Introvertendo 218 – Autistas da Região Norte

O Brasil é um país diverso e com autistas em todos os lugares. Pensando nisso, o Introvertendo dá início a série de autistas nas cinco regiões. Para representar a região norte, Carol CardosoLuca Nolasco recebem a rondoniense Bruna Pazdiora, o paraense Sandersom Fávero e a acreana Rauana Batalha sobre sotaque, cultura, alimentação, estereótipos e acesso ao diagnóstico de autismo na região norte. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Luca: Seja bem-vindo ao podcast Introvertendo, um podcast sobre autismo. Hoje sou eu de novo a apresentar, Luca Nolasco, e o episódio vai ser sobre autistas da região norte do Brasil.

Carol: Sou a Carol, tenho 25 anos, nasci no Pará, mas eu passei boa parte no Amapá e agora eu estou morando em São Paulo.

Bruna: Eu sou a Bruna Pasdiora, eu tenho 39 anos, sou aqui de Cacoal, Rondônia, fui diagnosticada no início deste ano e também tenho duas filhas dentro do espectro.

Sandersom: Olá, eu me chamo Sandersom Fávero, tenho 31 anos, fui diagnosticado em 2019. Moro atualmente na Pérola do Tapajós, como é conhecida a cidade de Santarém do Pará. Eu sou técnico do IBGE há oito anos e no momento curso faculdade de sociologia a distância.

Rauana: Olá, meu nome é Rauana Batalha, eu tenho 36 anos, fui diagnosticada com TEA aos 34 em 2020, plena pandemia, fiz o diagnóstico da minha filha que hoje já tem cinco anos e ela foi diagnosticada aos dois anos. Eu sou casada e trabalho na Universidade Federal do Acre.

Bloco geral de discussão

Luca: Quando falam sobre cultura e tradições, um dos primeiros assuntos geralmente é comida. E eu acho que pra qualquer pessoa do Brasil a comida da região norte é muito conhecida ou mistificada, por exemplo o açaí, o tacacá e diversas comidas assim.

Vocês chegaram a ter alguma relação especial com a comida do norte onde o autismo tava envolvido? Questão sensorial, questão de hiperfoco em comida…

Sandersom: Eu sou nascido em Santarém, mas passei a minha infância parte no Paraná, parte em Goiás, retornei ao Pará aos 11 anos e residia numa cidade do sul do Pará chamada Novo Progresso que foi fundada por pessoal que veio também do sul do país e é bastante ligada a cultura do Mato Grosso. Então até 2014 eu vivia em Novo Progresso, vivia no Pará mas com pé fora do Pará por conta da interação cultural com o sul e com o Mato Grosso.

Então quando eu voltei pra minha cidade natal, Santarém, há nove anos, foi que eu tive o primeiro contato com a cultura paraense. E a primeira vez que eu provei alguns pratos típicos aqui como o tacacá… pra mim o tacacá aqui é uma delícia é feito com tucupi com a goma da tapioca e com uma planta chamada jambu. Então a primeira vez que eu provei o tacacá a sensação é que eu estava tomando vinagre fervente. Foi uma sensação ruim.

Uma senhora amiga minha muito querida disse que eu iria provar ali pela primeira vez o melhor tacacá de Santarém. E como eu não consigo esconder as minhas emoções, por mais que eu dissesse que eu estava gostando, ela percebeu que eu não estava. A mesma coisa com açaí. A primeira vez que eu tomei açaí parecia um sorvete de areia. Um suco de terra.

Mas o tempo foi passando, eu fui me permitindo, eu fui provando aos poucos porque eu tenho uma restrição alimentar, né, acabei me habituando e hoje não vivo sem, não posso viver sem tacacá, não posso viver sem açaí, não posso viver sem cupuaçu, sem vatapá. Não sei se é vatapá é do norte ou do nordeste, porque aqui na minha região tem muitas pessoas que vieram do nordeste então as culturas interagem.

Luca: E falando sobre açaí, que geralmente é um tema tão polêmico principalmente no sudeste com as pessoas do norte. Tem quem diga que o açaí do sudeste, do sul é aguado, é muito doce. Vocês têm alguma relação especial com açaí?

Bruna: Eu gosto demais do açaí assim (risos). Apesar de parecer inicialmente, como o Sandersom falou, essa questão da primeira vez que você prova, do gosto de terra e tudo, porque talvez você não esteja acostumado, mas realmente ele tem um sabor bem diferente de outros alimentos. E é engraçado, porque o açaí aqui da região norte ele tem um gosto um pouco diferente daquele que é consumido lá no sul. Quando eu fiz a graduação lá em Maringá, eu passei uma parte da minha vida lá, então tinha um gosto distinto, não era aquele mesmo açaí que nós consumimos aqui.

Rondônia é um estado relativamente novo porque ele foi criado em dezembro de 1981 e essa questão da colonização ela tem muita influência aqui de pessoas que vieram da região Sul principalmente e muito do Nordeste. Inclusive nós temos um ponto forte aqui do estado que é a cultura do café. Tem um cultivo aqui de café muito grande, é um dos principais produtores de café da região norte e sempre aqui nós temos a realização da festa do café, da festa do cacau.

Mas nós também gostamos, além dessa questão do café, do cacau, do açaí, de outras frutas que só aqui nós encontramos como cupuaçu, que também é muito gostoso. Nós temos graviola, nós temos cajá-manga, nós temos tantas frutas que são mais típicas aqui da região norte que levam pra culinária esse gostinho um pouco diferente.

Luca: Um dos marcadores do regionalismo brasileiro sempre é o sotaque. Você consegue saber de onde a pessoa é escutando três segundos. Então, numa dessas, pra você Rauana, como você descreveria as expressões idiomáticas do norte ou simplesmente do seu estado, que muitas vezes no norte tem vários sotaques.

Rauana: É, eu já morei um tempinho no sul também. E todo mundo achava que eu era baiana. Acho que eles não sabem discernir. Mas eu consigo. Como uma pessoa do norte, eu consigo discernir, eu não sei se também tem a ver com autismo, mas é bem mais fácil saber quem é lá do Centro-Oeste ou do Sul. A Bruna falando, a gente vê que o pessoal de Rondônia é o que tem o sotaque mais diferente da região norte, porque eles puxam esse R de porta. A gente já fala o R mais comum. Já estudei isso em fonética e fonologia, mas não lembro agora.

Mas a gente tem mesmo expressões bem parecidas. Porque acho que a maior parte da região norte, com exceção mais de Rondônia, foi formada por nordestinos, influência nordestina e os indígenas que já estavam aqui que o pessoal tomou tudo. Então a gente tem um palavreado, digamos assim, parecido. As expressões são bem parecidas.

Carol: Pois é, as pessoas de fora acham que só existe um sotaque da região norte sendo que é bem diferente né? Por exemplo, o sotaque de Belém é diferente de outras partes do Pará. Tem gente que fala bem diferente assim, tem gente que é do Pará e não fala chiado. Tem gente que me ouve falar e a primeira coisa que acham é que eu sou carioca. Mas quem é do norte sabe muito bem como é o sotaque e é bem diferente. Como a gente pode ver, a gente fala bem diferente.

Bruna: Carol, até aproveitando essa sua fala, é o que eu sinto aqui dentro do meu próprio estado. Porque nós estamos aí bem próximos do Mato Grosso, que tem uma colonização feita por pessoas que vieram do sul do país, Vilhena, que é o início do nosso estado que faz essa fronteira ali que tem o Portal da Amazônia ali, certo? Que faz esse caminho entre Mato Grosso aqui e o resto da região por aqui, tanto é que o clima lá é bem mais frio do que aqui. E a colonização é completamente de pessoas que vieram do sul. Completamente.

Até na parte de cultivos, que eu sou muito ligada a essa questão da terra. Lá a soja, o milho e outros cultivos já vieram, com a lavoura aí com toda força por esse fato de serem colonizado por pessoas do sul. Então o sotaque lá é diferente. Eu estou aqui em Cacoal que fica a 200km de Vilhena. O sotaque já fica diferente porque nós temos essa influência de pessoas do sul como do nordeste.

E assim como a Rauana citou também temos várias etnias aqui indígenas: suruí, cintas-largas, zoró, gavião, arara, então essas etnias também hoje já não existem a mesma quantidade de indivíduos, porém eles ainda permanecem aqui e também deixam as suas marcas. E quando nós vamos pra região de Porto Velho o sotaque já é totalmente distinto porque é um sotaque que está mais ligada a essa região amazônica, em Extrema, em Porto Velho. Então em um único estado nós temos vários regionalismos.

Sandersom: Eu gostaria de ler algum estudo sobre o desenvolvimento do sotaque, influência do sotaque no espectro do autismo porque eu tenho dificuldade de identificar o sotaque das outras pessoas e sou estrangeiro na minha própria terra. Toda semana alguém me pergunta de que estado eu sou porque meu sotaque é do Paraná, meu sotaque é de Goiás, mas aí eu vou pra Goiás e dizem que o sotaque é do Pará e acabei ficando com essa mistura toda.

Carol: Tu deve ser igual o Tiago que teve passagem por vários lugares e parece que não é de nenhum lugar.

(Áudio do WhatsApp)

Oriana: Oi, meu nome é Oriana, eu sou psicóloga, sou analista do comportamento, eu atuo com pessoas com autismo há mais ou menos uns 12 anos, sou autista, moro e atuo na área do autismo aqui no norte do Brasil mas especificamente no Amapá e queria aproveitar a oportunidade pra parabenizar o grupo Introvertendo pela iniciativa e pela disponibilidade em prestar informações tão esclarecedoras e tão importantes sobre neurodiversidade mais especificamente sobre o autismo pra toda a comunidade e pro público em geral. Acho que o trabalho que vocês estão fazendo é muito importante e tem feito uma diferença muito grande pra mim e tenho certeza que pra muitas outras pessoas por todo o Brasil. Parabéns a vocês.

(Fim de áudio do WhatsApp)

Luca: Como a gente havia abordado, acham que o norte é uma coisa só e que é um sotaque só. A gente sabe que não, norte são vários nortes, cada estado é uma coisa diferente. O Tocantins é extremamente diferente do Amapá, cada estado tem a sua cultura. Mas assim, vocês que já conviveram com pessoas de outras regiões, quais foram os esteriótipos que vocês viram e tiveram que conviver sendo pessoas vindas do norte brasileiro?

Rauana: Eu acho que uma coisa que as pessoas me perguntavam muito ou então davam a entender é que a gente do norte é como se fosse uma sub-raça. Então a gente é menos evoluído e nossa comida é exótica pra não dizer estranha. Então é como se a gente fosse inferior. Quando eu estudava também fazia faculdade, mestrado também que eu viajava pros congressos. E a gente vê que é a mesma coisa que eu estudava aqui na UFAC era o que eu ouvia nos congressos. As pessoas olhavam como se eu fosse um bicho exótico mesmo assim, sei lá. E aí a gente sofre muito preconceito.

Quando começou aquela brincadeira do “Acre não existe”, eu ouvi muita piada dessa situação do Acre não existe. O Brasil é tão rico, a região amazônica é muito rica. O Acre também é e as pessoas parece que se concentram ali no eixo do Brasil parece que só existe São Paulo e Rio.

É uma culinária muito legal. Tem uma cultura. Depois acho que talvez a gente fale das lendas dos mitos, é muito interessante toda essa riqueza que a gente tem.

Carol: Eu acho que é muito interessante isso que tu fala porque dá pra entender um pouco desse trajeto que as pessoas fazem mentalmente. Por exemplo, só tem indígena na região norte. Então indígena não é gente. Logo não tem ninguém na região norte. Então cria-se a ideia de que é um grande vazio, uma grande massa, que a Amazônia não é habitada, então desconsideram todos os outros fatores da região, como a cultura, a culinária, a ciência, porque as pessoas acham que não existe ciência. Acham que ciência é só aquilo que está catalogado por um homem branco que chegou lá e catalogou. E mesmo na universidade, as pessoas: “nossa, universidade na Amazônia?”. É uma coisa assim meio distante do imaginário que as pessoas têm sobre a região.

Sandersom: Apesar de Santarém estar completando 361 anos de fundação, Santarém é considerada por muitos historiadores a cidade mais antiga do Brasil. Porque quando o padre jesuíta Bettendorff chegou em Santarém, ele foi enviado por padre Antônio Vieira, já existia em Santarém naquela época 6 mil habitantes quando os portugueses chegaram aqui. Na mesma época, o Rio de Janeiro tinha 1500 habitantes. Nossa região amazônica tem mais de dez mil anos, sítios arqueológicos, cerâmicas, um universo para ser estudado e para ser conhecido.

Bruna: Então, ouvindo a Rauana falar fiquei até em silêncio, eu respirei fundo porque realmente eu sempre… com essa questão da ligação com a própria riqueza de forma e de flora que nós temos aqui, o resto do país tem aquela crença que nós caminhamos por árvores, no meio da floresta, sem roupa ou com pouca roupa, o que seria uma coisa muito estranha, abraçado com onça. Então é uma coisa um pouco diferente daquilo que realmente nós vivemos aqui.

Rauana: É que a região norte foi muito explorada. As pessoas vieram pra cá pra explorar. Tanto pras pessoas, os povos nativos, quanto as riquezas que a gente tinha e exploraram a borracha, exploraram tudo que podia levar e aí abandonaram as pessoas que ficaram. Alguns poucos vieram depois tentar as plantações, como a Bruna falou. Aqui no Acre vieram paulistas, por exemplo, na década de 70, tentar agropecuária, essas coisas. As pessoas enxergam tanto a riqueza da região norte, mas pra explorar. Não pra cuidar das pessoas daqui, da cultura e etc, e pra manter também. Então a gente que está aqui é como se a gente fosse sobrevivente e procurando visibilidade pra o que a gente tem de bom. E a gente faz parte do Brasil. Embora não pareça, a gente faz parte do Brasil.

Luca: O acesso ao diagnóstico na região é muito difícil, existe baixo número de profissionais e um altíssimo número de pessoas não diagnosticadas. Então, pra vocês, como foi a experiência disso? Foi algo demorado, foi algo difícil, foi algo que vocês nem tiveram informação, como foi?

Bruna: A Giovana foi diagnosticada com dois anos e meio, hoje já tem cinco anos e a partir da descoberta do diagnóstico dela, que até então, com relação ao diagnóstico de crianças, o tem um número interessante aqui em Rondônia, de psicólogas e neuropsicólogas principalmente, que fazem essas avaliações. Então a Giovana fez e a partir disso eu comecei a estudar muito mais. E aí é quando você vai se identificando. Eu falei, nossa, eu sei, eu vivo isso aqui diariamente, então era tudo isso que acontecia e eu não sabia. E eu fui participando de cursos, fui participando de congressos, lendo vários livros, vários artigos aí e aí eu fui me identificando.

Então, quando eu cheguei nesse processo de autoidentificação já vinha fazendo acompanhamento psicológico durante praticamente toda a minha vida. Eu fiz psicoterapia em várias linhas diferentes e a minha psicóloga conversou comigo e disse: “olha, daqui não temos mais o que fazer a não ser uma avaliação neuropsicológica para o diagnóstico com você”. Então eu fui em busca do diagnóstico, porém ninguém aqui na cidade, nem no estado tinha essa experiência para realizar o diagnóstico de uma pessoa adulta, então eu busquei fora. Eu busquei em São Paulo.

E em São Paulo eu tive a indicação de uma outra profissional aí no Nordeste que foi excelente e com ela eu fiz a minha avaliação. E depois disso eu fiz também a minha avaliação e a minha consulta com o psiquiatra também aí da região Nordeste. Então aqui ainda até hoje eu busco profissionais pra que possam ajudar no processo e me atender na psicoterapia, mas ninguém se predispõe a tal. Porque é uma área muito nova, porque ainda existe muito desconhecimento.

Então nós temos que buscar sempre fora. A psicóloga que me atende é do Paraná. Então também é uma coisa que eu tenho que ficar buscando sempre fora. As minhas filhas são atendidas aqui, mas o meu marido também passou pelo mesmo processo do diagnóstico fora do estado e do acompanhamento porque para uma pessoa adulta dentro do espectro realmente não tem nenhum embasamento e nenhum acolhimento.

E até queria ressaltar essa questão da importância do podcast, do Introvertendo. Porque eu já tinha entrado em contato com o Tiago em um outro momento, eu escrevi pra ele um e-mail. Quando eu me aprofundei em buscar informações mais específicas sobre o autismo, eu sempre pensei em associar e trazer essas informações de pessoas que estejam dentro do espectro. Não em profissionais, em profissionais que eu sei que também tem profissionais bons assim como também não tem profissionais qualificados. Mas eu gostaria de ouvir as pessoas que estão dentro do espectro porque isso pra mim faz todo sentido. Mesmo não sabendo até então que eu estava também.

E eu achei o podcast aí do Introvertendo no Spotify e comecei ouvir um episódio atrás do outro, um episódio atrás do outro, um episódio atrás do outro, inclusive tem alguns deles que falam sobre essa busca do diagnóstico aí já na vida adulta, inclusive do diagnóstico em mulheres e foi onde eu fui me autoidentificando. Então desde já eu agradeço esse papel que vocês vem desenvolvendo aí de maneira brilhante e que vem divulgando informação de qualidade acessível a todas as pessoas né?

Então foi assim que nós chegamos até o nosso diagnóstico e que realmente é muito difícil. E a maioria das famílias que hoje se encontram aqui não tem acesso mesmo pra crianças que nós temos sim ainda alguns profissionais disponíveis, mas somente na rede privada. A rede pública o SUS não disponibiliza profissionais. E aquelas famílias que não tem condições nem mesmo de comprar leite pras crianças, fralda, coisas básicas e hoje nós temos grupo aí de 168 mães aqui só do nosso município e que 80% das crianças estão dentro do além de outras síndromes raras e transtornos de neurodesenvolvimento, você não ter condições pra pagar uma consulta aí de 1000, 1500 reais por simplesmente você depende de BPC/LOAS.

E essas mães ficam desesperadas. Então os diagnósticos aqui ainda pela rede pública saem de uma forma extremamente tardia e já em um estágio muito avançado de algo que poderia ter sido deveria ter sido intervenção de maneira precoce, infelizmente.

Rauana: E principalmente por nós mulheres que disfarçamos pra caramba. A neuropsicóloga que me avaliou foi daqui, mas ela ficou até o último minuto dizendo que eu tinha fobia social e sendo que eu tenho filho autista. Entrevistou minha mãe e ela dizendo que eu era igualzinha a menina. No finalzinho foi que ela admitiu. E aí eu comecei a pesquisar muita coisa e confirmar. Mas o curioso pra mim da investigação foi o seguinte, a minha filha veio primeiro. E aqui eu trabalhando na universidade, no núcleo de inclusão, tinha os alunos autistas e aí eles todos eles vinham atrás de psicólogo, uma fila enorme.

E era interessante que dentre o público com deficiência só os autistas eram os que procuravam por psicólogo. Os demais não, entendeu? Eles procuravam mais por adaptações, etc. E aí eu fiquei muito compadecida porque tinha acabado de sair o diagnóstico da minha filha. E montei um grupo de psicólogos de fora da UFAC porque aqui não tem ninguém que se interessa pela causa. Ouvindo a fala dos jovens eu me identifiquei, muito mas muito mesmo lembrando: “eu fazia isso quando eu tinha 20”. “Eu fazia isso quando eu tinha 18”. E aí eu percebi o tanto que eu mascarei a minha vida inteira. Por isso que a neuropsicóloga não conseguia enxergar.

E depois que acabou esse grupo, eu fui atrás da minha investigação, de fazer minha avaliação e deu certo. Mas a minha terapia que eu fui atrás depois que aí surgiu as crises, de tentar ressignificar muita coisa, os traumas etc. Eu tive que ir pra uma psicóloga de fora porque aqui só tem uma que eu ouvi falar que atende bem os autistas e TDAHs, mas ela tem uma agenda lotada.

Hoje que eu tenho muito contato com os alunos aqui da Ufac, de outras pessoas que vem atrás de mim pra saber, vejo que os psiquiatras… meu amado, é difícil demais. Eles não querem acreditar, sabe? Parece que você tem que tentar o suicídio, tem que chegar lá rasgado, rasgando dinheiro pra eles acreditarem. O meu psiquiatra, eu cheguei lá com a avaliação e ele acreditou, leu e ficou investigando. Mas a maioria das pessoas me relata que demora muito tempo pra um psiquiatra admitir que você é um autista.

Carol: E existe muito esse apagamento na questão da saúde, é importante ressaltar, de uma forma geral, não só quanto ao autismo, mas a precariedade da saúde pelo menos na realidade do Amapá. Não sei como isso se reflete nos outros estados, mas eu acredito que isso seja um problema também que no Amapá tem uma questão muito séria de saneamento. Então isso acaba inchando demais o sistema público de saúde porque muitas pessoas acabam indo pro hospital por doenças relacionadas ao saneamento. Então se o próprio contexto de saúde pública é tão caótico, isso vai reverberar no subdiagnóstico de autismo.

(Áudio do WhatsApp)

Angélia: Oi eu sou a Angélica, eu sou do interior do Acre na cidade de Rodrigues Alves, uma cidade bem pequenininha e eu sou autista nível dois de suporte.

(Fim de áudio do WhatsApp)

(Áudio do WhatsApp)

Vanessa: Oi Introvertendo, eu me chamo Vanessa e moro em Boa Vista, Roraima.

(Fim de áudio do WhatsApp)

Carol: Então Sandersom, tu tinha falado que tu é funcionário do IBGE e a gente queria saber um pouco mais sobre como é a tua experiência trabalhando nesse órgão público. Quais são as informações que tu acha interessante dividir com a gente aqui?

Sandersom: Primeiramente pra quem não sabe, o IBGE é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ele é responsável pelo sistema de estatísticas nacionais, cálculo do PIB, índices de desemprego, contagem da população e todo um universo de pesquisas sociais, demográficas, econômicas, também da agropecuária, mas também é o responsável pelo desenvolvimento dos mapas nacionais e cartografia. Meu primeiro contato com o IBGE foi no ano de 2010. E eu lembro que eu fiquei encantado de IBGE pela organização do censo, toda operação censitária,como parte de um relógio que tem que agir em sincronia. Então a rotina, os protocolos, conceitos que devem ser seguidos à risca, sistemas de controle, acompanhamento, supervisão da coleta e eu achei tudo aquilo fabuloso, eu me encontrei.

Então quando saiu o edital de 2013 eu tinha apenas uma vaga pra técnico de informações estatísticas e geográficas na minha cidade de Santarém. Felizmente caiu na prova aquilo que eu sabia e eu conquistei essa vaga. Não como PCD, porque na época eu ainda não sabia que eu era autista. E no serviço público eu encontrei o meu propósito de vida.

Aí teremos este ano um quesito específico no censo sobre autismo no questionário da amostra, já que o senso é dividido em dois questionários. Tem um questionário básico mais resumido é feito na maioria dos domicílios e tem um questionário da amostra feita em um recorte amostral a fim de representar as informações de um grupo, um universo de domicílios. O quesito de autismo ele é polêmico pois não foi uma decisão da equipe de pesquisas do IBGE mas uma determinação do Congresso, o que se não me engano talvez seja algo inédito né?

Inclusive no ano em que o censo teve cortes de quesitos que principalmente eu achava muito importantes como quesito sobre bens duráveis, se tem geladeira de uma ou duas portas, se tem fogão, quesitos sobre qual é o valor do aluguel, enfim quesitos que também poderiam ter sido mantidos na minha opinião se houvesse conhecimento e interesse político mas decidiram focar no autismo.

Como autista, se por um lado eu fico contente porque teremos uma informação agora sobre autismo no lugar de que antes nós não tínhamos informação nenhuma. Mas como autista IBGEano, eu achei muito confuso. Porque outras demandas de grupos sociais não puderam ter esse destaque no censo que os autistas tiveram. Estou falando de comunidade de povos tradicionais como ribeirinhos, ciganos, caiçaras, quebradeiras de coco babaçu que sim todos serão recenseados mas não terão informações específicas dessas comunidades apesar da inovação desse censo em 2022 que vai ter quesitos específicos pela primeira vez para as comunidades quilombolas.

Mas eu falo também da falta de informações específicas no centro para as pessoas trans, LGBTQIA+, falo também de pessoas com outras síndromes ou transtornos do desenvolvimento, não vai ter um específico para TDAH, por que não? Não vai ter pra tourette, por que não? Por que tem pra autista? E há também a preocupação de um registrador não ser um profissional da saúde. O recenseador não pode diagnosticar. Por isso, a fim de atender a lei, o IBGE desenhou o quesito de perguntar se no domicílio algum morador foi diagnosticado como autista por profissional da saúde.

Então, ora bem, já havia no bloco de deficiências do censo demográfico e haverá em 2022 um quesito que pergunta se algum dos moradores do domicílio faz a pergunta individualmente um para um, se algum morador possui limitação nas funções mentais com dificuldade permanente para se comunicar, realizar cuidados pessoais, estudar, trabalhar, etcétera, com as opções de resposta, sim tem dificuldade e não consegue de modo algum, tem muita dificuldade, tem alguma dificuldade não tem dificuldade.

E eu acho que esse quesito já nos dava um indicativo indireto, tanto sobre o autismo como sobre síndromes correlatas com o bônus de não exigir nesse quesito, um diagnóstico médico, mas sim uma uma autoidentificação da pessoa, do que ela sente que possui uma deficiência na comunicação por exemplo, que é uma característica que em muitos autistas tem.

Mas eu queria contar um relato pessoal que me aconteceu no âmbito dos preparativos do IBGE para o censo termográfico. Nós estivemos eh em Belém no interior de Vigia e reuniu os supervisores e subáreas, instrutores do censo de todo o estado do Pará para realizar um treinamento de duas semanas e reuniões administrativas. E o foco era o treinamento dos dos supervisores dos certificadores do Censo. Então nós recebemos o treinamento que iremos replicar até chegar lá na ponta da equipe de coleta.

E quando foi abordado o quesito de autismo, eu tive a oportunidade de contar um pouco sobre a minha vida, sobre as minhas características, as dificuldades, sobre como obtive o diagnóstico. E foi um momento muito muito legal pra mim, muito especial porque tem pessoas que convivem comigo ali 5, 6, 7, 8 anos de todo o estado que tinham notado que eu tinha algumas particularidades, alguma diferença, e eu me senti entendido pelas pessoas.

Foi um momento tocante, foi um momento divertido. Quando eu encerrei, outras pessoas trouxeram relatos de: “ah, o meu filho está para ter o diagnóstico de autismo”, “ah eu tenho um amigo que também é autista”, “eu tenho o filho de uma amiga que é autista”. E um senhor do IBGE já de idade e que eu considero muito sábio ele estava no auditório e ele disse assim que logo depois que eu terminei o meu depoimento esse senhor disse que a turma de servidores do IBGE do Pará tinha tido ali um aprendizado que nenhuma outra unidade estadual do IBGE tinha tido. E foi muito emocionante pra mim ouvir isso.

E nesse evento também esteve presente uma das diretoras… vamos dizer, uma das chefonas do IBGE que veio do Rio de Janeiro para participar do evento. E por conta do meu depoimento nós acabamos ficando amigos também.

Luca: Gente obrigado pela participação. E pra finalizar eu queria saber o que vocês recomendariam pra quem quer conhecer a região, quer saber um pouco mais sobre o que fez vocês serem o que vocês são.

Sandersom: Vocês precisam visitar nossa região, as nossas praias, a nossa culinária, mas se vocês não gostarem de viajar assim como eu, vocês podem assistir um belo documentário sobre a Amazônia. Eu queria agradecer o trabalho que vocês fazem. Quando eu recebi o meu diagnóstico foi muito importante os episódios do Introvertendo e eu sou fã da Carol, dos comentários que ela faz.

Bruna: Eu gostaria de ressaltar que venham (risos), que venham e que nos conheçam né? Conheçam um pouco mais da nossa região, as nossas culturas, a nossa história. O nosso patrimônio, patrimônio em todos os sentidos aí, em todos os âmbitos e que a partir disso creio eu que muitos olhares eles vão ser redirecionados né? Sair sempre daquele padrão, daquela caixa, daquele conforto em apenas ter aquilo que é mais acessível na região que vocês já estão e que conhecem, mas de buscar também novas regiões pra conhecer um pouco mais daquilo que existe aqui na região amazônica e valorizar essa questão das diferenças que nós temos em todo o nosso país.

E gostaria muito de um dia poder receber vocês ao vivo e a cores aqui no nosso estado também. Sejam todos muito bem-vindos e muito obrigada aí novamente por todo o material que vocês produzem.

Rauana: Que as pessoas sejam realmente abertas a esse novo. Que nós não somos novos na verdade. Mas novos em termos de estados, de federação, mas as culturas, tudo que a gente construiu aqui é bem antigo e é muito interessante.

Luca: É isso, muitíssimo obrigado por ter escutado e até a semana que vem com episódio sobre Nordeste.

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