Deficiência é um termo que, no senso comum, pode ter várias interpretações. Mas de acordo com os estudos da deficiência, o que é uma deficiência? E o autismo, segundo sua história, é considerado uma deficiência? Em agosto de 2022, Tiago Abreu estreou a palestra “O autismo é uma deficiência?” em um evento promovido pela associação Autismo & Vida em Porto Alegre. O áudio da palestra, na íntegra, está disponível agora no Introvertendo. Foto: Ju Loebens. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Olá para você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo, também sou escritor e ocasionalmente faço palestras sobre autismo e temas correlatos. E quem acompanha o Introvertendo há mais tempo sabe que de tempos em tempos a gente libera aqui áudios de palestras que integrantes do podcast, geralmente eu principalmente, trazem ou ministram em algum lugar do Brasil. Dessa vez não é diferente.
Agora eu tô com uma palestra nova chamada “O autismo é uma deficiência?”. É uma pergunta. E o primeiro lugar onde eu fiz essa palestra foi aqui em Porto Alegre, onde eu resido hoje em dia, na Associação Autismo e Vida, que é uma das associações aqui da cidade. Foi uma palestra muito legal, eu fiquei muito satisfeito com o resultado, tão satisfeito. E como algumas pessoas me perguntaram se ia ter transmissão on-line ou não e não tinha, eu resolvi gravar a palestra pra ver se ficaria legal e agora eu estou aqui disponibilizando pra vocês a versão em áudio.
Essa apresentação, claro, como eu faço, também teve apresentação de slides. Então se você quiser o que que eu estava projetando no momento, é só você acessar o site que lá tem os slides para você acessar. Caso você ouve o podcast e atue em alguma associação ou algum órgão e quer me convidar pra poder ministrar essa palestra, eu também estou fazendo ela em outros lugares. É claro com algumas diferenças, porque eu vou modificando algumas coisas a cada experiência de palestra. Mas o conteúdo dela de uma forma geral está aí.
Enfim, o áudio vai ser tocado na íntegra, eu apresento a palestra como um todo, depois no final o pessoal começou a fazer perguntas e comentários, eu não vou poder disponibilizar isso porque envolve a privacidade pessoal das pessoas, mas foi uma discussão muito legal. A gente debateu várias questões relacionadas à deficiência e sobre a forma como as pessoas enxergam o autismo publicamente, certo? Então, é isso, pessoal, sem mais delongas, o áudio completo da palestra sem cortes com vocês. Valeu.
Transição
Tiago: Uma boa tarde pra todo mundo. Primeiro, queria agradecer bastante o convite da Autismo & Vida, mas principalmente na pessoa da Claudia que fez esse convite. E ainda mais na Semana da Pessoa com Deficiência. Porque muitas das vezes quando a gente fala sobre autismo, a gente não discute também deficiência, então é um bom período também pra contextualizar. E o tema de hoje é: “o autismo é uma deficiência?”, uma pergunta pra gente ver algumas questões relacionadas a isso.
Então a Claudia já já me apresentou um pouco, mas falando uma forma mais completa, eu sou jornalista de formação, eu me formei na Universidade Federal de Goiás, onde eu fiz graduação e atualmente eu tô aí na fase final do mestrado em Comunicação pela mesma instituição. Eu vim aqui pra Porto Alegre desde o ano passado, então moro aqui há pouco tempo e eu estou na comunidade do autismo já tem quase 10 anos de uma forma geral. Tenho o podcast Introvertendo, que é um programa em áudio que discute autismo na vida adulta. Ele existe desde 2018.
E agora eu também tenho um outro podcast que é o Espectros, que é feito em parceria com a Revista Autismo sobre a história do autismo no Brasil e os principais ativistas que existiram ao longo desses 40 anos em média.
E o meu principal tema de interesse são as produções culturais no âmbito do autismo. De entender um pouco como as coisas ocorrem dentro da comunidade, como as organizações interagem entre si e também mais recentemente um chamado ativismo autista que existe aí há cerca de 10 anos que está começando a ter um pouco mais de impacto no Brasil. E um tema também de muito interesse é a neurodiversidade, que a gente vai falar um pouquinho também onde que isso entra nessa discussão sobre autismo e deficiência.
Então vamos voltar aqui a pergunta inicial. O autismo é uma deficiência? Pra gente responder essa pergunta de uma forma mais profunda, é importante a gente entender o que é o autismo, o que é deficiência e de que forma isso está relacionado. Então primeiro queria falar sobre o autismo. Hoje em dia a gente entende ou pelo menos a comunidade científica entende o autismo como um transtorno do neurodesenvolvimento, essa palavrona gigantesca. Mas nem sempre foi assim, nem sempre o autismo foi entendido dessa forma. Então vamos voltar um pouco na história pra entender.
Primeiro, tanto pela comunidade científica e pela sociedade, a gente sabe que o autismo é um termo, uma palavra que foi utilizada inicialmente no início do século XX por um pesquisador chamado Eugen Bleuler e ele utilizou essa palavra “autismo” no contexto da esquizofrenia. Então o autismo, pelo menos inicialmente, não era um diagnóstico propriamente dito. Ele só foi se tornar um diagnóstico independente na década de 1940 quando o Léo Kanner, nos Estados Unidos, começou a estudar um grupo de 11 crianças e aí a partir do relato das famílias, e trabalhando com essas crianças, ele vai definir aquilo que chama de distúrbios autísticos do contato afetivo.
E o trabalho do Léo Kanner foi muito importante na história do autismo porque ele vai observar o autismo como uma condição do desenvolvimento. Então ele vai observar isso desde a infância. E antes dessa associação de autismo e esquizofrenia, a gente sabe que muitas vezes a esquizofrenia é identificada mais tardiamente. Então o autismo era muito visto como esse distanciamento do mundo exterior só que desde a infância.
Na mesma época, concomitante, Hans Asperger estava pesquisando um grupo de crianças e pré-adolescentes e ele vai falar em psicopatia autista. A diferença entre ele o Leo Kanner é que a observação do Asperger é do autismo como transtorno de personalidade, é um pouco diferente da noção de condição do desenvolvimento que o Leo Kanner vai apresentar. E aí a descrição do Leo Kanner é que ganha o mundo, Leo Kanner nos Estados Unidos, então o trabalho dele tem um impacto muito maior. E aí ao longo do tempo, a comunidade científica e a sociedade vão sabendo um pouco sobre o autismo mas muito, muito, muito pouco.
E aí é muito importante a gente fazer esse caminho histórico porque mais ou menos ali na década de 1950 já começou-se a ter um discurso de que o autismo era causado pela falta de afeto da mãe e do pai, que era a noção de mãe geladeira. Eu não sei se alguém já ouviu falar isso. Isso foi uma ideia muito forte, muito preponderante sobre o autismo. Hoje em dia ainda tem algum profissional ou outro que geralmente adota uma linha um pouco mais psicanalítica.
E essa ideia foi muito forte, foi muito estabelecida. O próprio Leo Kanner defendeu essa ideia, até um certo período depois ele voltou atrás e tem um uma grande figura por trás também dessa ideia de mãe-geladeira que é o Bruno Bettelheim. A formação dele era de Letras, mas ele atuava como psicólogo e ele publicou um livro chamado A Fortaleza Vazia, que até hoje é um dos livros mais populares sobre autismo em que ele segue muito essa ideia.
Então nessa época, o problema do autismo era da família, então não se lidava com a pessoa que está diagnosticada e sim com os familiares. E aí geralmente essas crianças eram separadas de seus pais e tinham uma grande tensão em relação a isso. E o trabalho do Hans Asperger não alcançou uma grande relevância. Pouco na comunidade científica se conhecia sobre isso. Da década de 1940 até os anos 1980 foram cerca de 100 trabalhos no máximo que falaram sobre esse trabalho do Hans Asperger. Então ele passou de uma forma muito despercebida.
Principalmente nos Estados Unidos, onde essa ideia de uma geladeira era muito forte, um grupo de famílias, principalmente mães e pais começaram a combater essa ideia da mãe geladeira. Porque aí começavam a ter algumas tensões. Famílias que já tinham um filho sem deficiência depois de um filho com deficiência. Como é que os pais causavam a deficiência dos seus filhos? E aí um pesquisador, e também pai chamado Bernard Rimland começa a trabalhar a ideia de que o autismo é algo biológico.
E aí ele publica um livro e no final desse livro tem um um guia assim com várias características. E aí as famílias começam a adquirir esse livro, se identificar com autismo e trocar correspondência com ele. Nascia ali um ativismo do autismo mais forte nos Estados Unidos, enquanto no Reino Unido a gente tem uma psiquiatra britânica chamada Lorna Wing, que era mãe de uma menina autista e que também começa a fazer o ativismo no Reino Unido e é uma das fundadoras de uma das maiores associações de autismo, que é a National Autistic Society. Ela é quem depois vai propor a ideia de Transtorno do Espectro do Autismo.
Mas até a década de 1970, quando a gente começa a entender o autismo como essa questão como algo da formação do indivíduo, o autismo era considerado uma condição muito rara e quase sempre incapacitante. Aqui, entre muitas aspas. E aí, algumas coisas começam a mudar nesse percurso, que é o que a gente vai falar aqui. Quando a gente fala sobre autismo, no processo de diagnóstico, muita gente tem o CID, que é aquela classificação da OMS que ali no processo de atendimento médico você recebe um código às vezes ou seu ou da dos seus filhos, enfim, dependendo quem está assistindo aqui é familiar ou é uma pessoa no espectro. E a gente também tem o DSM, que a gente ouve falar muito. É o manual feito pela Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos.
E a gente consegue entender um pouco desse percurso histórico sobre o autismo também como essa parte do atendimento clínico começou a definir o autismo e lidar com isso publicamente. Então o DSM, que é o manual que é utilizado não só Estados Unidos, mas em grandes vários países no mundo, não tinha nenhuma menção ao autismo no DSM-I e no DSM-II. O máximo que tinha era a noção de esquizofrenia infantil, uma coisa muito vaga e também nessa época ainda dominava aquele padrão psicanalítico de que o autismo era causado pelas famílias.
Foi nos anos setenta que alguns pesquisadores, já embasados nessa ideia de autismo como algo biológico, começaram a trabalhar numa definição de autismo mais clara, mais assim. Mais evidente. E aí, em 1980, o autismo entra no DSM-III. Isso foi um grande avanço porque é no DSM-III que o autismo é definido como um transtorno do desenvolvimento, uma condição desde a infância. Só que nessa época a gente ainda tinha uma noção do autismo com uma condição só de infância. Como era um diagnóstico muito recente, então quem tinha diagnóstico naquele período eram crianças. Era um período muito complicado, muitas das vezes as pessoas que eram diagnosticadas com autismo nesse período tinham como único caminho a institucionalização. Não se tinha ainda uma perspectiva de inclusão mais clara como a gente tem muitas e muitas décadas depois. Mas ao longo do tempo algumas coisas começam a mudar.
Em 1981, a Lorna Wing tem o contato com aquele artigo anterior do Hans Asperger que falava ali sobre casos de autistas na infância e na adolescência que ele dizia que tinha o cognitivo preservado, tinha uma inteligência preservada, e ela vai e publica um artigo sobre a Síndrome de Asperger. Ela batiza nesse artigo em homenagem a ele, porque o Asperger se não me falhe a memória morreu em 1980. E aí ela vai escrever sobre esse diagnóstico e aos poucos a comunidade científica vai lidando com a ideia da possibilidade desse diagnóstico.
Em 1987, a própria Lorna participa do DSM-III-R, a revisão, porque às vezes eles revisam e tal. E aí eles fazem uma mudança importante. Ao invés de falar em “autismo infantil”, eles falam sobre “transtorno autista”. E eles estabelecem 16 critérios de diagnóstico baseados em três domínios: Dificuldades na interação social, dificuldades de comunicação e comportamentos repetitivos, que é uma coisa que a gente vê ainda como esses três domínios até hoje. E aí nessa discussão sobre a síndrome de Asperger e esse autismo “leve”, a gente tem a CID-10, que é a classificação em 1992, que vai trazer dos transtornos globais do desenvolvimento, que é o autismo, autismo atípico, transtorno desintegrativo da infância, síndrome de Rett que hoje em dia já não está mais dentro do que a gente chama de autismo. E um outro não especificado. E aí entra a Síndrome de Asperger.
O DSM-IV vai trabalhar na mesma perspectiva. Então esse diagnóstico se torna definitivo ali no DSM também. E o DSM traz uma uma descrição das abordagens que são positivas para autistas um pouco mais restrita e mais consistente do que da DSM-III. A grande confusão que os profissionais tinham na época era: “tá mas o que que a gente faz?”. Aí tinha uma longa lista de coisas, então eles foram adotando os critérios mais científicos nesse sentido. E aí o tempo foi passando, de 1994 a discussão sobre o autismo cresce muito no mundo. E a gente começa a ter outras dimensões sobre o autismo sendo abordadas. E isso tem uma grande parte a ver um debate que se tinha sobre as várias formas de ser existir no espectro do autismo.
A gente tem também o início das pessoas na vida adulta começarem a falar sobre o autismo e a comunidade científica começa a se questionar: “OK, essa Síndrome de Asperger, qual é a diferença real entre ela e aquilo que se chamava de autismo de alto funcionamento?”. E aí começa um debate muito significativo de quão útil seria ter esse monte de diagnósticos ao invés de ter uma categoria única que seria o Transtorno do Espectro do Autismo. E isso tem o impacto de debates, de discussões que vão até hoje, não é algo definitivo, mas o DSM então estabelece a ideia de Transtorno do Espectro do Autismo que era lá Lorna Wing.
Em 2022, o CID-11 também vai trazer essa definição de Transtorno do Espectro do Autismo. Há uma diferença entre a forma como o DSM e o CID classificam o autismo que eu vou explicar aqui pra vocês a partir desse quadro. Aqui está um resumo de como o autismo aparece na CID-11. Hã?
Público: Dá pra eu fazer uma pergunta? Ali em 2022 cai o termo Asperger, então?
Tiago: No contexto da CID sim. Só que a comunidade científica ainda continua falando sobre Síndrome de Asperger. Em termos de comunidade, existe um certo mal estar em falar em Síndrome de Asperger por causa de um trabalho de um historiador que saiu em 2018 que identificou que o Hans Asperger colaborou ativamente pro programa de eutanásia de pessoas com deficiência durante a Segunda Guerra. Então convencionou-se assim socialmente a gente costuma falar mais só sobre o autismo, mas a comunidade científica ainda se questiona se um diagnóstico independente ainda seria útil com o nome Asperger ou sem o nome Asperger, no caso.
Público: Também tem a questão do preconceito também que o Asperger talvez esteja mais bem visto.
Tiago: É, e eu vou falar sobre isso um pouco mais ali adiante. Mas enfim, em termos de convenção, na comunidade do autismo a gente tem tendido a falar menos sobre Asperger e falar mais sobre o autismo de forma geral. Mas em comunidade a gente acaba tendo que usar certos termos para definir sobre qual autismo a gente está falando. Então às vezes alguém fala “autismo leve”, “autismo com menor dificuldade”. Então a gente sempre tem uma palavra pra poder ocupar o lugar desse termo que era muito forte antes.
E no Brasil a gente ainda apesar de já ter assim a CID-11, a gente tem um tempo de adaptação. Então muitos profissionais ainda estabelecem os diagnósticos a partir dos códigos da CID-10. Então é uma longa discussão. O DSM, voltando um pouco em 2013, vai falar sobre o autismo em dois domínios. Dificuldade de interação social e de comunicação e comportamento restritos e repetitivos. A forma como o CID-11 vai definir os casos de autismo é um pouco diferente. Vai ser pelo uso da linguagem funcional ou pela presença de transtorno do desenvolvimento intelectual.
Então, é possível que tenham autistas, por exemplo, sem transtorno de desenvolvimento intelectual e com uso de linguagem funcional sem prejuízo, que era uma coisa um pouco difícil de ser identificada antes. Ao mesmo tempo que a gente tem autistas, por exemplo, com transtorno de desenvolvimento intelectual e com linguagem funcional ausente, que são aqueles autistas que alguns chamam de não verbais ou não falantes. Então a amplitude do que a gente fala sobre autismo é bem significativa, então a gente tem seis subcódigos aí na classificação do CID-11. Aqui falando mais em termos médicos, mas quando a gente fala sobre autismo a gente tem outras dimensões também que a gente vai abordar aqui um pouco mais.
E aí eu queria falar um pouco mais sobre deficiência de uma forma geral antes da gente voltar no autismo. E como é que fica a questão das pessoas com deficiência em toda essa discussão sobre o autismo? E aí primeiro eu acho que é muito importante a gente discutir o que é deficiência. Eu trouxe uma uma referência que depois eu vou trazer ali na na lista geral e eu acho que eles dão uma definição de deficiência muito interessante que eles vão falar que a deficiência é um termo que geralmente é usado para definir condições que desviam de um padrão social físico de funcionamento.
E a Americans with Disabilities Act tem essa definição que eu acho muito interessante que diz que deficiência é uma condição que limita significativamente as principais atividades de vida de uma pessoa. E nessa definição de deficiência, vai sendo dito também que a deficiência ela é identificada por meio da interação social, independentemente se seja uma deficiência visível ou invisível.
E o conceito, a ideia de deficiência ela foi pensada por várias óticas pela qual tem várias críticas às vezes por uma ótica até religiosa, médica, social, cultural, de identidade e várias outras aqui que a gente vai falar um pouco por cima, tá?
Então, nessa discussão sobre deficiência, a gente tem uma parte histórica relacionada ao movimento das pessoas com deficiência e a construção de modelos da deficiência. O que que acontece? Durante grande período da história, não se tinha talvez socialmente o uso da palavra deficiência para se referir às pessoas com deficiência. Mas a gente tinha sim uma noção social porque pessoas com deficiência sempre existiram ao longo da história e as pessoas foram lidando de diferentes formas com a temática da deficiência.
Então por exemplo, em meios religiosos tinha uma visão de deficiência como algo a ser curado, como algo a ser liberto. Tem algumas religiões que já vão pensar deficiência no sentido quase puro, assim, de pureza. Então, a gente teve várias noções sobre deficiências, algumas combatidas pelos grupos das pessoas com deficiência, que é o que a gente vai falar.
Então mais ou menos até ali a década de 1970 prevaleceu, na discussão pública, a ideia de deficiência como lesão, como doença, um problema do indivíduo. Isso depois foi chamado de modelo médico ou modelo biomédico da deficiência. E aí na década de 1960, os primeiros ativistas com deficiência começam a escrever sobre deficiência e questionar esse status quo que é a deficiência é uma lesão, é uma doença. E aí tem alguns teóricos ingleses que vão começar a trabalhar nisso, sendo mais proeminente o Mike Oliver que publica o seu primeiro livro nos anos 1980. Mas esse movimento já estava se consolidando desde os anos 1960. E aí foi-se surgindo uma primeira geração de ativistas e de teóricos sobre a deficiência que vão definir a deficiência por meio da falta de acesso a contextos por exclusão social. O que significa isso? Que a deficiência ela só existe por causa das barreiras da sociedade. E esses teóricos, principalmente no Reino Unido e nos Estados Unidos, vão então defender que a deficiência, a partir do momento que as barreiras deixassem de existir, a deficiência passaria a não importar, de uma forma geral.
E aí essa ideia sobre deficiência prevaleceu principalmente nos anos 1980 e mais tarde algumas teóricas, entre elas mulheres com deficiência… porque essa primeira geração do modelo social era formada principalmente por homens com deficiência física e que geralmente tinham status social e financeiro acima da média. Então eram pessoas que tinham um contexto de deficiência diferente do que talvez um grupo geral teria. E aí tem um grupo de mulheres, entre elas mulheres com deficiência e cuidadoras, que vão começar a questionar algumas coisas. Elas vão considerar que essa noção aqui de modelo social foi muito importante, porque trouxe a discussão sobre deficiência para um patamar fora desse meio médico, mas ao mesmo tempo não prestou atenção em outros aspectos como o cuidado das pessoas com deficiência, e também com relação à própria experiência em primeira pessoa de algumas pessoas com deficiência em relação as suas dores. E aí elas vão falar sobre deficiência a partir das questões do cuidado.
E eu acho isso muito interessante trazer essa parte histórica aqui porque quando a gente fala sobre cuidado nessa questão da deficiência, a gente lembra muito das próprias discussões sobre o autismo. De que forma as famílias ficavam responsáveis pelo desenvolvimento dos seus filhos até hoje. E quando a gente discute deficiência hoje, hoje em dia, no contexto do autismo, a gente sempre tem que falar um pouco sobre a família, sobre a jornada, muitas vezes dupla, sobre, por exemplo, a maternidade solo que infelizmente muitas vezes ocorre em famílias em que os pais acabam abandonando. Essa discussão sobre deficiência a partir das questões do cuidado acabou levantando outros debates que fizeram consolidar hoje uma noção de deficiência que a gente fala que a deficiência pode ser definida a partir da relação das características do indivíduo e a interação com as barreiras da sociedade, que é a noção que a ONU traz na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência.
E aí mais tarde, com o crescimento de outras correntes de outras pessoas com deficiência e que isso vai incluindo inclusive os próprios autistas, vão ter outras definições sobre deficiência que até hoje as pessoas discutem. Então deficiência como uma questão de identidade, como por exemplo outras minorias como mulheres, como LGBTs e etc vão ter, outras pessoas que vão definir deficiência a partir de uma ideia de cultura, outros vão falar sobre outras questões. Mas enfim, esse histórico básico do entendimento sobre deficiência pode ser inicialmente dito em relação a essas três fases: o modelo médico, a primeira geração do modelo social que vai trazer essa discussão mais pro social e menos pro médico e a geração feminista ou a segunda geração pra falar sobre a questão do cuidado e sobre a experiência da própria pessoa com deficiência que inclui os seus pontos positivos, mas também a dor em alguns aspectos.
Então, avançando um pouco, vamos agora fazer o cruzamento entre essas discussões. Entre o movimento PCD e o que que isso tem a ver exatamente com o público autista? E aí a gente tem o surgimento e isso principalmente em países que falam inglês de um movimento de ativismo de autistas isso ainda nos anos 1980. A primeira figura proeminente foi a Temple Grandin. Não sei se vocês já ouviram falar sobre ela, ela é uma zootecnista, uma pesquisadora que recebeu o diagnóstico de autismo tardiamente, se não me falha a memória na década de 1980, mas que se tornou uma pesquisadora e aí a partir da sua própria experiência com autismo ela publicou o seu primeiro livro em 1986, aquele livro ali o Emergence: Labeled Autistic, que é um livro que ela vai falar sobre a experiência dela como autista em primeira pessoa com um prefácio do Bernard Rimland, que tinha sido aquele pai pesquisador que combateu a ideia da mãe geladeira lá nos anos 1960.
E aí esse livro dela é muito importante porque ela abre uma porta para uma geração de pessoas ali ainda na 1980 que vão publicar seus primeiros livros. Tem a Donna Williams que também tem alguns livros traduzidos no Brasil que publicam os primeiros livros ali nos anos 1980 e início dos anos 1990, mas até aquele momento falar sobre o autismo em relação aos adultos era muito nesse cenário da experiência. E aí o que acontece é que nessa época já existia as primeiras associações associações de pais bem consolidadas e essas primeiras pessoas chegaram querendo de alguma forma participar desse processo de ativismo. E aí começam algumas tensões naturalmente.
Então chegam essas primeiras pessoas na vida adulta que geralmente se comunicam oralmente. Nessa época a noção de autismo era algo em si só muito grave. E isso começa a levantar a desconfiança de algumas famílias. E aí alguns embates começam a ocorrer. Os primeiros ativistas autistas, sem espaço de certa forma, começam a usar a internet que estava engatinhando naquele momento para se comunicar uns com os outros. Então eles começam por exemplo a formar fóruns de discussão e começam a atrair debates com pessoas do mundo inteiro.
E uma figura muito importante, muito proeminente é Jim Sinclair, que na naquela época tinha até um certo alcance parecido com a Temple Grandin, mas como ele tinha um posicionamento digamos assim mais “radical”, não teve a mesma visibilidade que a Temple tinha. Ela tinha um diálogo ali com a comunidade científica, com os pais e ela era bem quista. E aí eles seguiram rumos diferentes. Jim formou a Autism Network International, que foi a primeira associação de autistas formada nos Estados Unidos. Foi fundada por Jim Sinclair, Donna Williams, que se tornou uma escritora bem relevante sobre autismo, junto com a Kathy Grant.
Eles vão começar primeiro nesse trabalho mais direto de fazer evento sobre autismo, reunir autistas, discutir sobre as características deles, ver o que que se tinha de positivo já que tudo sobre autismo na época era apenas déficit e isso começa a ter uma certa penetração pela internet e ter uma uma relevância. E Jim publicou um manifesto em 1993 que se chama Não Chore por Nós, que ganhou muita notoriedade na época, mas também foi bastante polêmico por questionar narrativas negativas ou trágicas sobre o autismo. E esse manifesto muitas vezes é considerado por alguns autistas como o primeiro passo na formação de um movimento social de ativismo de autistas.
E aí como eu falei, ocorrem algumas tensões e alguns conflitos com as famílias que ocorrem até hoje, embora hoje em dia a situação é um pouco mais harmônica e isso tem reflexos no mundo inteiro, inclusive no Brasil, que é o que a gente vai falar já já. Então que que a gente tem em seguida? A gente tem também a formação daquilo que alguns chamam de movimento da neurodiversidade. Essa palavra é uma palavra que hoje em dia está mais conhecida, apesar de que nem todos saibam o que é neurodiversidade.
E esse conceito, essa ideia de neurodiversidade, foi proposta por uma socióloga australiana chamada Judy Singer e aí eu quero contar rapidinho a história dela, tá? A Judy nessa época era uma mãe solo, ela tinha acabado de ter uma filha e ela percebia que a filha dela tinha algumas características do autismo. Ela tinha tido contato com a história da Temple Grandin e começou a pensar que talvez a filha dela fosse autista e também a mãe dela que já era idosa, que ela cuidava, provavelmente também era autista porque tinha algumas características. Um profissional chancelou que a filha era. A mãe nunca recebeu diagnóstico, morreu alguns anos depois.
E ela começa a ter contato com os estudos da deficiência britânicos e dos Estados Unidos. Toda aquela discussão sobre a deficiência que os ativistas tinham e a própria história dessa relação entre autistas na internet que se tinham nos fóruns e ela propõe a ideia de neurodiversidade. Neuro de neurologia mesmo e diversidade de diversidade. Então ela vai propor a junção dessas palavras pra falar que neurodiversidade é a diversidade mental ou neurológica da população humana.
Então como a gente tem aquela palavra “biodiversidade” que a gente fala sobre a riqueza da biodiversidade do Brasil, por exemplo, dos animais e etc, a neurodiversidade seria a riqueza, a pluralidade da forma de pensar, da forma de agir, de autistas e outras pessoas. Então a neurodiversidade diz respeito a todo mundo. E ela diz essa ideia, esse conceito de neurodiversidade que é um conceito mais social e estaria representado na prática com esse ativismo autista que estava surgindo ali no início dos anos 1990. E ela vai pensar que o movimento da neurodiversidade na verdade vai incluir o autismo mas também TDAH e dislexia.
É muito importante aqui falar que quando ela sobre neurodiversidade no final dos anos 1990 ela estava pensando principalmente na Síndrome de Asperger. Ela não estava falando sobre outros autismos porque esse era o contexto de autismo que ela estava lidando. Com o tempo, ela vai falando sobre o espectro do autismo de uma forma completa porque ela diz que neurodiversidade não é um termo para fazer juízo de valor. A gente sabe que existem vários contextos de autismo, várias formas de viver o autismo, algumas com mais dependência, outras com menos, mas que a neurodiversidade é só sobre um termo sobre a variedade, as diferentes formas de existir no espectro do autismo.
E esse movimento também vai estabelecer de que o autismo e os outros diagnósticos são como identidades sociais e culturais. Então não seria o “ter autismo”, mas sim do “ser autista”. Isso tem algumas discussões que também a gente vai falar um pouco mais a frente. Mas isso acaba sendo abraçado pelas pessoas e esse termo neurodiversidade é cunhado em 1998, então ano que vem vai completar 25 anos que esse termo foi criado e ele tem um profundo impacto na comunidade do autismo de forma que hoje a gente usa muitos desses termos nos diálogos. Eu vejo até profissionais falando assim: “ah, porque essa pessoa é neurotípica”. “Ah, porque essa pessoa é neurodivergente”.
Então, é um termo que acabou ganhando a comunidade do autismo, apesar de uma inicial resistência e que hoje se faz muito presente, inclusive até em documentos públicos. Recentemente em Recife, a Câmara dos Vereadores estava discutindo a criação de uma lei relacionada a neurodiversidade de uma forma geral, sobre atendimento e aí pensando em autismo, TDAH e outros transtornos do neurodesenvolvimento.
Mas vamos voltar a essa questão então da discussão sobre deficiência. E aí eu trago uma outra pergunta: o autismo é uma deficiência ou é uma diferença? Por que eu trago essa pergunta? Porque quando surgiu a discussão sobre neurodiversidade e a Síndrome de Asperger que começou a ganhar força como diagnóstico, algumas pessoas que eram diagnosticadas com Síndrome de Asperger não se viam necessariamente como pessoas com deficiência e não viam o autismo como uma deficiência e sim como uma diferença em relação às suas próprias experiências e aí que a gente vai questionar aqui nesse momento.
A gente tem alguns desentendimentos sobre essa questão de autismo ser uma deficiência ou ser uma diferença. E aqui eu quero dialogar um pouco com vocês pra gente pensar isso. E o primeiro desentendimento que eu quero dizer aqui e isso tem muito a ver até com questões atuais sobre o autismo é que tem muitos autistas e às vezes algumas famílias que não gostam da palavra deficiência, simplesmente não gostam.
Por várias razões. Uma razão por exemplo que eu traria é que muitas vezes essas pessoas acham que deficiência só diz respeito a condições visíveis e não a condições invisíveis, como é o caso do autismo. Às vezes não vão imaginar que ali há uma pessoa no espectro do autismo porque muitas vezes a noção social também que as pessoas têm sobre o autismo é de uma pessoa que está se balançando, uma pessoa que tem alguma dificuldade em certos aspectos e a gente sabe muito bem que não necessariamente todas as pessoas do espectro do autismo vão apresentar esses comportamentos repetitivos que estão mais socialmente lembrados quando a gente fala sobre autismo.
Também há uma resistência ao uso da palavra deficiência no contexto do autismo porque muita gente associa deficiência quando fala em autismo a deficiência intelectual. Então, voltando lá na questão do CID-11, por exemplo. A gente sabe que tem uma parte no espectro do autismo que muitas vezes tem deficiência intelectual associada, mas tem uma parte também que não. Então o que eu costumo perceber é que muitas vezes as famílias e autistas que geralmente não vivem esse contexto da deficiência intelectual, querem rejeitar a ideia de deficiência para não se associar, para não estar ligado a isso.
E aí, muitas vezes também tem um discurso assim: autismo não é uma deficiência, é um transtorno. E aí é eu acho muito engraçado na verdade essa expressão assim, porque é como se transtorno e deficiência fossem coisas mutuamente excluídas. Tipo, não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas na verdade é um mal entendido. Isso aqui era uma coisa mais em voga até uns anos atrás, hoje em dia eu vejo isso diminuindo um pouco esse discurso, porque aqui no Brasil a gente teve a Política Nacional do Transtorno do Espectro Autista que é de 2012 que também é conhecida como Lei Berenice Piana. Que é uma lei que vai dizer que toda legislação para pessoas com deficiência que há do Brasil também são equiparáveis às pessoas no espectro do autismo. E aí é nesse momento que o autismo é oficialmente reconhecido como uma deficiência.
E por fim, que talvez seja a ideia mais transmitida ao longo do tempo a ideia de que deficiência é algo essencialmente ruim. Então as pessoas não querem ser vistas como pessoas com deficiência. E aí acaba sendo também uma questão bastante complicada ser discutida, trabalhada com as famílias porque isso envolve também uma questão de como as pessoas se sentem em relação ao autismo.
E aí eu trouxe um print que foi uma coisa que eu vi hoje. Eu estava dando uma olhada geral assim na palestra e eu queria trazer um exemplo e aí eu procurei no Twitter algumas coisas sobre essa ideia aqui de que autismo não é deficiência, um transtorno, ou autismo não é uma deficiência. E aí eu encontrei um tweet que eu até tirei aqui pra não identificar quem é de um vereador de uma cidade no norte do Brasil. Então quis trazer alguém bem longe até porque estamos em período de campanha política. É bom não fazer promoção de ninguém.
Mas esse vereador, que é uma pessoa pública, ele twittou o seguinte: “autismo não é doença contagiosa para termos medo. Autismo não é deficiência. A deficiência está em quem não consegue compreender o autismo”. Então aqui a gente vê uma noção completamente distorcida do que é deficiência. Ele tentou de certa forma ter um um discurso em tese inclusivo, mas acabou mirando um sentido totalmente diferente. Infelizmente a gente ainda vê às vezes um discurso desse tipo.
Então a gente tem um outro desentendimento que eu quero trazer como exemplo que é esse aqui, ó: Autistas que se veem como pessoas de intelecto acima da média. E aí tem essa camiseta aqui que eu inclusive eu já vi na internet gente usando. “Autismo não é uma deficiência, é uma habilidade diferente”. E olha pra você ver que curioso. Nós estamos aí há cerca de quase 30 anos com diagnóstico de Síndrome de Asperger e o que aconteceu de lá pra cá foi o reconhecimento de pessoas que hoje entende-se que fazem parte do espectro do autismo que tinham dificuldades um pouco diferentes em alguns aspectos.
São dificuldades de desafios mais sociais. Por exemplo de interpretação de linguagem, de formação de amizades, de relacionamentos, que são alguns desafios que muitas vezes são bastante complexos pra profissionais muitas vezes que só trabalham com autismo na infância. Lidar com esses desafios como temas como sexualidade é algo difícil. [É difícil] lidar isso diretamente com adultos. E tem pessoas que foram diagnosticadas tardiamente, que passaram despercebidas a vida inteira, só conhecem o autismo na vida adulta. Então a visão que elas têm sobre o autismo é totalmente diferente do que a gente geralmente tem e sobre o espectro como um todo ou literalmente sobre o que que é o autismo.
E aí muitas vezes por eles terem as vezes uma inteligência acima da média ou dentro da média que às vezes é associado nessa discussão sobre Síndrome de Asperger, eles não vão se ver como pessoas com deficiência porque na perspectiva deles não tem nada de errado com eles. E eu acho muito engraçado e triste também, obviamente. Porque o que o que a gente costuma perceber, e considerando os critérios diagnósticos do autismo, é que o autismo envolve uma dificuldade de interação e de comunicação, comportamentos repetitivos.
Nesse domínio de dificuldades de interação social, existe uma dificuldade de entender os jogos sociais, a interpretação do outro. Desses vários aspectos, muitas vezes também envolvem como a pessoa se entende e se identifica. Então muitas vezes essa própria pessoa tá dentro do espectro do autismo e não consegue perceber ou descrever as suas dificuldades. As pessoas que convivem com ela às vezes conseguem perceber, mas essa própria pessoa não. Então também tem uma armadilha nesse sentido da pessoa só ver as suas habilidades, o seu intelecto acima da média, mas também não consegue ver quais são as questões que comprometem o dia a dia. E aí ela não consegue fazer essa leitura do autismo relacionado a deficiência.
E a gente tem um terceiro desentendimento aqui, que é essa questão de ter autismo versus ser autista. Essa é uma discussão que surge mais nessa parte do ativismo do autismo. A gente tem até uma discussão que eu acho que às vezes fica até um pouco improdutiva na internet que é o “pessoa com autismo” ou “pessoa autista”? E as pessoas ficam horas se matando na internet e brigando por causa disso. Mas eu achei essa imagem aqui que eu achei muito curioso a relação que ela faz, ó: “ter autismo não significa ser o autismo. Pessoa com autismo/TEA. Não diga nem escreva portador de autismo sofre de autismo ou autista. O termo correto é pessoa com autismo, pessoa com TEA ou pessoa com deficiência”.
Que que eu achei curioso dessa imagem? Ele faz uma equivalência a dois termos que são realmente errados, que é o portador de autismo que vai lidar com a ideia de autismo como uma doença, como uma lesão ou sofre de autismo com autista. E aí a gente sabe que tem muitas pessoas que estão no espectro do autismo que vão dizer que elas são autistas. Apenas isso. E aí essa imagem faz esse jogo que a gente tem que prestar bastante atenção, que ele equipara as duas coisas. Uma coisa a que os outros se referem a “coitado, ele sofre de autismo” com as próprias pessoas do espectro do autismo que se intitulam autistas.
Então a gente tem em alguns casos algumas pessoas falando assim: “olha eu tenho um diagnóstico de autismo, mas o autismo não me define. Eu tenho autismo, eu não sou autista”. Então essas são algumas tensões que ocorrem no ambiente do autismo, na comunidade do autismo. Mas hoje em dia a gente tem uma tendência de que as pessoas que estão no espectro do autismo acabam dizendo que elas são autistas porque o autismo está relacionado a todos os aspectos da vida dessa pessoa. A forma como ela percebe o mundo, a forma como ela lê as interações sociais, a forma como ela se relaciona com as pessoas, a forma como ela interpreta, como ela se engaja em assuntos.
No autismo a gente tem aquele negócio dos interesses restritos, que a pessoa do espectro do autismo muitas vezes ela tem um interesse por um tema muito fixo, muito grande, isso pode ser um fator de sofrimento, mas também em alguns casos pode ser o interesse de se transformar numa profissão, numa atividade. Então, muitas das pessoas vão dizer que elas não têm autismo, elas são autistas. O autismo faz parte da identidade delas e que não é possível elas viverem sem o autismo, elas não carregam o autismo junto com elas. Então esse é o terceiro desentendimento que a gente tem que faz infelizmente muitos do que do que dizem “eu tenho autismo” dizer “eu não sou pessoa com deficiência”.
E por fim, o último desentendimento e talvez esse seja o mais atual e o mais polêmico também que são a criação de legislações municipais, estaduais ou nacionais que estão focadas apenas no autismo e ignoram as demais deficiências. Isso aqui é um vespeiro gigante em relação às outras pessoas com deficiência, por quê? Ativistas da deficiência tão cada vez mais acusando de que muitas vezes e aí não só autistas, mas muitas vezes as famílias, têm pensado apenas no autismo e construído, claro, com muita movimentação que muitas vezes que bom que faz barulho, mas às vezes tem proposto projetos que poderiam beneficiar todas as pessoas com deficiência mas que pensa só no autismo.
E aí eu queria trazer um exemplo bem atual que se não me engano a Câmara dos Deputados tá trabalhando num projeto que regulamenta a questão de estacionamento para autistas. Está rolando a nível nacional. E aí eu acho isso muito curioso porque como a Claudia disse, eu tenho um diagnóstico de autismo. Eu recebi o diagnóstico em 2015. E aí eu lembro que em 2015 ainda ou em 2016, lá em Goiás quando eu morava lá, eu fui lá no Detran pra ver se eu conseguia a licença pra permitir estacionar em vaga preferencial de estacionamento de pessoas com deficiência. Porque eu particularmente sou uma pessoa que dirigir é uma coisa complicada pra mim. Então um estacionamento facilitaria bastante e aí me recusaram. Falaram que eu não tinha direito porque era pra pessoas com mobilidade reduzida. Era essa a discussão.
Então, ao invés da gente discutir sobre isso, sobre o acesso para todas as pessoas com deficiência, o que muitas vezes tem sido feito, como nesse caso nacional é: “não, vamos discutir a criação de vagas de estacionamento para autistas”. Então, enfim, o movimento de pessoas com deficiência de uma forma geral fica realmente muito incomodado com isso porque isso acaba focando tanto só no autismo e não beneficia todas as pessoas de uma forma geral. Então a gente tem uma questão bastante complicada.
Tem outra questão que também é um tanto quanto política porque a gente sabe que o autismo pelo menos nos últimos 10 anos é a deficiência que mais se discute. A gente fala muito sobre autismo, o autismo ganhou a mídia, a gente tem série sobre autismo, filmes, documentários, reportagens cada vez mais frequentes e muitas vezes o que que ocorre? Ocorre que nessa discussão toda, a classe política acaba olhando muito pro autismo, pro movimento do autismo que é muito forte e começa a propor algumas ideias para atrair esse eleitorado de uma forma geral.
Nós que somos do meio do autismo nós temos um poder como cidadãos, que é o voto. Então as pessoas se movimentam em torno disso e isso acaba fazendo com que muitos políticos tanto em níveis municipais, estaduais ou nacionais propõem projetos que sejam às vezes até meio sem pé nem cabeça, que não tenham nenhuma forma de como executar isso de uma forma geral e isso acaba sendo bastante complicado. Em Goiás, que é onde eu morava, eles aprovaram inclusive recentemente uma legislação sobre o autismo que não fala o que deve fazer. Então é uma lei que não vai ter aplicação nenhuma, foi basicamente uma discussão ali mesmo pra visibilidade eleitoral. Acaba sendo uma questão bastante complicada. E isso acaba criando esse distanciamento que existe entre o movimento das pessoas com deficiência e o movimento do autismo.
E aí só pra completar uma coisa muito importante, isso aqui também está ligado da forma como o movimento do autismo surgiu no Brasil. Porque o movimento do autismo no Brasil ele só começou a existir nos anos 1980 e o movimento de pessoas com deficiência já tinha a sua maior proeminência nesse período. E quem falava sobre o autismo nos anos 1980 era só as famílias e as famílias com maior dificuldade ainda. Então a gente tem por exemplo a criação da AMA em São Paulo em 1983 que vai começar a trazer os primeiros congressos sobre autismo e como toda legislação de pessoa com deficiência não tava voltada pro autismo historicamente, o autismo cresceu no Brasil sem essa discussão descolada da discussão sobre deficiência.
Mais recentemente teve o Censo, por exemplo. A discussão sobre o Censo, a gente tem algumas perguntas sobre deficiência e aí conseguiu-se a questão da pergunta do autismo no Censo no questionário de amostra, que é aquele que é feito em 11% dos domicílios, que vai perguntar se alguma pessoa foi diagnosticada com autismo dentro daquele domicílio. E essa pergunta não está entre as com deficiência, ela está separada. Então a gente tem historicamente várias e várias coisas ocorrendo no Brasil que mostram que a gente está tendo um certo desentendimento ou um certo afastamento dessas discussões sobre deficiência.
Mas dito isso, a gente tem de novo a pergunta inicial: autismo é uma deficiência ou não é? E a resposta é sim, o autismo é uma deficiência. E, enfim, é isso, pessoal. Eu fico aqui à disposição pra responder, pra gente conversar um pouco sobre isso. Eu acho que a gente tem muita coisa pra dialogar, principalmente em relação a essas questões aqui dos desentendimentos, de como vocês entendem a questão da deficiência, se o autismo é ou não é, aqui eu venho trazer a ideia de que autismo é deficiência sim, mas alguém pensa diferente? Enfim, vamos dialogar aqui e enfim queria agradecer muito a atenção de vocês.
Público: (Palmas)