Introvertendo 214 – Disfunção Executiva

Neste episódio, Thaís Mösken recebe Andy, autista e TDAH da página Autie da Favela, e Gabriela Parpinelli, psicóloga e diagnosticada com TDAH, sobre o que são as funções executivas, qual a dificuldade que autistas, pessoas com TDAH e outros transtornos tem com isso e como lidar com essas questões. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Thaís: Olá pra você que é ouvinte do Introvertendo, esse podcast feito por autistas pra toda a comunidade. Meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, hoje trabalho como administradora de sistemas, tenho 30 anos e eu fui diagnosticada em 2018. E hoje eu vou ser host desse episódio em que a gente vai falar sobre disfunção executiva. E pra falar sobre esse assunto, nós hoje com duas convidadas. Então Gabriela, por favor se apresente e pode ajudar tanto as suas credenciais quanto se você quiser dar o seu contato também.

Gabriela: Bom gente, é um prazer estar aqui com vocês. Fiquei muito feliz pelo convite porque eu só ouvinte, inclusive, desse podcast maravilhoso. Meu nome é Gabriela Parpinelli, eu sou psicóloga, sou especialista em Análise do comportamento pelo Paradigma de São Paulo e sou especialista também em neurociências aplicadas à aprendizagem pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Sou carioca aqui do Rio de Janeiro, sou TDAH também, diagnosticada tardiamente. Então hoje a gente vai falar de um tema que inclusive é algo que também compromete algumas áreas da minha vida. Espero poder passar aí um pouquinho de alguns exemplos e informações e é isso. Se vocês quiserem me encontrar nas redes sociais é só colocar Gabriela Parpinelli que vocês me acham.

Thaís: E estamos também aqui com a Andy. Andy, por favor, se apresente.

Andy: Oi gente, meu nome é Andy, né? Eu tenho 23, anos tive diagnóstico de autismo com 18 e de TDAH desde criança. Fui começar a entender junto com o diagnóstico de autismo. No momento, eu não faço nada da minha vida (risos), eu tenho uma página no Instagram que chama Autie da Favela e tenho uma lojinha de camisetas e é isso.

Thaís: O Introvertendo é um podcast feito por autistas com a produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Thaís: Bom Gabriela, então dada a sua área de estudo, você pode contar pra gente o que é exatamente uma função executiva?

Gabriela: Essa parte de funções executivas é um tema muito complexo porque atinge várias áreas da vida das pessoas. Mas o que seria então nessas funções executivas? Uma ampla variedade de habilidades e capacidades que permitem com que a gente execute ações que sejam necessárias para atingir uma meta, um objetivo. Então basicamente a gente pensar as funções executivas como uma capacidade da gente se organizar para conseguir fazer algo.

Então, por exemplo, pra eu conseguir pegar um ônibus, OK, o que que eu preciso organizar de informações? Ah, peraí, eu preciso saber qual é o número do ônibus, qual é o destino do ônibus, qual o lugar que eu tenho que saltar pra chegar onde eu quero. Certo. Então, eu tenho que fazer um planejamento das etapas, certo? Então, vamos lá.

Eu tenho que ir até o ponto de ônibus, que fica na frente do McDonald ‘s, perto da minha casa. Quando o ônibus chegar, eu tenho que levantar a minha mão e fazer um sinal com o dedo pra ele parar. Depois, eu tenho que entrar, pagar o trocador, verificar o troco e escolher um assento vazio, sentar… dentro do trajeto, olha quantas etapas, né?

Dentro do trajeto, eu tenho que perceber o tempo que ele vai levar até o ponto onde eu tenho que saltar, achar um ponto de referência. Ah, já sei. Eu tenho que saltar perto daquele shopping. Tá, quando estiver chegando na farmácia, perto do shopping, é o momento que eu vou sinalizar com o motorista que eu vou descer. E depois eu chego no meu destino.

Se vocês perceberem, aqui eu falei várias etapas para chegar no meu objetivo final, que era ir ao shopping, o que muitas pessoas as vezes… não todas, a gente poderia falar as pessoas neurotípicas, que não apresentam uma disfunção nesse processo das funções executivas, é algo muito automatizado. Elas não tem que mais parar e pensar passo a passo pra conseguir chegar lá. Elas vão no automático.

Pessoas neurodivergentes e aí a gente pode falar dos diagnósticos presentes nesse podcast, autismo e TDAH, essas pessoas têm uma disfunção nessa área. Então elas têm essa dificuldade de saber: o que eu tenho que fazer pra conseguir chegar no shopping? Então, é algo que a gente vai ensinando através, por exemplo, de um checklist e aí ela vai se orientando passo a passo até ela conseguir por repetição, treinos repetitivos de como ela vai pegar aquele ônibus. Num dado momento ela vai começar já a ter um movimento mais automatizado. Mas acaba precisando de um treino mais sistemático talvez e mais intenso do que pessoas neurotípicas.

E aí nesse grande exemplo que eu dei de uma habilidade que pra muitos é muito simples, né? “Poxa, só pegar um ônibus e chegar no shopping gente, fala sério, é muito fácil”. Não, pra essas pessoas isso gera um cansaço mental, um esforço mental muito exacerbado. O que faz que muitas vezes elas se percam no meio do planejamento e aí acabam não conseguindo executar a ação com sucesso.

Além disso, a gente pode entender também que, dentro da disfunção executiva, tem outras dificuldades que as pessoas neuroatípicas podem apresentar. Como por exemplo, uma dificuldade muito grande de tomada de decisão. Então às vezes ela tem que ir pra um trajeto pra chegar no trabalho e aí naquele momento ela acaba ouvindo uma notícia no rádio de que houve um acidente e aquela rua foi fechada. Naquele momento ela tem que parar, olha o replanejamento mental, né? Ela já tava ali como se fosse o Waze, sabe? O Waze, aquele aplicativo de rotas?

Quando a gente acessa, a gente coloca o destino e ele traça a rota pra gente. Só que quando acontece uma imprevisibilidade e a gente não pode mais ir naquela rota? Essas pessoas têm uma dificuldade de flexibilizar o que elas tinham programado antes, o que a gente chama de inflexibilidade cognitiva. E aí nesse momento ela tem que ter a capacidade de pensar em outras alternativas de rotas para chegar naquele destino e quando ela descobre, por exemplo, duas rotas, ela vai ter que tomar uma decisão.

Bom, será que eu vou pegar essa que ela é mais curta mas ela passa por um lugar perigoso ou eu vou pegar essa que é mais longa mas aí talvez eu consiga chegar com um destino mais seguro dentro de uma cidade? Então esses prós e contras são habilidades que a gente vai desenvolvendo com o passar do tempo que nos ajudam numa situação dessa de imprevisibilidade, por exemplo, a tomada de decisão.

Então eu imagino não sei se vocês já passaram por isso, né? Mas eu moro no Rio de Janeiro e sempre acontece da gente ter que mudar o trajeto e isso acaba sendo muito cansativo e muito estressante no dia a dia.

Andy: Quando você começou a descrever o rolê do ônibus, eu fiquei pensando: “meu Deus eu faço exatamente isso!”. E eu cansei de ouvir você descrevendo (risos), porque eu fico desse jeito.

Fora que não é só isso. Tipo, em qualquer situação que a gente vai fazer, a gente planeja cada mínimo detalhe, né? Tipo, vai lavar uma louça, aí eu tenho que separar isso aqui…

Gabriela: …Exatamente!

Andy: E só de planejar você já cansa. E a pessoa fica: “ai, mas é só lavar louça”. Não é só lavar louça, cara.

Gabriela: E acaba que a gente tem um discurso das outras pessoas que também é muito pouco empático, né? Elas querem muito que os autistas sejam empáticos, TDAHs sejam empáticos, mas quando a gente não consegue ter a mesma eficiência que eles em alguma habilidade, acaba que eles invalidam muito o nosso sentimento, a nossa dificuldade, o estresse que é causado, o cansaço mental.

Então eu acho que é muito interessante a gente falar de funções executivas e dar esses exemplos para que as pessoas entendam que não é um processo tão simples assim pra quem tem essa disfunção.

Andy: E não é preguiça.

Gabriela: Exatamente. Não é falta de força de vontade, né? A gente ouve muito isso, são rótulos que com o passar dos anos imagino que talvez você também já tenha passado por isso, mas a gente ouve desde a infância. Desde a da sala de aula, de… “mas é só você prestar atenção na aula”. Não, não é ‘só’ eu prestar atenção.

Andy: Um exemplo que eu gosto muito de usar da disfunção executiva é tipo assim: imagina que você está sentado na sua cama e tem uma garrafa de água na sua frente e você pensa: “eu preciso beber água”, mas você não consegue se mexer pra pegar a garrafa, abrir e beber água. Você sabe que precisa, você sabe o que tem que fazer mas você fica paralisado por causa das disfunções executivas.

Gabriela: Uhum. Exato. Então assim, dentro das dificuldades de pessoas que tem a disfunção executiva, tem o que a gente acabou de falar da tomada de decisões. Tem a dificuldade de autorregulação emocional. Então muitas vezes há um gatilho que faz com que você fique muito irritado, muito nervoso e você não consegue equilibrar essa emoção e acaba tendo uma crise.

Enfim, a questão do controle inibitório, que ela é extremamente relevante, por exemplo, pra quando você tá num ambiente com muitos distratores e você precisa bloquear alguns distratores para no que a pessoa está falando, seja numa aula, seja até numa conversa, né? Então, às vezes você está conversando com um amigo, aparece um outro amigo, interrompe aquela conversa, passa uma moto do lado e você não consegue aprofundar esse foco atencional por não conseguir inibir esses extratores, que a gente chama muito de atenção seletiva que é uma dificuldade muito grande que a gente apresenta.

Então o controle inibitório também tem a questão das pessoas… tem um termo que as pessoas usam, imagino que você já ouviu falar, que é que principalmente TDAH é muito sincericida. Eu não sei se vocês já ouviram esse termo (risos). E assim, né gente? Com o tempo, a gente consegue trabalhar um pouquinho o controle inibitório, de entender que quando tua amiga perguntar: “você gostou do meu cabelo que eu pintei?” Você não pode falar, não, não gostei, ficou feio. Tem nada a ver com você, meu Deus do céu gente, pinta esse cabelo de novo.

Hoje a gente é adulto a gente já entende que há uma consequência social em relação a isso né e emocional pro outro, e a gente tem que frear esse pensamentos que tem pra entender o momento que é adequado e saber o grau de intimidade que você tem com a sua vida pra poder fazer um comentariozinho assim um pouquinho mais honesto, vamos dizer.

E além disso, a gente vê a dificuldade na noção temporal. Então a disfunção executiva dificulta com que a pessoa saiba administrar o tempo dela, né? Então muitas vezes ela até começa uma atividade e não consegue terminar porque tinha um tempo específico por exemplo pra fazer um concurso público, pra fazer uma uma prova de vestibular que tem um horário e você tem que se organizar dentro daquele horário pra responder as questões e ainda sobrar tempo pra fazer uma produção textual.

Então, essa administração de tempo também é uma dificuldade, assim como o que eu acho que mais permeia principalmente os autistas, que é a questão da flexibilidade cognitiva, que prejudica em muitas áreas. Mas depois eu posso dar alguns exemplos pra vocês.

E o outro ponto que é extremamente importante é a questão da memória de trabalho. As pessoas que tem uma disfunção executiva, elas têm muita dificuldade de, ao receber informações do ambiente, elas conseguirem organizar essa informação na mente dela, colocar na caixinha certa, né? Então, OK, eu liguei pra Thaís e ela me passou uma informação, eu preciso dessa informação pra usar daqui a dois minutos. Então, eu preciso dar essa informação na caixinha da memória de curto prazo. Não, a Thaís me falou uma informação que eu achei muito interessante, mas vai ter um dia que eu vou parar e vou pesquisar isso. Bom, não é uma informação que eu preciso manipular e utilizar a curto prazo. Então, o que a memória de trabalho vai fazer? Jogar lá pra caixinha de longo prazo.

E aí, a gente percebe que as pessoas autistas, muitas vezes, elas têm a dificuldade dessa organização dessas informações e conseguir acessar no momento adequado. Entretanto, quando a gente fala de pessoas mesmo sendo pessoas autistas, TDAH ou qualquer outro transtorno, cada pessoa é única. Então pode ser que tenha autistas, como eu conheço vários, que tem uma memória fantástica. Às vezes até uma memória mais até visual, né? De conseguir gravar a rota, de gravar imagens e elas conseguem acessar muito bem. Mas muitas vezes também mais ligadas à parte de hiperfocos. Então, ela acaba conseguindo focar tanto naquilo que a memória fica sempre ali fresquinha pra ela poder utilizar.

Muitos TDAHs relatam muita dificuldade de memória. Eu sou uma que eu falo pra todo mundo. Gente, tudo que vocês me pedirem eu vou fazer. Eu sou a rainha do: “Gabi, me manda um material X. Gabi, me manda isso?”. Sim, sim, sim. Só que eu não mando porque eu não lembro. Aí eu falo: “eu mando. Cê só me manda uma mensagem me lembrando que vou te mandar”. E daí eu vou criando estratégias também pra eu conseguir dar conta disso, mas a minha memória é extremamente falha. Então se eu não usar nenhum tipo de anotação, recurso, alarme no celular, eu não consigo lembrar de muita coisa.

Então, a memória de trabalho eu vejo até em TDAHs às vezes ser muito mais deficitária até do que em pessoas autistas. Mas cada um, né? Estamos falando de pessoas e cada uma pode apresentar em graus diferentes, de formas diferentes.

Thaís: Bom, e aproveitando que a Gabriela falou sobre a questão do sincericídio, a gente também tem um episódio sobre sincericídio que é o nosso episódio 87, então quem tiver interesse pode conferir lá em qualquer um dos aplicativos que a gente sempre comenta.

Agora que a gente já sabe tanto que é uma função executiva quanto a disfunção executiva, nada melhor do que trazer que possa dar seus próprios exemplos. Então Andy, conta primeiro um pouquinho pra gente como foi o seu diagnóstico de autismo.

Andy: Quando eu era criança, eu tinha uns quatro, cinco anos por aí eu fazia acompanhamento com a pediatra e tal. E essa pediatra suspeitava que eu era autista e que a mãe também suspeitava que eu era autista. Só que era 2002, sabe? O que se conhece sobre autismo hoje não era 10% do que se conhecia naquela época. Então a pediatra descartou o meu diagnóstico porque quando ela me chamava eu olhava pra ela. E aí ela me deu um diagnóstico do TDAH nessa época e beleza. Passei minha vida sendo TDAH com a memória sendo uma porcaria, mas enfim.

E aí quando eu tinha 18 anos eu estava fazendo pré-vestibular e todos os alunos do pré-vestibular precisavam fazer acompanhamento psicopedagogo. O psicopedagogo sempre conversava comigo e tal e teve um dia que falou assim: “olha eu acho que você é autista”. Eu falei: autista? Que isso, né? Está doido!

Ele na época até me deu um encaminhamento para um psiquiatra e eu não fui! Deixei pra lá porque eu achei que ele estava doido! No final de 2019, eu comecei a ter mais contato com pessoas autistas no Twitter. E aí eu fui vendo as coisas que as pessoas falavam e me identificava e aí eu comecei a pensar: “uai gente, será que ele estava certo?” (risos).

E no ano passado, com 22 anos, eu recebi meu diagnóstico oficial. Agora eu falo sobre autismo na internet, sobre a minha vivência enquanto autista, eu só falo realmente das dificuldades que eu faço, das coisas que eu consigo fazer, das eu não consigo fazer, basicamente é isso.

Thaís: Bom Andy e como é que é a questão da disfunção executiva pra você?

Andy: É tenso (risos). Porque além desses dois diagnósticos, eu também tenho depressão. E é uma coisa que me paralisa absurdamente. Então tem dias que eu não consigo levantar da cama pra fazer nada. Eu faço o possível pra ter uma uma rotina, manter uma rotina, mas até manter uma rotina é difícil por causa da disfunção.

Thaís: Então Gabriela, fora esses exemplos que a Andy já deu da vida pessoal dela, o que mais você considera que a disfunção executiva pode afetar na rotina de um autista na vida adulta?

Gabriela: Se a gente pensar na função executiva, como muitas vezes até pré-requisito pra você desenvolver habilidades sociais, a gente pode dizer que não “só” sobre a questão e o “só” aqui, né gente não é diminuindo, mas não só a questão da rotina do dia a dia mas as interações sociais. Porque por exemplo, se eu sou uma pessoa extremamente inflexível cognitivamente, eu posso tender por exemplo a ter opiniões muito extremadas, muito radicais e aí isso de alguma forma fazer com que eu não consiga dialogar com pessoas que não tenham a mesma opinião do que a minha, que é algo que a gente vem vivenciando nas redes sociais.

E aí eu não tô falando nem só de autistas ou de TDAHs, mas o contexto que a gente vive são de polaridades em relação às opiniões e você percebe que as pessoas que tem uma inflexibilidade maior elas tem uma dificuldade muito grande no que a gente chama de tomada de perspectiva, dela conseguir se projetar na experiência do outro pra entender a visão dele. Se ele não consegue desenvolver essa tomada de perspectiva, ele vai ter uma dificuldade na questão da empatia mais relacionada a empatia cognitiva, dele conseguir se colocar no lugar novo mas inferir o que o outro pode precisar naquele momento e ferir os sentimentos, os pensamentos. Então, essa disfunção executiva ela inclusive vai trazer muitos prejuízos sociais.

E aí a gente pode pensar que se eu estou por exemplo no trabalho, eu preciso ter uma flexibilidade e ver que na minha equipe eles deram propostas diferentes da eu acho que é a melhor. E aí se eu preciso trabalhar em equipe eu tenho que ter a capacidade de ouvir a opinião deles, de eu saber colocar a minha opinião de uma forma assertiva e aí eu conseguir ter esse diálogo.

Na assertividade, que é uma outra habilidade social, a gente precisa de algo que a gente chama de resolução de problemas. Então se eu tenho uma disfunção executiva, eu tenho dificuldade de pensar em alternativas, como a gente já falou em outro exemplo. E aí como que eu vou conseguir, numa situação, expressar a minha opinião que é uma opinião talvez não exatamente contrária mas diferente da outra pessoa, mas pensar que eu vou falar de uma forma sem que eu agrida o outro ou que eu passo por cima do direito do outro. Eu preciso ter a capacidade de antes de falar…

…Aí olha como a tríade ali da função executiva, a gente poderia dizer que a tríade executiva seria flexibilidade cognitiva, controle inibitório e memória de trabalho, como elas não são setores separados. Elas se interligam. Então, eu tô numa reunião, eu preciso falar com o meu chefe uma opinião minha que não vai de encontro com a proposta dele, OK. Se eu falar de uma forma agressiva, eu vou ter consequências. Eu posso levar uma punição, posso ser demitido, enfim, pode acontecer diversas coisas. Que que eu tenho que fazer? Eu tenho que parar, ter controle inibitório, não falar tudo que eu estou pensando, filtrar o que que é relevante para aquela discussão e antes de falar, pensar numa forma que isso não atinja o outro, não seja agressivo ao outro.

Então, se eu não tenho controle inibitório, se eu não tenho flexibilidade cognitiva, eu vou acabar me colocando numa situação muito desconfortável, tendo um comportamento inadequado para aquele contexto e vou sofrer algum tipo de consequência negativa.

Andy: Isso faz muito sentido, não só nessa parte da consequência, mas porque pra gente conversar com uma pessoa que está na mesma ideia que a gente, a gente vai gastar bem menos energia do que com uma pessoa que está discordando, porque a gente tem que pensar em argumentos pra rebater aquilo ali.

Gabriela: Exatamente.

Andy: E isso é muito mais pesado pra cabeça do que estar numa conversa fluído sobre o mesmo tópico.

Gabriela: Exatamente. Eu falei no contexto de trabalho, de reunião, né? Mas isso a gente pode levar pra qualquer contexto. Às vezes você está num grupo e aí você não consegue entrar naquele grupo. Você já tem uma inabilidade, uma dificuldade de entrar no grupo. E aí quando você entra, você tem que ter o controle inibitório porque eu gosto muito de falar sobre o meu hiperfoco e as pessoas não tem interesse naquele hiperfoco. E aí eu vou pensar, bom, eu quero estar nesse grupo? Bom, se eu quero estar nesse grupo eu vou ter que prestar atenção no assunto deles e de alguma tentar interagir, seja fazendo um comentário, uma pergunta. E aí imagina, você tá lá na terapia…

Andy: É difícil.

Gabriela: É muito difícil gente, você tá na terapia, eu trabalho muito fazendo roleplay, que é como se fosse dramatizações de situações sociais para que os autistas vão treinando como ser assertivo naquelas situações e como saber estabelecer uma conversa, manter essa conversa, porque as vezes isso é o mais difícil, né? Às vezes não é nem o iniciar. E aí imagina que eu faço um megatreino, a gente pega tópicos que o pessoal do grupo dele fala, ele vai todo programado, chega na hora, eles mudam completamente o interesse e os assuntos.

Andy: É o mesmo que você planejar o roteiro de uma conversa na sua cabeça, aí você começa falando tipo: “oi, boa tarde”. Mas a pessoa não falou: “oi, boa tarde também”. Aí já descarrilhou o pensamento todo e você não sabe mais o que falar (risos).

Gabriela: Exatamente, por quê? Porque você teve um planejamento e você acaba falando: “não, eu treinei, eu planejei, vai acontecer dessa forma, certo?”.

Andy: Vai dar certo.

Gabriela: Só que não! A gente sabe que as interações são imprevisíveis, as pessoas nem sempre vão tá ali dispostas também a conversar ou dispostas a falar daquele assunto naquele dia, porque aí às vezes ela tá acordando mal-humorada, enfim, são muitas habilidades que ele vai ter que parar, observar, planejar. E sempre quando eu trabalho com eles fazendo roleplay, eu sempre coloco isso pra eles. Eu falei, olha, a gente treinou esse passo a passo, mas é uma possibilidade. Agora, vamos treinar a mesma cena, mas dando errado. Por que eu faço isso? Porque eu quero trabalhar com eles a resolução de problemas.

Andy: Eu faço isso na minha cabeça com todas as coisas. Eu sempre tenho duas situações porque se der certo então vai sair do jeito que eu planejei e se não der eu já estou preparada (risos).

Gabriela: Nossa Andy, que bom. Porque isso é um treino muito importante. Quanto mais você consegue pensar em diversificar as soluções para uma dada situação social, você se torna mais flexível cognitivamente e você aumenta as possibilidades de talvez dar certo. E se não der também, a gente trabalhar aqui, OK, não deu aquele dia, mas no dia seguinte a gente pode tentar de novo.

Andy: Ao contrário dos seus pacientes, eu não tive alguém pra me ensinar, né. Eu tive que aprender na marra, me ferrando muito na vida e levando muito fora porque as pessoas diziam que eu era intrometida que, enfim, várias coisas, várias ofensas, né?

Gabriela: Sim.

Andy: Então, eu tive que aprender a me programar pra várias situações. E eu aprendi na marra e às vezes eu não consigo fazer isso, mas eu sempre tento.

Gabriela: E é extremamente exaustivo mentalmente pra você. Eu imagino.

Andy: Nossa, demais!

Gabriela: Você teve um diagnóstico de autismo no caso mais tardio, e você pontuou que no momento você também tem como comorbidade a depressão. E algo que é muito típico principalmente na adolescência e no início da fase adulta. O que acontece: você foi uma sobrevivente, né? Ninguém te ensinou o passo a passo, ninguém te deu estratégias. Você teve que criar recursos próprios para dar conta dessas interações. Você até conseguiu, né, uma estratégia que eu estou orgulhosa porque eu fiquei muito feliz de ver com você.

Andy: Ah, obrigada!

Gabriela: É sério. Eu fiquei muito feliz de ver que você mesma chegou no ponto e falou assim, tá, eu entendi. Dessa forma normalmente é a forma que as pessoas fazem, mas pode não dar certo e se não der certo, eu tenho que pensar em outra possibilidade. E a vida é assim, né? Eu acho que até pras pessoas típicas nem sempre o que eles programarem também vai dar certo. Só que para pessoas com disfunção executiva, é muito mais difícil porque ele tem que reprogramar tudo que ele tinha passado horas…

Andy: E a gente programa tudo! Tudo! Ai, é um inferno!

Gabriela: É muito cansativo. Eu entendo muito o lado de vocês, sabe? Eu sou apaixonada por essa parte de treino de habilidades sociais, mas eu sempre falo com eles: olha só, você não tem que interagir. Não existe isso. Isso aí é uma questão cultural que as pessoas querem te encaixar. A gente trabalha aqui na aceitação do autismo e não na questão de “ai, a psicóloga está trabalhando com eles que ele tem que aceitar o autismo. Olha que coisa linda”. Mas ela quer que ele se comporte da forma menos autista possível. Sabe? Tipo: “aí, aceita o autismo. Mas não seja autista, hein!”. Claro que não, entendeu?

E eu como psicóloga, qual é o meu papel ali? É que o meu paciente tenha 50 amigos? Não, o meu papel ali é: eu vou instrumentalizar ele em relação às habilidades sociais, eu vou treinar as habilidades sociais com ele para que ele tenha recursos para colocar em prática quando ele achar que é importante pra quando ele achar que é confortável pra ele.

Pra mim não tem problema nenhum eu ter um paciente que diga: “olha Gabi, pra mim eu só quero ter um amigo na vida”. OK. Por que que eu vou ficar ouvindo a demanda da família dizendo que ele tem que ter um ciclo maior de amigos se ele é feliz dessa forma? Mas isso quer dizer que eu não vou treinar habilidade social? Vou treinar. Porque ele sempre vai estar interagindo. Seja pra contar um pão na na padaria, seja pra ir trabalhar e ter que falar com o chefe. Então eu vou instrumentalizar. Mas a escolha vai ser sempre dele.

Vai ter dia que ele vai chegar na escola em qualquer lugar e vai falar: “olha, hoje eu estou muito cansada. Eu estou com uma sobrecarga sensorial e pra mim assim, só de perto do grupo já é demais. Então eu não vou fazer isso”. E ele tem que respeitar o tempo dele e o momento dele. Entende? Então isso é uma coisa que eu tenho tentado trabalhar muito com os pacientes, mas também com a família. Porque vem uma expectativa muito grande deles, né?

Andy: E isso é uma coisa que eu ainda preciso trabalhar. Eu admito. Porque eu estou num lugar, por exemplo, sei lá, tô na casa de alguém e tem seis pessoas conversando. Eu sinto a necessidade de que eu tenho que estar ali com aquelas pessoas conversando. E às vezes eu não quero conversar, às vezes eu só quero estar quieta no meu canto. Mas eu olho pra todo mundo interagindo e aí minha cabeça fica assim: “vai lá, vai pra lá. Você está está sendo chata, você está sendo inconveniente, você tá sendo…”, sabe?

Gabriela: É uma cobrança sua mesmo, né?

Andy: Isso, porque me ensinaram que eu tenho que que ser assim, que se você tá num lugar, você tem que conversar, você não pode ficar quieta no seu canto, só que às vezes eu só quero estar quieta no meu canto.

Gabriela: Exato. E por que não? Por que você não pode ter esse direito? A gente é livre pra escolher, né? E se você quer aprender OK, mas na hora de praticar você tem que se avaliar o quanto isso estar sendo benéfico pra você ou você só está entrando num personagem que vai ser feito socialmente.

Andy: Todas as vezes que eu faço isso quando eu estou lá eu fico: “gente, mas por que que eu estou me colocando nessa situação se eu claramente estou desconfortável”, sabe? Eu fico pensando que eu deveria mas eu ainda não consigo sair. É um processo.

Thaís: Então aproveitando o que vocês já comentaram até aqui Andy, queríamos saber, acho que essa é uma coisa muito importante que a gente traz em alguns dos nossos episódios: Você tem dicas pra outros autistas que também precisem lidar com a disfunção executiva? Como tornar a vida um pouco mais simples ou algo assim?

Andy: Coisas que eu faço pra lidar com a minha disfunção executiva. Existem momentos que eu real me obrigo a fazer. Porque eu preciso fazer. Eu preciso fazer comida. Eu preciso lavar louça. Então eu brigo comigo mesma pra fazer. O que não é muito saudável. Eu fiz um bullet journal, nele tem minha rotina milimetricamente escrita com todos os horários, eu botei horário pra tomar banho horário pra escovar os dentes porque colocando os horários que eu preciso fazer as coisas eu programo o meu cérebro tipo assim: “ah beleza, sete horas eu vou escovar os dentes”, então seis e cinquenta e nove eu já tô andando pro banheiro pra escovar os dentes, sabe? Essa previsão do que eu tenho que fazer tem me ajudado bastante a conseguir manter.

Eu sou horrível com rotina, porque TDAH e ao mesmo tempo eu só funciono com rotina porque autismo (risos). Então paradoxo. Eu também uso o Notion pra me organizar, tipo quando eu preciso de algo mais detalhado eu anoto um resumo no bullet journal e aí vou no Notion, que é um aplicativo, e coloco tudo detalhado lá e ele tem alarmes, tem várias funções e fica visível no meu celular que tá sempre na minha mão ao contrário do bullet, né?

Thaís: Gabriela, Andy, muito obrigada pela participação de vocês hoje dando essas entrevistas, comentando bastante sobre esse tópico. Queria saber se vocês tem algum tipo de comentário final. Então Gabriela, você tem algum comentário final?

Gabriela: Olha gente, primeiro queria agradecer muito a participação, foi muito interessante a nossa conversa, acho que essa troca ela é muito rica pra gente sempre tá aí aprimorando conhecimento. A gente aprende com a experiência dos outros também. E sobre essa questão da função executiva, realmente ela traz muito prejuízo quando não trabalhado, acaba que muitas pessoas com disfunção executiva, elas passam anos e anos tendo pequenos fracassos nas metas delas e isso pode levar a um quadro de ansiedade alto, um quadro de depressão.

Então é sempre importante que entenda que você não vai deixar de ter a disfunção executiva, mas existem várias estratégias e recursos que você pode começar a usar no dia a dia, como a Andy maravilhosamente falou da questão dela colocar uma rotina com horários, pra ela começar a se planejar. Eu coloco muito lembrete no meu celular, meu celular apita o dia inteiro.

A gente vai criando, não tem uma regra. Mas existem muitos recursos. E quanto mais você tenta treinar especialmente questões relacionadas à memória, a controle inibitório, flexibilidade, você tem uma melhora no seu dia a dia e você vê que as coisas começam a acontecer.

Porque ter uma disfunção executiva não tem nada a ver com a sua capacidade cognitiva. Você pode ser uma pessoa extremamente inteligente, ter milhões de ideias. Por exemplo, os TDAHs normalmente tem muitas ideias ao mesmo tempo, são muito criativas, mas não conseguem executar. Por quê? Porque eles não conseguem organizar as ideias, fazer um passo a passo pra ir aplicarem.

Então com o treino é muito possível que vocês tenham sim uma rotina muito melhor, muito mais produtiva e isso com certeza também vai influenciar na autoestima de cada um, enfim. Então esse é o meu recado final. Treinem muito função executiva, independente da idade, porque vocês vão ter uma qualidade de vida muito boa.

Andy: Primeiramente eu queria agradecer pela oportunidade incrível que, assim, sou muito fã do podcast desde que me apresentaram. E também a Gabriela que é inteligente pra caramba. Se não fosse ela eu ia estar falando igual uma batata aqui. Ela que explicou as coisas só dei os exemplos (risos).

Abracem sua disfunção executiva, ela não é um monstro, ela não é a pior coisa do mundo, ela é parte de você. E no momento que você abraça ela, você vai aprender a lidar com ela, sabe? E você vai se conhecer melhor, vai se entender melhor, e vai conseguir fazer ela funcionar (risos). Então é isso gente. Se cuidem, bebam água e usem máscara pelo amor de Deus, não escuta o presidente.

Gabriela: Concordo plenamente. Assino embaixo, onde está o papel? (risos).

Thaís: E muito obrigada a todos os ouvintes. A gente se vê no próximo episódio.

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