinto contemplado em relação a espondiloartrite, em relação a essa condição que é chamada de doença crônica. Mas eu sinto que fica uma situação um pouco estranha, porque a nossa pressão social em relação a doença é majoritariamente vinculada a uma questão temporária. A doença é passageira.

Eu acho que quando eu faço a pergunta do que que as pessoas consideram doença, muitas vezes elas ou fazem a diferença entre doença e deficiência e muitas vezes as pessoas não sabem muito bem o que dizer. Mas eu sinto que a maioria tem essa resposta de que a doença seria uma coisa temporária e a deficiência permanente. Só que a minha doença é permanente. Ela me traz limitações que eu vou carregar a vida toda mesmo que eu tenha um tratamento. Eu fico à mercê de determinados fatores, por exemplo, hoje eu uso uma medicação imunossupressora, que é uma medicação de alto custo. Eu não tenho como pagar, eu acho que pouquíssimas pessoas teriam como pagar. Então o SUS fornece, então eu fico à mercê do SUS.

Nesse momento tenho me perguntado muito em relação a como a gente socialmente pode refletir sobre a diferença entre doença crônica e deficiência e as semelhanças principalmente. E aí só pra finalizar, eu acho que também no meu caso tanto o autismo como a espondiloartrite são condições invisíveis, pra mim é ainda mais importante, ainda mais curioso da gente poder debater a respeito.

Micael: Quando fala dessa questão se doenças crônicas e deficiências possuem alguma coisa diferente, eu posso ser bem polêmico no que eu vou agora, mas eu vou tentar me explicar baseado em algumas evidências não técnicas, eu não tenho discernimento técnico disso, de buscar pesquisas e etc, mas eu vou usar experiências mais intrapessoais e cotidianas da minha vida, que é onde eu me baseio e de filosofia que é o meu hiperfoco. Eu, particularmente, pelo menos devido ao aspecto da minha vida, eu nunca senti uma grande diferença entre falar de condições crônicas e deficientes. Por quê? Durante toda a minha vida, pela questão da chama limitação física em alguns aspectos, eu fui excluído socialmente em vários aspectos.

Na escola, uma das coisas que eu mais adoro na minha vida, tipo assim, é uma coisa eu acho que é um segundo hiperfoco depois de filosofia é o futebol. Eu amo futebol, eu amo esporte, eu amo a história do futebol, sou são paulino doente. Por conta disso, durante a época da escola, eu ia ter educação física e quando eu era criança eu não tinha o discernimento do porquê que eu era excluído das atividade físicas, de coisas que eu gostava, que eu vivi aquilo basicamente. Só que eu era tão excluído do contexto da escola ou até mesmo da rua. Meu pai era daquele jeito: “não, não é muito pra você, você não vai saber como lidar”, ou ah, “vamos fazer tal coisa, ir no parque. Não, não, tem que ficar alguém sempre te olhando e etc”.

Porém, quando achei bom a minha adolescência, minha vida adulta e comecei a fazer mais estudos sobre isso, mas estudos principalmente sobre a visão da sociedade para pessoas com deficiência, né? Eu percebi uma coisa interessante: a sociedade no geral não está preparada para limitações. A sociedade em geral não entende, não sabe discernir o que é um limite e qual é o nível desse limite numa pessoa. Porque por exemplo, as pessoas têm o mesmo nível de exclusão com alguém com deficiência, muitas vezes com alguém por exemplo que possui uma doença crônica grave ou com AIDS ou diabetes, que são pessoas também com condições muito limitadas e que também são excluídas socialmente.

Uma pessoa com AIDS, por exemplo, não consegue doar sangue, obviamente. E com isso também sofre algumas piadas, alguns julgamentos, alguns perjúrios. É totalmente excluído em diversos contextos e ela tem a dificuldade saber lidar consigo mesmo pelas suas condições. A mesma coisa é uma pessoa com diabete, que não consegue ter o prazer total em muitas coisas da própria vida pela própria falha do corpo que não consegue produzir insulina ou por outras questões. A diabete pode ser até mesmo hereditária.

Quantas vezes já passei por situações que pessoas confundem limites físicos meus. Eu entendo que eu preciso de ajuda pra subir uma escada de vez em quando, mas se tenho uma rampa, eu consigo ir sozinho, eu posso ir. Eu sei que a coisa é perigosa, tem degraus, tem morros e tem outros problemas, mas eu me locomovo na minha cidade, eu vou pra todos os lugares que eu quero ir a pé. Eu acho que muitas das vezes as pessoas têm esse problema de entender limites e isso acaba só gerando cada vez mais problemas. Principalmente se alguém não possui nenhum tipo de condição patológica, seja visível ou invisível. De certa forma é cansativo às vezes ficar explicando quais são minhas condições, ficar explicando, como eu lido, como eu me adapto com as minhas dificuldades. Mas tô falando em questão social, eu não vejo muita diferença do tratamento que dão pra alguma pessoa que tem uma condição de saúde, fora do padrão, pra uma pessoa deficiente. A sociedade ainda tem muita dificuldade de entender o circuito de adaptação dessas pessoas.

Thaís: Bom, vocês dois comentaram já um pouco sobre como cada uma das condições de vocês afeta o dia a dia de vocês e inclusive como uma acaba potencializando a outra. E é algo que agrega muito essa nossa discussão, não é que se ouve em qualquer lugar. Vocês já falaram um pouco, mas o que a gente quer saber é como vocês sentem a diferença na experiência do capacitismo entre as diferentes condições que vocês têm.

Micael: No meu caso, uma coisa que a minha criação me ajudou a ensinar é que atos de má educação se respondem com outros atos de boa educação. Mas como eu fui criado num contexto mais urbano na minha vida, principalmente com o rap que me ajudou bastante, a questão do capacitismo de pessoas olharem de maneira inferiorizada a mim, eu dou resposta tanto em verso quanto em fala. A forma de lidar com isso que eu encontrei pelas minhas condições é simplesmente vivendo. Porque eu acho que nada mais irrita uma pessoa verdadeiramente limitada quando vê uma outra pessoa que ela acha que é limitada conseguindo o que ela não consegue. Porque o capacitismo está como outras formas de julgamento de várias minorias, como o racismo, homofobia, ele surge justamente da frustração, ou melhor, do não compreendimento de certas condições de uma pessoa por outras.

E quando eu falo de não compreender, é literalmente no sentido, digamos, assim, da pessoa realmente não entender e nem querer entender a condição de outra pessoa. Então, ela prefere julgar aquilo primeiro do que entender. E a melhor resposta que se dá pra isso é que pelo menos eu aprendi a lidar com isso é simplesmente ignorando, vivendo, mostrando pra essa pessoa cada vez mais que você consegue. Eu sempre digo que quando eu venho numa batalha de rap, eu consigo gravar alguma música ou fazer alguma poesia eu tô fazendo por dois, eu tô fazendo tanto por mim como Micael quanto pras pessoas que me julgam, que disseram que eu não era capaz de conseguir aquilo até o momento em que eu alcancei.

Eu gosto também de fazer uma grande separação, porque como eu fui criado num contexto mais urbano, eu sempre lidei com pessoas mais da informalidade. E é claro, tem que ter aquela separação de que muita das vezes as pessoas também fazem comentários capacitistas não por ato de maldade, mas sim porque foi criado em um contexto onde aquilo não é comum, que nem o Jialu falou, criado naquele contexto de que isso seria um problema adaptativo. E aí já lidei com várias piadinhas, apelidos, coisas que acontecem com pessoas que sofrem condições de deficiência. E assim vai se lidando. Agora com capacitistas, a melhor forma que eu Micael aprendi de lidar com isso é vivendo. E viver e vencer o limitado faz o que ele acha que é limitado se tornar ilimitado.

Jialu: Como eu passei 35 anos da minha vida sem saber que eu tinha autismo, o que acontece é que eu passei por muita situação de capacitismo sem saber e também com certeza reproduzi o capacitismo. Porque o capacitismo, antes de mais nada, é estrutural. As características do autismo que se manifestavam em mim quando eu era criança eram muito percebidas como uma frescura, elas eram muito banalizadas. E principalmente aquelas características que são consideradas inconvenientes e também aquelas que poderiam acabar gerando algum malefício mesmo pra mim. Então por exemplo, eu não sei assim, eu acho que a gente nem sempre fala… bom, eu estou participando da comunidade do autismo e ouvindo coisas não tem tanto tempo, né? Mas assim, eu ouço a gente falar pouco sobre autoagressão, o comportamento agressivo se voltar para si mesmo. E isso é uma coisa que eu manifestei desde o início da minha vida.

Então assim de fato é uma coisa que me fazia mal e que não era banalizada necessariamente. Foi uma coisa que minha mãe, meus pais e minhas irmãs não sabiam muito bem como ajudar. Mas as outras características, como por exemplo a seletividade alimentar, a hipersensibilidade sonora, tátil, eram muito identificadas como frescura. Ou então as questões da comunicação eram muito identificadas como grosseria. Então assim eu passei a vida toda recebendo esses rótulos, eu acho que isso acontece inclusive com pessoas que sabem que são autistas. Só que eu não sabia que eu estava passando por um capacitismo. Então o que aconteceu comigo é que eu introjetei esses rótulos e isso acabou marcando demais a minha subjetividade e a minha capacidade de me relacionar com o mundo.

Uma coisa que eu achei muito interessante quando eu recebi o diagnóstico foi perceber que quando eu falava repetidamente quando eu era criança em algumas situações que eu não conseguia, “eu não consigo”, eu ficava repetindo assim quando as pessoas me provocavam a fazer alguma coisa nova ou a comer alguma coisa nova e eu falava isso. E as pessoas achavam que eu estava me achando incapaz e burro. E foi muito bom entender que não era isso que estava acontecendo. É que eu estava com muita dificuldade, por exemplo, de lidar com alguma coisa nova. Então não é que eu não conseguia, eu não queria. E a linguagem ela vinha com essa limitação de não saber explicar, ainda mais pra uma criança. E então assim eu acabei introjetando determinadas coisas que são frutos de interpretações equivocadas e muitas vezes do capacitismo estrutural e também do capacitismo direto mesmo.

Já em relação à espondiloartrite tem sido um pouco mais evidente, principalmente nas pessoas com quem eu conheço. Quem eu não conheço não sabe porque não está vendo, mas as pessoas que eu conheço que já sabem da minha condição muitas vezes elas agem de forma capacitista comigo. E eu me dou conta mais rápido do que em relação à questão do autismo. Agora eu estou começando a me dar conta em relação a tudo, né? E é assim como é a questão do racismo, a questão do machismo e da LGBTfobia, assim, quando a nossa consciência abre pra entender melhor o que se passa em relação a essas coisas, é impossível ela fechar. Então a gente começa a perceber o tempo todo. Só que a minha capacidade de resposta não é muito boa. Na maioria das vezes eu também não sou uma pessoa tão bem humorada que consiga responder de repente com uma piada. É muito raro eu conseguir fazer isso assim. Muitas vezes eu passo pela situação e eu só percebo no dia seguinte. E aí eu já não sei mais se vale a pena falar quando é alguém que eu conheço. Se for alguém que eu não conheço, não tem como falar mais nada.

Mas enfim, só pra terminar uma coisa que a gente estava falando sobre limitações nas outras respostas e aí eu queria só dizer que concordo com Micael em relação a existir um problema social de não saber lidar com limitação. A gente acha que limitação é uma coisa negativa, que todo mundo tem limitação. Na verdade são limitações diferentes que vão necessitar de suporte em níveis diferentes e também tem a ver com a relação da doença e da deficiência, as duas as duas coisas são consideradas ruins, são consideradas um problema, inferiorizadas ou são condições que inferiorizam as pessoas. As pessoas inferiorizam quem tem tanto uma doença como uma uma deficiência porque tem essa percepção social de que a limitação é negativa e essas pessoas evidenciam mais a limitação. Tem acho que tem essa o capacitivo também vem um pouco disso assim.

Carol: E pra finalizar o nosso episódio, eu queria saber como vocês acreditam que a luta por inclusão e acessibilidade pode avançar em relação ao reconhecimento das deficiências visíveis e invisíveis.

Jialu: Para mim esse assunto da acessibilidade é muito interessante. Eu tenho muita vontade de falar mais sobre isso e uma das coisas que eu tenho pensado muito é sobre a questão do desenho universal que está escrito na LBI. Eu estava refletindo muito sobre a questão da equidade, que a nossa sociedade não é estruturada de uma forma que a gente tenha equidade. A equidade não é a mesma coisa que a igualdade porque nós somos muito diferentes. Então nós precisamos de acesso de formas diferentes pra acessar a mesma coisa, nós precisamos de diferentes suportes, diferentes oportunidades e a equidade vai dar na medida da necessidade de cada um. Então se você é uma pessoa neurotípica, você vai ter uma necessidade X pra fazer determinada coisa. Se você é uma pessoa neurodivergente, vai ser outra. Então, o desenho universal que tá na lei, da forma como eu entendo, ele diz respeito justamente a isso. A sociedade precisa ter um desenho, um modelo, um projeto que vai contemplar todas as existências, todas as diferenças de forma que todas elas tenham acesso. E isso faz com que a acessibilidade não seja ajuda pra quem é uma exceção à regra.

Porque eu acho que a lei é muito bem escrita, mas ela não tem sido praticada porque hoje em dia o que a gente entende por acessibilidade está muito mais atrelado a: “eu vou fazer esse negócio aqui pra poder dar acesso a essa determinado grupo aqui só quando esse determinado grupo se mostrar. Então se tiverem pessoas na minha palestra eu vou contratar uma pessoa intérprete”. As pessoas com deficiência são vistas como exceção. E então a acessibilidade seria só pra ajudar essas pessoas a terem acesso a determinadas coisas e não é um acesso a tudo. Eu acho a forma que a gente pode contribuir no debate em relação a acessibilidade para condições de deficiência visíveis e invisíveis é frisar e reivindicar pelo desenho universal e eu acho que o desenho universal vai contemplar as deficiências invisíveis.

Porque como é que você dá acessibilidade para uma deficiência que não é perceptível pros outros? Então o clássico da situação do transporte público, como eu falei no início. Eu chego a um transporte público, tem dias que eu estou com muita dor pra ficar em pé e é mais difícil do que ficar sentado. Mas eu não consigo me manifestar se não tiver nenhum banco, eu fico sofrendo todos os dias. Eu saio na rua, vejo diversas pessoas com alguma deficiência ou alguma limitação motora por exemplo muito visível. Aí eu fico pensando: imagina quantas mais pessoas que tem alguma condição limitante invisível que vão se somar a essas que tem condições visíveis e que a gente precisa perceber que não é uma exceção? Então o desenho universal é muito importante. Enfim, eu acho que isso é uma das coisas mais importantes pra gente conseguir mudanças assim sociais em relação à comunidade das pessoas com deficiência, das pessoas com autismo que se inclui às pessoas com deficiência e as pessoas com condições crônicas de saúde e pra todo mundo, né? E pra gente ter uma convivência melhor socialmente.

Micael: Falando do desenho universal, que o Jialu já documentou, que como se falou acessibilidade é muito importante, principalmente o entendimento das pessoas com deficiência sabendo suas condições. Mas falando sobre a minha questão, eu acho que a melhor maneira que eu vi foi que eu utilizei para superar todos os atos capacitistas é primeira entender. E quando eu falo entender é não só entender sua deficiência, suas condições, procurar um diagnóstico, que é básico, mas também entender e estudar um pouco sobre a sociedade através de tudo. Então, eu acho assim, é claro, não é pra todos, não é uma lei universal entender deficiência de uma só maneira. Mas eu acho que a pessoa deveria cada vez mais mostrar que nem o Introvertendo faz aqui através do seu podcast como consegue se adaptar melhor a sua deficiência e mostrar de maneira bruta mesmo escancarada tipo, olha: “eu sou cego, mas eu consigo conviver, eu sou surdo, mas eu consigo conviver, eu sou manco, mas consigo conviver”. E quanto mais essa representatividade, mais justiça, orgulho de suas capacidades e o entendimento de suas limitações, melhor pra sociedade entender realmente o impacto que as pessoas têm pro nosso mundo e como lidar melhor com isso.

Aproveitando já pra encerrar, eu queria permitir pra vocês, quando me convidaram pro podcast quis mostrar um pouco do meu trabalho, como é que eu respondo pros seus capacitistas que através da poesia e eu criei que é uma poesia chamada Rampas para o Céu, que eu vou editar agora, justamente pra encerrar a minha deixa. Deficiente? Que deprimente! Depois de vários anos de superação, uma palavra ainda define a gente. Uma letra só me separa de ser deficiente, porém sou ciente do que acontece com meu corpo e mente. E isso sim me faz diferente, mas não me faz um delinquente subserviente, não. Eu sou um sobrevivente, sim. Sobrevivendo com os limites que carrego do início ao fim. A cada passo torto se torna uma linha reta escrita pela caneta. Eu sou realmente incomum, mas não uso minha condição como muleta. Sou daqueles que mostram que os aleijados também trampam. Vocês sofrem para subir escada. Somos mais sinistros. Usamos rampa. Eu só queria ter preferência no direito de falar. Poesia não me excluiu, apenas serviu para me expressar. Você pode até tentar, mas não vai conseguir agir. A ponte do meu castelo triste te abaixou e eu fugi. Este mundo está lotado de cegos que não querem enxergar, surdos que não querem ouvir, autistas que não querem entender, aleijados que não conseguem agir. Deficiente? Que deprimente! Mal sabem eles que são cada vez mais o motivo de eu me tornar mais eficiente.

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