Eventos sobre autismo são uma ótima oportunidade para informar a sociedade e capacitar as diferentes pessoas envolvidas no processo de conhecimento sobre o autismo. Mas as relações entre profissionais, autistas e familiares nos eventos é um tanto quanto conflituosa. Neste episódio, Tiago Abreu e Willian Chimura conversam com Lucas Pontes sobre organização e convite de eventos, remuneração, recepção do público, tretas da comunidade e muito mais. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo e é um daqueles temas polêmicos que vocês sempre esperam ou não esperam, mas que com certeza vai ser legal.
Willian: Eu sou Willian Chimura, sou youtuber, também sou ativista, criador de conteúdo na internet e claro, quando convidado sempre que possível dou palestras também em eventos de autismo.
Tiago: E hoje nós temos um convidado que vai aparecer aqui pela segunda vez no Introvertendo, vou deixar que ele se apresente.
Lucas: Eu sou o Lucas Pontes do perfil Lucas Atípico, lá do Instagram. Eu recebi diagnóstico de autismo aos 20 anos, agora eu estou com 24 anos e eu sou um ativista pela causa do autismo, pela causa da neurodiversidade num todo, sou estudante de psicologia e estou no último ano da faculdade. Em breve me formarei, isso é um pouco assustador mas também legal. E é isso.
Tiago: Mais uma vez muito obrigado Lucas por sua participação aqui no Introvertendo. Esse é o quarto e último episódio da série “Precisamos Falar Sobre Autistas” em algum contexto. A gente fez no ano passado os episódios sobre autistas que não transam, autistas biscoiteiros, autistas excludentes e, agora talvez não menos polêmico, autistas em eventos de autismo pra falar um pouco sobre como tem sido a participação de autistas em eventos de autismo nos últimos anos aqui no Brasil.
O Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Tiago: Historicamente na comunidade do autismo, não só no exterior quanto no Brasil, a gente teve um processo muito constituído por familiares, principalmente mães. Os primeiros ativistas autistas no exterior começaram a falar no final dos anos 80, início dos anos 90. No Brasil, a gente sabe muito bem que os autistas começaram a se pronunciar publicamente de forma mais massiva nesta última década, década de 2010, que é algo que eu já cansei de falar muitas e muitas vezes aqui.
Com a chegada de autistas nessa comunidade, começou-se a ter uma cobrança muito maior por participação de autistas. Eu tenho uma lembrança de 2018 que nem é tão antigo assim de um evento que eu estive em Goiás, que eu fiz uma provocação no final do evento lá falando assim: “olha, na próxima audiência que tiver, tem que ter autista na mesa”, né? E o pessoal fez uma cara feia e tal. E de lá pra cá esse cenário mudou bastante, hoje é muito comum ver se você tem alguma rede social, um evento sobre autismo que tem participação de autistas.
Mas como são esses eventos? Quais são as coisas boas e as coisas ruins envolvendo esses eventos? É o que a gente vai discutir aqui no episódio de acordo com as nossas experiências já que nós aqui participamos já de eventos sobre autismo no nível local e até em eventos de outros estados, imagino eu.
E aí a primeira coisa que eu queria lançar pra vocês diante desse cenário, de uma emergência de autistas falando sobre autismo e até autistas palestrantes que exercem isso profissionalmente, como é que tem sido a questão dos convites? Vocês recebem isso com uma certa frequência ou isso começou a surgir a vocês meio que com a pressão assim do dos organizadores de evento de “vamos ter que ter autistas”. Como é essa percepção de vocês sobre o assunto?
Willian: Pra mim começou principalmente nesse âmbito assim de falar como autista, falar sobre as minhas experiências e tal. Até que eu por curiosidade mesmo… não sou um graduando da área ou enfim, mas por curiosidade e por também saber inglês que acabou ajudando também e etc, saber um pouco sobre como funciona a ciência. Acabei também indo atrás de mais artigos, mais literatura científica e comecei a relacionar, aí encontrei o DSM, o manual de diagnóstico, comecei a relacionar principalmente o que havia de achados manuais com a minha própria vivência para ter ali uma certa solidez.
Porque eu entendo que o palestrante, uma das funções do palestrante também é conseguir não somente trazer a sua experiência como uma possível forma de inspiração ou de modelo para necessidades que ainda precisamos mudar na sociedade. Enfim, há diversas funções, há diversos objetivos, diversas naturezas de palestras diferentes. Mas não somente é sobre isso, mas também sobre entender quais aspectos da sua vivência ali podem ser generalizadas para outros autistas ou não. E aí eu tive a preocupação foi principalmente por conta disso que eu comecei a estudar mais sobre o autismo em si.
Isso virou uma bola de neve porque eu acabei conhecendo vários outros autistas, mas depois ao longo do tempo eu fui me reafirmando um pouco mais como um divulgador científico, na verdade. Porque independente da questão do autismo, sempre foi algo que foi do meu interesse a investigação no âmbito científico. E aí até que eu ingressei no mestrado posteriormente e isso é claro me dá todo o repertório que eu preciso para eu me firmar melhor como um pesquisador iniciante aí nesse início de carreira. Mas é claro que isso sim potencializa muito em conseguir contribuir para eventos, mas nesse âmbito assim de como pesquisador, de como alguém que tá trazendo a literatura para outros contextos, eu fui mais para os aspectos técnicos vamos dizer assim científicos hoje em dia do que somente ficar na minha experiência. Eu vejo que essa foi mais ou menos a minha evolução ao longo do tempo nessa minha atuação como palestrante.
Lucas: Eu passei a receber mais convites para palestras e participações em eventos diversos de autismo como grupo de estudos, aulas em faculdades, aulas em pós-graduações do momento em que meu Instagram passou a ter um alcance maior e me chamavam pra palestrar basicamente falando sobre as minhas experiências. Então era normal que as pessoas me convidassem e falassem assim: “você vai falar sobre autismo” e era só isso que elas falavam, “você vai falar sobre a sua experiência de como foi receber o diagnóstico”, “o que mudou na sua vida” e esse tipo de coisa.
É claro que até hoje eu recebo esse tipo de de propostas assim de temas, mas também assim como Willian devido aos estudos que eu tenho feito tanto na faculdade de psicologia, tanto por fora também, porque é um dos meus hiperfocos estudar sobre neurodiversidade, sobre autismo, passei a ser chamado a falar sobre minha experiência como estagiário, por exemplo, como acompanhante terapêutico, agora como psicoterapeuta.
Então, eu não falo apenas da minha experiência como autista, mas também falo do que eu estudo sobre autismo, da minha ligação com vários outros autistas, desde crianças até adultos. E eu acho que isso enriquece as palestras, porque a gente consegue trazer um ponto tanto teórico quanto na prática. E eu confesso que atualmente eu nem dou conta de todos os convites. Eu tô aprendendo a falar não, mas eu geralmente aceito quase todos que chegam daqueles que eu vejo. Porque tem alguns que passam por mim, eu nem percebo, eu vejo só depois.
Então esses dias eu tava olhando, por exemplo, lá no Instagram e no email e tinha convite pra eu falar no Dia Mundial do Autismo de abril, mas de 2021. E aí, tarde demais. Então, eu tenho esse problema de me organizar, que eu faço tudo sozinho. Então, boa parte dos convites passam e eu acabo aceitando quase todos aqueles que eu vejo e isso, de certa forma, me sobrecarrega. E nem sempre é algo remunerado, pra falar bem a verdade, na maioria grande maioria das vezes não é algo remunerado e esse é um problema também.
Tiago: Ah, vocês falaram muitas coisas interessantes que eu queria comentar e assim, partindo do meu histórico, eu recebi o diagnóstico de autismo fechado em 2015. E desde quando eu recebi o diagnóstico, eu já comecei a falar sobre autismo localmente na cidade que eu morava que era Goiânia. Eu sentia muita falta de mais conhecimento sobre autismo, afinal também o que se tinha disponível naquela época era bem menos. E naquela época o cenário era muito fechado para participação de autistas. Então eu recebia alguns convites que não eram assim tão agradáveis e às vezes faziam perguntas que eu não sabia responder e isso causava uma certa angústia. Mas ao mesmo tempo me incomodava, que os lugares que eu frequentava tinham discussões sobre o autismo que eram muito distantes da minha realidade.
E aí quando o Introvertendo surgiu em 2018, uma comunidade começou a se desenvolver em torno não só do podcast mas da atuação autista no geral. Porque a gente tem autista falando sobre autismo de forma numerosa desde o início dos anos 2010, mas desta segunda metade pra cá que foi que o número realmente aumentou. E aí quando essa comunidade começou a se juntar, os convites começaram a proliferar e principalmente fora de Goiás, em outros lugares e eu comecei a ter contato com outras realidades. Muitos deles vinham diretamente por causa do podcast, mas pra falar sobre experiências pessoais sobre o autismo e eu passei por algumas histórias que depois eu posso detalhar aqui e contar porque tem coisas bem interessantes.
O Lucas falou sobre remuneração e um outro ponto que eu quero conversar com vocês é sobre o tratamento da organização dos eventos. Quando você organiza um evento, você tem vários aspectos que você precisa cuidar ali, a temática do evento, quem você vai convidar, como é que vai ser esse convite, se as pessoas precisam viajar, tem toda uma logística pras pessoas se deslocarem para onde elas vão.
E eu percebo que às vezes existem ações que não necessariamente levam em consideração características do autismo. Aí é uma contradição. A gente participa da comunidade do autismo mas mesmo assim os convites muitas vezes não são adaptados, não são acessíveis de alguma forma. Porque muitas vezes o evento tem um direcionamento específico e aí: “não, vamos incluir um autista aqui porque precisa ter autista”. E acho que isso também é um pouco problemático, mas por fim eu queria só perguntar pra vocês, como é que essa questão do tratamento da organização dos eventos? Eu sei até que o Willian já fez um post no Instagram dele falando um pouco sobre isso, sobre formas inadequadas que as pessoas chamam ele pra convites de eventos. Então queria que vocês falassem um pouco sobre isso.
Lucas: É uma das coisas que mais me incomodam nesses convites. Geralmente eles são feitos muito em cima da data e esse é um problema, assim como o Tiago disse. Uma das características do autismo é que eu preciso me preparar bem para algo que eu sei que vai exigir muito de mim. Então, mas mesmo assim não deixou de ser algo desgastante para mim, apesar de gostar de fazer. E esses convites que vem em cima da hora, geralmente acontecem, acredito eu, porque eles buscam autista de qualquer forma pra falar, porque perceberam que não tem nenhum autista no evento sobre autismo e agora eles sabem que isso acaba pegando mal.
E outra coisa também acaba me incomodando é a maneira como eles mandam ou nem mandam o tema e só chamam pra conversar, pra palestrar em algum local, não mandam tão definido o que a gente vai falar e quando dizem assim: “fale sobre autismo, fale sobre a sua experiência”, acaba sendo muito vasto, eu prefiro quando fazem um um pedido, alguma mais detalhada, tipo: “fale sobre a sua infância” ou então “sobre o que você estuda, sobre os critérios diagnósticos do autismo, fale sobre como é ser acompanhante terapêutico, fale como é ser autista numa faculdade de psicologia”, aí eu já me preparo melhor e não me sinto tão desamparado assim de previsibilidade, que é uma coisa que que me ajuda bastante.
Enquanto a remuneração é uma coisa até engraçada assim, porque as pessoas acreditam que a gente tá fazendo um favor e que nós devemos apenas agradecer por elas nos convidarem para palestrar. E é claro que que tem palestras que eu me recuso a cobrar um valor mesmo que seja pequeno, porque são entidades que não tem um fim lucrativo, que são ONGs. E aí eu não não vejo necessidade e tem gente que cobra, eu prefiro não cobrar, mas tem outras entidades que tem muito dinheiro, como por exemplo, escolas particulares que convidam pra falar com professores e tudo mais, pra dar uma espécie de formação e não querem pagar ou então querem pagar apenas um valor muito baixo e eu acho isso muito equivocado por parte deles, porque acaba sendo o nosso trabalho.
Demanda tempo, demanda estudo e quando se fala de outros palestrantes que são profissionais, eles acabam pagando muito mais do que pagam geralmente pra quem é, entre muitas aspas, apenas “autistas”. Quando se fala de experiência, é tão válido quando você fala apenas sobre a parte teórica, é claro que as duas coisas são necessárias, mas as duas coisas também precisam de remuneração. Então, eu tenho amigos autistas que não estudam tanto sobre autismo, mas que são autistas e que não falam bobagens sobre autismo e que geralmente fazem palestras gratuitas porque as pessoas não estão dispostas a fazer algum tipo de remuneração mesmo que seja até simbólica.
Tiago: Cara, pior que isso não é só da comunidade do autismo não. Em março deste ano eu recebi uma proposta de uma palestra pro mês de abril que era de uma área de diversidade de uma grande empresa brasileira, uma das cinco maiores empresas do Brasil. Um negócio assim gigantesco. E eles queriam de graça. Eu pensei assim: se esses caras não tem dinheiro pra poder pagar um palestrante com deficiência, considerando que é um comitê de diversidade que está falando sobre deficiência, minorias e quer que o cara trabalhe de graça… Poxa, se eles não querem pagar, então ninguém no Brasil vai conseguir pagar, porque eles são uma das cinco maiores empresas. Então, esse tipo de coisa absurda acontece com muita frequência. E aí pra esse tipo de coisa a gente responde com educação falando que não dá ou ignora completamente.
Willian: Concordo com a perspectiva do Lucas e até em grandes empresas, grandes marcas, enfim, eu já tive também infelizmente algumas situações assim que de última hora o autista é a última pessoa a saber. O evento é sobre autismo, a ação, a campanha de marketing é sobre autismo, é para o público autista, não incluíram autistas, alguém de última hora, deu essa ideia e falou: “nossa, verdade” e tal. E aí já não tem mais recurso, o caixa já foi comprometido, o budget, como eles falam no mundo corporativo já foi todo consumido e aí só que tiveram a brilhante ideia: “poxa, vamos chamar lá aquele autista pra ele participar da ação que vai ser bacana”.
Só que aí eles vem com essa ilusão, até hoje a gente tem esse tipo de coisa. De que “poxa, não, os autistas vão estar ali só pra dar um depoimento, a gente não precisa pagar, vê lá se eles vão querer aceitar, a gente divulga eles”. E em ações assim muitas vezes também eu encontrei outros influenciadores não autistas, que não são pessoas com deficiência numa ação sobre autismo e que eles estavam sendo remunerados, agora os autistas não. E a questão é que é sim, de fato, é uma comunidade que há poucas oportunidades infelizmente.
Então o que acontece na prática é que essa grande empresa vem, me faz o convite, eu falo “poxa, não. Eu não quero, não vou aceitar”. E aí eventualmente vai vir outro outro autista com oportunidades escassas, eventualmente aceita e acaba se submetendo a esse cenário de exploração mesmo. Eu entendo como exploração, porque só a divulgação já é melhor do que a maior parte dos convites que ela recebe. A grande maioria dos convites não são propostas remuneradas, mas não tem porque a grande maioria dos convites também são questões mais assim do âmbito do movimento social, de movimentos de pais que realmente muitas vezes estão subindo financiados e tal.
Mas que mesmo em situações assim, mesmo quando ocorre a organização de um evento, de um simpósio, de um congresso que conta com a presença de vários profissionais, várias figuras relevantes do autismo tal e etc, eu ainda vejo uma tendência dessa prática de que: “poxa, vamos cobrar pelo menos uma taxa simbólica do público para remunerar os palestrantes”. Aí chega nos autistas e fala assim: “ah não, os autistas não, porque os autistas não são doutores” e como se realmente não houvesse um um empenho, um esforço equivalente, e que os doutores merecem ser remunerados.
Enquanto, na verdade, na minha perspectiva, a lógica deveria ser inversa. Os doutores não necessariamente precisam de uma remuneração de um evento. Enquanto autistas sim. A gente já sofre com tanta falta de oportunidade no mercado tal e etc. Não necessariamente por mim, eu falo para autistas em geral, o mercado de palestras de autistas e as oportunidades dos autistas falarem. Então eu vejo que que isso realmente ainda há de ser problematizado.
Lucas: Tem uma outra questão, não sei se cabe agora no momento, mas que é basicamente o fato de eu acreditar muito na importância da representatividade plural do espectro autista. E eu acho importante que também convidem mulheres, convidem pessoas LGBTQIA+, pessoas negras. Então, quando eu não posso participar ou quando, até mesmo quando eu posso, eu deixo de participar de alguns eventos e indico alguns outros amigos que também são autistas e que tem bastante conhecimento sobre a causa e que vão poder falar tão bem quanto ou até muito melhores do que eu. E eu vejo que essas pessoas não aceitam a proposta de substituição de palestrante para colocar um outro autista no meu lugar ou no lugar do Willian, porque elas não estão tão interessadas em ter um autista falando sobre autismo, mas sim de ter aquele autista que tem o número X de seguidores e que vai trazer muita visibilidade pro evento falar.
Então, eu percebo assim que autistas que têm uma maior visibilidade, por consequência, acabam tendo mais convites, mas tem outros autistas que não tem tantas habilidade e que têm um conhecimento muito maior sobre a causa. Então, tenho amigos que são doutores em psicologia, que dominam o tema e não recebem tanto convite quanto aqueles autistas que mal sabem falar sobre autismo para além das suas experiências. Não que seja um defeito grande, mas que eu acabo vendo essa injustiça assim. E a representatividade acaba sendo pequena, porque se se a gente pegar os autistas que mais sobressaem, seja eu ou qualquer outro ou Willian que seja o Tiago, acaba seguindo um padrão assim e a representatividade nem sempre é muito bem suprida. Não sei se eu me fiz entender, mas é isso.
Tiago: Eu acho que isso tem muito a ver também com formações de grupos. A comunidade do autismo tem seus “nichos” e acaba que tem certos nichos que eu já percebo que as pessoas que palestram são sempre as mesmas. Inclusive até entre autistas. Então existem certos segmentos da comunidade do autismo, por exemplo, que eu não consigo entrar, que eu acho que o Willian não consegue entrar, que o Lucas não consegue entrar. Então acaba que quem tem menos seguidores tem menos contatos, por consequência também recebe menos convites.
E eu acho que é uma função muito importante, eu acho que foi bom você ter falado isso, que por exemplo, quando chega no mês de abril, eu recebo tantos convites que eu não dou conta. E aí eu sempre tento transferir e muitas vezes durante a pandemia eu consegui fazer isso. Só que muitas vezes também às vezes os convites não parecem ser tão legais e eu fico com medo de indicar uma pessoa e esse convite ser um convite ruim e a pessoa ser desrespeitada ou de alguma forma.
Aí é o ponto que eu queria chegar com vocês também, que é sobre a formação do evento, porque todo evento tem um público alvo. E aí eu acho muito curioso que para além de alguns eventos que não tem autistas ou que às vezes até tem autistas, aí sempre tem uma nota, consegue sair na imprensa a seguinte notícia desse jeito: “o evento é direcionado para profissionais e para pais que querem aprender mais sobre o autismo”. E eu sempre fiquei pensando assim: “poxa, desde que eu fui diagnosticado com autismo em 2015 e eu desenvolvi interesse pelo autismo, de aprender o autismo, eu sempre frequentei esses espaços e eu nunca me vi com um público-alvo”. E aí eu não estou falando nem tipo falar dos assuntos mais específicos que os autistas se interessam. Mas é de pensar mesmo em autistas adultos com o público alvo dos eventos ou de que alguma forma podem participar.
Então muitas vezes os discursos, as falas vão pensar: “ah, mas para aquela criança a gente vai desenvolver tal forma”. “Ah, mas pra aquela criança”… e às vezes nem adolescente é mencionado. Então assim, existe um delineamento e isso acaba muito sobre o que o público quer assistir. Então aconteceu uma situação muito chata comigo em 2019, que eu acho que é importante compartilhar.
Eu fui convidado pra um evento de autismo que ocorreu numa cidade específica, não vou dar detalhes aqui pra não expor ninguém. E aí esse evento teve uma mesa. Eu fui, eu aceitei participar desse evento, eu fiquei sabendo que era uma mesa de autistas. Cheguei no evento mais cedo, comecei a assistir as coisas ali e aí eu percebi que a minha participação era mais perto do final. E aí quando chegou perto ali do momento da mesa dos autistas, que já começa a ficar um clima um pouco desagradável assim, muitas pessoas já começam a ir embora. E no momento que eu subo ali pra poder falar um pouco sobre autismo junto com outras pessoas, foi um clima meio tipo: “ah que legal, os autistas estão falando” e parece que ninguém estava prestando atenção em nada assim, sabe?
E aí eu comecei a me sentir desrespeitado e me deu uma sensação tão ruim que eu queria largar tudo que eu estava fazendo dali, sabe? Imagina, eu acho que se eu estivesse num estado de fragilidade um pouco maior eu teria saído chorando do evento. Existe uma responsabilidade de quem vai pensar em um evento sobre autismo, sobre a escolha do público alvo, de como vai organizar, de como essas pessoas vão ser recebidas pelo público. Tudo isso são aspectos muito complexos e que muitas vezes pela dificuldade que há aí de pensar em todos esses aspectos, acabam acontecendo coisas bisonhas ou desastrosas como essa. Eu prometi a mim mesmo que eu não ia aceitar passar mais por situações como aquela.
Willian: Pois é, Tiago essa experiência que você falou aí dessa frustração de um evento que notou que você foi tratado de uma forma muito preconceituosa, já fui tratado várias vezes, principalmente em eventos organizados geralmente quando tem uma equipe de marketing ou uma equipe terceirizada mesmo, que não entende nada sobre autismo. E alguém dá um briefing assim: “o palestrante Willian é autista” e tal. Aí a pessoa não tem um preparo, nunca viu um autista na vida. E aí eu já passei por nossa situações bizarríssimas de pessoas me tratando como se eu fosse realmente uma criança de 5 anos, 4 anos de idade, gesticulando, falando alto assim. Como se eu não entendesse.
Situações de capacitismo certamente eu passei, mas felizmente em contexto de eventos não foram tantas eu diria. Porque eu acabei me focando na mensagem que eu estava transmitindo até que ela tenha uma experiência agradável, querendo ou não. E nas primeiras palestras eu de fato focava muito nas minhas experiências, eu não ligava muito pra minha platéia. Eu focava na mensagem, focava na acurácia, na efetividade de passar a mensagem, mas o que a audiência achou, se ela achou bom ou como está me tratando, enfim, não parava pra pensar tanto nisso. Só depois que eu fui começar a pensar mais sobre isso.
E muitos convites e eu recuso, muitos convites hoje em dia, também, principalmente, porque eu vejo essa tendência sim, de que o evento quer um autista porque tem medo de ser enfim de pegar mal, de ter aquela repercussão negativa e no final das contas o evento todo por exemplo é para uma plateia, um público que, por exemplo, tem a ver com médicos, tem a ver com psicologia, tem a ver com algo muito específico, alguma coisa muito específica e aí você chega lá, você tá perdido, as pessoas nem te deram informação, a organização do evento nem te ajudou a conseguir formular uma mensagem, uma palestra ali que seria interessante para aquele público alvo e você se vê ali. “Ah, pode falar do que você quiser”. Aí, ah, tudo bem, aí você escolhe lá falar sobre algum assunto, o organizador não te ajudou em nada e, simplesmente, as pessoas estão ali olhando pra você, “ah, que bonito, o autista também pode falar, que bacana”. “Nossa, como eu era preconceituoso, o autista pode tudo que ele quiser, só ele querer”, sabe? Algo assim. Então, realmente eu vejo que essa tendência existe, é muito problemática. Felizmente eu tenho dito muito não.
Lucas: Eu acredito que o principal problema de tudo isso que a gente tá falando agora seja essa segmentação desnecessária que se cria nesses eventos. Então, geralmente eles dividem basicamente em três grupos, os pais de autistas, os profissionais que falam sobre e de vez em quando os autistas pra falarem de autismo, falarem sobre as suas experiências. E eu não não não entendo muito bem o porquê dessa segmentação, porque pode muito bem na parte de falar sobre como é ser pai de autista, convidar um autista que é pai de autista. É claro que também podem convidar pais que não são autistas, mas eu acho importante mostrar essa representatividade até pra quebrar o estigma de que autistas não tem filhos, que autistas são só crianças. E eu vejo que falham muito ainda nisso.
E isso se aplica ainda mais quando a gente fala de profissionais. Então, essa segmentação faz menos sentido ainda, porque nós temos muitos autistas das mais diversas áreas que tem muita competência na sua formação enquanto autistas e profissionais. Então, como eu e o Willian dissemos no começo, a gente foi, de certa forma, mudando o conteúdo das nossas palestras de uma coisa que era quase que apenas sobre a nossa experiência para uma coisa também que a teoria, além da da nossa prática de vida. E tem diversos outros autistas que podem fazer isso, como eu disse, tenho amigos que são doutores em psicologia, que são jornalistas, das mais diversas áreas, medicina e que quando são chamados para falar é apenas sobre as experiências e não como profissionais.
Então, eu não entendo muito bem o porquê dessa segmentação e com isso eu não quero dizer que profissionais que não são autistas não possam ser chamados, é claro que podem. Mas eu acho muito problemático você restringir o autista falar apenas sobre autismo pelo simples fato dele ser autista. E isso faz com que por muitas vezes essa parte do evento não tenha tanta atenção do público quanto tem as outras, porque geralmente as pessoas acham que nós somos, como costumo dizer, “autistas leves” e que não se aplicam na vida dos filhos dela ou na vida dos pacientes dela que geralmente são crianças e que demandam de algumas questões de maior suporte. Então acho que tudo isso implica muito para que a gente acabe sofrendo esse tipo de preconceito.
Enquanto ao preconceito mesmo eu não tenho tanta experiência assim em palestras presenciais. Vou ter mais agora, que a pandemia deu uma amenizada por conta da vacina, mas eu fiz muitas palestras online durante a pandemia e participei de alguns programas também. E eu acho que nessas situações pode sair ainda mais do nosso controle, porque a gente não tem o poder de mudar a coisa. Porque quando eu tô numa palestra e as pessoas vem com aquele papo de superação, “agora a gente vai ver um autista falando de autismo, olha que bonitinho”, aquela coisa mais infantilizada, eu tento sempre quebrar essa expectativa logo de começo e as pessoas dão risada e tudo, eu tento sempre fazer com bom humor. Mas quando tá numa TV, por exemplo, a gente não tem tanto controle.
Recentemente eu fui convidado para participar de um programa jornalístico e quando eu apareci na tela, lá embaixo, assim, na descrição da imagem ali do título da entrevista, tava escrito lá “superação”, autista supera blá blá blá e não tinha o que fazer. E eu fiquei incomodado porque eu tento me esquivar dessas narrativas de superação, como se a gente tivesse que superar o autismo pra conseguir alguma coisa e não conseguir algo sendo do jeito que a gente é, sendo autista. Enfim, eu acho que tudo isso acaba acarretando em mais capacitismo, em mais estereótipos.
Tiago: É, sobre colegas de profissão eu não vou nem comentar porque já passei por uma situações que… olha pessoal, às vezes eu tenho vergonha de ser jornalista, sinceramente. Então, diante de tudo que conversamos e vocês já deram algumas dicas, mas talvez tenham outras, como os organizadores de evento ou as pessoas que estão envolvidas dentro desse meio de palestras, eventos, podem ser mais amigáveis com autistas nesse processo de convites da promoção de eventos? Quais são as dicas principais que vocês dariam?
Willian: Acho que o ponto principal é transparência. Então, se estamos falando de um evento que todos os palestrantes são remunerados, por exemplo, exceto o autista, e você precisa como organizador fazer aquele convite para aquele autista, mas não pode revelar aquele detalhe ou etc, acho que em geral isso é um sinal de que tem alguma coisa de errada com o seu evento. Então, acho que esse é o primeiro ponto, que um bom evento não teria problema com a transparência e não teria nenhum problema em expor quais são as condições, todas as condições ali para quaisquer que sejam os palestrantes. E é claro, aí fica o critério do autista também de aceitar ali o convite.
O segundo ponto é uma parceria de fato. Conseguir adequar qual seria a palestra pertinente para aquele evento. Então eu vejo muitas vezes que não não é dado nenhum suporte, nem todos os autistas tem experiência com palestra, apesar de vários outros autistas ter experiência com produção de conteúdo, tem as mensagens pra passar tem uma história de vida excelente falando sobre experiência ou falando sobre algum outro assunto que talvez ele queira falar sobre. Mas aí é claro, há o questionamento se esse interesse do autista encaixaria de fato num evento sobre autismo. Porque às vezes, sei lá, o autista tem interesse em física, mas aí esse interesse em física não caberia no congresso de autismo. Mas essa é outra questão, porém pode ser alguma palestra no sentido de como o autismo se relaciona com a aprendizagem de física, ou enfim, isso vai do suporte também das próprias pessoas ali envolvidas no evento em conjunto trabalhar com esse autista pra tentar elaborar uma mensagem, uma palestra que seria interessante. Então eu vejo que esse seria também uma dica valiosa.
E terceiro ponto chave aí que eu acho que o Lucas pode falar melhor sobre, que ele mesmo falou, que é a questão da previsibilidade.
Lucas: A previsibilidade realmente ajuda me ajuda bastante, eu acredito que se ajude também diversos outros autistas. E eu gostaria também de reforçar algumas outras coisas que nós falamos ao decorrer desse episódio, como por exemplo o fato de pararem com essa ideia segmentada de que autistas falam apenas sobre autismo. E também de entenderem que não basta apenas você convidar um autista para falar de autismo, se aquele autista não tiver o mínimo conhecimento necessário para falar sobre aquilo, porque mesmo os autistas que se propõem a falar sobre autismo nem sempre acabam falando de forma correta. Então, não é apenas porque a pessoa é autista que ela pode falar qualquer coisa sobre que vai passar a ser aceitável. Então, acho que tem mais esse problema também e isso não faz com que diminua as possibilidades de convite. Porque tem muitos e muitos autistas, tanto profissionais quanto não profissionais que podem falar sobre as suas experiências ou das suas áreas de atuações muito bem relacionando com o autismo.
E outras coisas importantes: você preparar o ambiente. Eu, por exemplo, gosto de chegar não muito antes do momento em que eu vou fazer a palestra, porque o ambiente, realmente, é uma coisa que não me é muito agradável por ter muitas pessoas, muito barulhos. Então, eu prefiro chegar, fazer a minha palestra e ir embora. Isso pode parecer um pouco rude, mas é a maneira como eu funciono melhor. Eu acredito que seja isso.
Entenderem também, é claro que nós temos contas a pagar, que esse também, de certa forma, é um dos nossos trabalhos e que quando for possível trazer alguma remuneração, que as pessoas não entendam o autista como uma pessoa isenta dessa necessidade. Porque é claro que que a gente não não faz pelo dinheiro, mas que o dinheiro é bem-vindo porque nós estudamos, nós estamos trabalhando ao fazer as palestras. Então, é descabido você pagar por outros profissionais, pagar pelo para os outros participantes e deixar de pagar um autista apenas porque ele é autista e vai falar sobre a experiência dele.
Tiago: Eu diria que o segredo chave pra um bom evento é curadoria. Curadoria demanda pesquisa. E na comunidade do autismo hoje a gente tem tudo na palma das mãos com as redes sociais. Então quem se dispôs e saber como pesquisar sempre vai achar alguma coisa interessante, alguém interessante. Então só pra acrescentar, eu também diria que é importante oferecer perspectivas sobre o autismo que saem um pouco do eixo Rio-São Paulo. E acho que a pandemia ajudou muito isso.
Aqui no Introvertendo por exemplo a gente tem a Carol Cardoso, que morava em Macapá no Amapá e as primeiras palestras que ela conseguiu dar sobre autismo na vida foi depois da pandemia. Porque antes ela não teria a possibilidade de receber convite nenhum pros grandes eventos. Então acho que é muito importante pesquisar, encontrar novas perspectivas, pessoas diferentes, que isso com certeza vai agregar muito mais.
Mas esse assunto não está encerrado, tem muito mais coisas pra falar sobre autistas em eventos de autismo. E o nosso próximo episódio vai abordar um tema paralelo a isso que se chama “O Enquadramento da Experiência”.
Tábata: Olá Introvertendo, meu nome é Tábata Lima, eu tenho 33 anos, moro em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo. Eu sou psicopedagoga e atuo também com acompanhamento terapêutico de jovens autistas. Eu queria dizer que eu gosto muito do trabalho de vocês e acompanho sempre. E teve um episódio em específico que me marcou que foi um que vocês fizeram sobre mulheres autistas. E ouvindo os relatos da Thaís e da Yara, eu me identifiquei muito com as histórias delas e esse episódio me encorajou a ir em busca da avaliação diagnóstica. E há cerca de três meses eu fui diagnosticada com autismo. Eu quero parabenizar vocês pelo trabalho de informação, de pesquisa e de conhecimento que vocês levam à sociedade. Um grande abraço.
Guilherme: Olá, pessoal. Tenho umas dicas pra quem sofre com a disfunção executiva. Eu até já escrevi um e-mail sobre isso que foi lido pelo Tiago e pelo Willian lá no episódio 115 e eu tenho uma dificuldade, na época eu descrevi como um conflito entre rigidez mental, hiperfocos, mas enfim tem a ver com a disfunção executiva. E daí lá na época o Willian recomendou, além de fazer terapia, praticar meditação. Bem, é o que eu já tento, meditar há muitos anos e é difícil porque sempre estou atrasado, sempre tenho coisa pra fazer. Daí fica difícil criar minha rotina mesmo sendo prazeroso meditar. Ah mas daí é uma dica que eu dou é algo que trabalho por ideia própria que eu tive mais ou menos desde 2015 que eu chamava na época de diminuição da entropia cognitiva ou entropia informacional e que usando uns termos mais apropriados aí que circulam na na mídia, eu chamaria de diminuir a infoxicação e de praticar o chamado essencialismo, não sei se vocês conhece, então recomendo quem não conhece essencialismo procure. É o nome de um livro. É basicamente diminuir o consumo de informações, o número de interesses, esse bombardeiro de informações que nós temos aí mais do que nunca hoje em dia, né? Então é focar em poucos assuntos e é algo que eu, quer dizer, hoje em dia eu consigo fazer na relaxa muito bem, mas estou desde 2015 trabalhando nisso então enfim fica a dica.
Tiago: É isso, pessoal. Lucas, muito obrigado por sua participação na Introvertendo e na semana que vem vem o episódio do enquadramento da experiência. Aguarde!