A comunidade do autismo não é um ambiente de paz e amor e parte disso está na relação conflituosa entre autistas. Grupos e comunidades cujos membros trocam ofensas frequentes, perseguições no âmbito do ativismo e até casos policiais e judiciais já são coisas do nosso presente. No terceiro e penúltimo episódio da série “Precisamos Falar Sobre…”, detalhamos a toxicidade do meio autista e as consequências disso. Participam: Carol Cardoso, Tiago Abreu e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e o primeiro do nosso país a trazer autistas para discutir autismo. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo e eu estou na missão de trazer um tema bastante polêmico, mas que com certeza vai ser bastante pra gente pensar a comunidade do autismo.
Willian: Meu nome é Willian Chimura, sou um ativista, também sou autista, faço mestrado em informática na educação pesquisando justamente tecnologias para autismo. E como sabem, autistas são seres humanos e seres humanos podem ser excludentes uns com os outros.
Carol: Eu sou a Carol, tenho 24 anos, sou arquiteta e fui diagnosticada com autismo em dois mil e dezoito e até hoje ainda bem, ainda não fui cancelada, mas eu tô esperando chegar porque enfim.
Tiago: Esse episódio então é para falar sobre os autistas excludentes, quem são eles de fato. Esse episódio faz parte de uma série aqui do Introvertendo que a gente sempre fala de “precisamos falar” sobre alguma coisa que geralmente são temas polêmicos, que são pouco debatidos na comunidade do autismo e que a gente vê uma certa urgência falar isso.
Ano passado nós falamos dos autistas que não transam e dos autistas biscoiteiros e esse é o primeiro de dois episódios deste ano que a gente vai falar também sobre outros fenômenos envolvendo os autistas. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas cuja produção é da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Tiago: A gente sabe que muitos autistas ao longo da vida, antes mesmo do diagnóstico, experienciaram uma exclusão social até porque é um dos principais critérios diagnósticos do autismo é a dificuldade de interação social. Até já falamos isso um pouco no episódio 194, que é o episódio Autismo na Infância sem Diagnóstico. E a gente sabe também e eu imagino aqui que é da experiência de vocês dois que receberam o diagnóstico, que o autismo também trouxe a possibilidade de se inserir uma comunidade. E eu queria saber como é que vocês entraram na comunidade do autismo e como vocês perceberam as interações nesses espaços.
Willian: Pois é, na verdade eu estava justamente me lembrando disso, Tiago. Porque o meu primeiro contato com a comunidade é principalmente em grupos de pais de autistas, porque essa é a maior probabilidade. Eu acho que existem mais grupos de pais do que realmente grupos voltados para autistas. Eu fiquei hiperfocado em autismo, em explicar principalmente quais são as características, como as características se relacionam com o comportamento do dia a dia, comecei a ter essa sensação de que: “OK, eu gosto dessa comunidade, eu gosto desse lugar” e com certeza isso contribuiu para me achar em uma comunidade, o que antes eu poderia dizer que eu tive isso um pouco na programação. Porém, realmente tive vários conflitos também na comunidade entre programadores. Então na comunidade do autismo eu passei a notar que isso não existia tanto.
Mas isso foi apenas a primeiro momento, infelizmente. Porque chegou no momento em que eu começo a entrar em outros grupos de autistas e eu começo a notar que eu tenho visões diferentes e opiniões sobre diversas questões. Quando passei a me entender como um ativista, por exemplo, principalmente quando eu sou comparado com outros ativistas, meus posicionamentos… você vê uma diferença. A começar pela diferença que eu acho que é a mais gritante, vamos dizer assim, no meu caso, que é sobre a minha postura de ser um entusiasta da Análise do comportamento aplicada e entender que a disseminação de não somente Análise do comportamento aplicada, mas as práticas baseadas em evidências é uma prioridade para os autistas. Enquanto justamente na maioria, na maior parte dessa corrente do ativismo aqui no Brasil, os ativistas se posicionam ao oposto disso. Eles não não entendem da mesma forma que eu.
Então passei a notar principalmente este ponto, mas não somente, mas esse ponto é muito relevante. Quando você entende ele de uma forma diferente, parece que você não pertence mais ao mesmo grupo, eu pelo menos senti dessa forma. Que é como se existem diversos outros grupos de autistas que às vezes por um ou dois posicionamentos, por uma ou duas formas de se entender o mundo de uma maneira diferente, você está convidado a se retirar daquele grupo.
Carol: Bom, eu entrei na comunidade mesmo antes de eu ter o meu diagnóstico, então assim, primeira vez que eu me lembro de participar de grupos sobre autismo, foi quando eu tinha 14 anos, isso por volta de 2010, 2011, que foi quando eu comecei a ler sobre a Síndrome de Asperger e eu me identifiquei muito. Mas o meu diagnóstico só veio na fase adulta.
Então, eu participava de uma comunidade do Orkut e, sinceramente, aquele era um ambiente bem pacífico. Eu não me lembro de ver nenhuma treta muito séria. E eu acho que isso veio mais a partir do Facebook. Eu lembro que desde o começo o Facebook acabava inflando demais as discussões. Quando era no Orkut a gente basicamente falava das nossas experiências.
A única coisa que eu me lembro que já tinha alguma polêmica era da relação com os pais. Alguns autistas eu percebia que que ficavam descontentes, ficavam irritados com a conduta dos pais em relação a eles e em relação a outros autistas. Então eles acabavam achando que os pais infantilizavam eles, não entendiam muito as suas demandas e isso é muito parecido com o que a gente vive agora. Mas fora isso eu não via nenhum outro tipo de conflito mais acentuado.
Tiago: Vocês dois tem uma entrada na comunidade bem diferente e eu sou diferente de vocês. Eu já entrei na época do Facebook e entrei bem em grupos de autistas mesmo, não entrei em meios de pais. E desde 2013, 2014, que foi a época que eu comecei a entrar nesses grupos, eu já via muitas brigas homéricas. E eram coisas assim que a administração desses grupos mudava com muita frequência. Frequentemente tinha autistas expulsos desses grupos, muitos autistas reclamando uns dos outros e esse foi o cenário que eu vi repetir ao longo desses tempos.
Aliás, eu acho que é muito importante aqui salientar que o que a gente está conversando nesse episódio também não é algo novo, sabe? Tem muitos outros produtores de conteúdo autistas que já relataram por exemplo crises de ansiedade, até ideação suicida, vontade de largar totalmente as redes sociais por causa desses conflitos que se tem em comunidade e de ataques diretamente. Eu já sofri alguns na comunidade, mas eu acho que é uma coisa que dá pra gente falar um pouquinho depois. E eu queria saber da avaliação de vocês de como é a comunidade hoje. É um ambiente pacífico? É um ambiente de treta? Qual o balanço que vocês fazem?
Carol: Eu acho que a comunidade do autismo hoje é um um lugar muito complicado, poderia dizer até tóxico. Porque existem momentos em que eu realmente quero me afastar de tudo que tem a ver com autismo porque eu simplesmente não consigo mais encontrar paz nesse meio. Antigamente, logo que eu recebi o meu diagnóstico, eu lia sobre autismo. Eu acompanhava principalmente os canais no YouTube – pra ressaltar mais assim, o Mundo Autista com a Sophia e a mãe dela – e eu me sentia muito muito bem nesse meio. E eu comecei a olhar outros ambientes assim como no Instagram e a partir daí eu acho que as coisas começaram a desandar.
Então eu não consigo mais ver a comunidade do autismo como um lugar acolhedor, um lugar que eu me sinto parte de uma comunidade, porque eu sinto que eu estou sempre numa corda bamba. E eu não sei se isso coincide com o fato de agora participar do Introvertendo. Por mais que eu não esteja tão ativa, mas falar sobre autismo é se colocar à prova em muitas coisas. Então o que a gente fala aqui pode muito bem “cair” na rede e as pessoas distorcerem o que a gente fala ou dizerem que isso deveria ser dito de outra forma, só que elas falam de um jeito muito agressivo. E isso me assusta muito porque consegui meu diagnóstico a partir de um histórico de depressão e ansiedade. Isso é uma coisa que a gente nunca pode desconsiderar no meio do autismo, que é a prevalência desses transtornos associados.
Então eu não vejo que existe essa consideração na comunidade do autismo. Parece que a gente se esquece que a gente está lidando com autistas e que todo mundo tem dificuldades e que por mais que a gente precisa questionar certas posturas, certas falas que são erradas, que enfim deveriam ser ditas de outra forma, eu acho que a gente não pode desumanizar as pessoas quando a gente faz isso.
Willian: Eu concordo totalmente sobre o que você falou sobre a comunidade ser um lugar de muita toxicidade. E é realmente. Eu definiria como uma comunidade bem hostil, em geral, e desunida principalmente. Antes eu entendia ou pensava que o objetivo principal seria conseguir união. Mas eu começo a pensar que existe talvez diferenças mais fundamentais, vamos dizer assim em cada parte dessa comunidade que talvez eu vejo que seria inevitável uma divisão mesmo entre correntes. É claro que acho que nesse ponto está muito cedo pois o ativismo do autismo é muito recente ainda, principalmente protagonizado pelos autistas. Então eu acho que tem ainda muitos desdobramentos aí pela frente mas vamos ver como vai ser.
Tiago: Eu me identifico muito com vocês principalmente pelo fato dessa coisa de estar pisando em ovos, eu acho que muitas vezes eu gasto mais tempo preocupado de como as pessoas vão receber certos argumentos, certas visões de mundo, certos conteúdos do que realmente tendo a satisfação de compartilhar isso com as pessoas e eu acho que isso é algo muito perigoso. Muito doloroso até, sabe? Produzir coisas na comunidade do autismo é algo que me garante ansiedade, já me garantiu crise, já me garantiu coisas bem bem difíceis e eu acho que não era pra ser assim, sabe?
E eu acho que o mais bizarro e eu não vejo só isso em mim, mas também em outros produtores de conteúdo, é que gente que sequer nos conhecem, que não sabem as nossas intenções, tem leitura nenhuma de contexto das coisas, simplesmente veem alguma coisa ou outra que está sendo posta e interpretam as vezes da forma mais distorcida possível e usam aquilo pra atacar, pra ofender, pra fazer ameaça. Conheço autista que foi ameaçado, sabe? É uma coisa assim extremamente séria, casos de polícia. A gente já teve na comunidade do autismo, por exemplo, no ano passado, em 2021, no caso, conflito entre autistas que terminou com hospitalização e tentativa de suicídio.
Um exemplo ocorreu comigo ano passado. É um sentimento que me deu que eu nem sei descrever, sabe? Mas alguém tava falando de mim porque não gostou de alguma coisa e a pessoa me associou a grupos de ódio, sabe? Faltou falar que eu era neonazista. E eu fico te perguntando, você que ouve o Introvertendo, você que acompanha. Isso tem alguma lógica, algum nexo? De onde que uma pessoa precisa usar esse tipo de argumento de raciocínio e onde isso tem base, sabe? Então assim, é disso pra pior. Eu conheço autista que já recebeu ameaça por telefone. E a gente que produz conteúdo, eu tenho a impressão, que a gente fica de mãos atadas, porque se a gente reage acaba sendo uma ação desproporcional. Então, a gente acaba mantendo uma postura que eu acho que é certa, que é muitas vezes ficar na nossa, mas a gente sofre com isso. E muitas vezes não tem como desabafar sobre isso.
Willian: Pois é, Tiago, é extremamente complicado isso que você está falando. Eu não sei se você está pensando em mim porque eu realmente passei por isso por mais vezes do que eu gostaria, do que eu esperava, com certeza. Alguns ataques que eu recebi, ataques pesados mesmo, que caberia processo, que caberia no mínimo uma denúncia para delegacia de crimes cibernéticos, enfim. Não tem como atribuir todos esses ataques a pessoas da comunidade autista e da comunidade do autismo também. Pode ser que tenha partido de outros grupos extremistas, de ideias extremistas, enfim.
Mas certamente já recebi sim vários ataques. Muitos deles anônimos e eu acho importante aqui a gente dar um pouco mais de exemplo concreto do que a gente tem falado de ameaças. Porque algumas das pessoas que estão ouvindo aqui no Introvertendo, principalmente autistas que estão nessas discussões, grupos de Facebook, grupos de WhatsApp, com certeza já devem ter presenciado algo nesse sentido. Mas muitos dos ouvintes aqui, imagino que não, talvez seja uma novidade, esse é o momento pra gente colocar aí o dedo na ferida, vamos dizer assim, e ilustrar um pouco melhor do que que a gente tá falando.
Há alguns anos atrás eu participei de um grupo no WhatsApp. Ele era um grupo privado, na verdade, só que o link ali para participação era público e enfim, não tinha um grande processo seletivo também para as pessoas estarem lá. Porém privado no sentido de que carregava toda uma imagem de uma associação e tinha moderadores. No caso se trata da associação Abraça. É claro que nem todos ali naquele grupo são associados a Abraça, mas de fato existiam várias pessoas aí que eram formalmente associadas com essa associação que nesse grupo certamente foi uma das minhas primeiras experiências dessa reação desproporcional principalmente por questões que alguém diria que seriam “bobas”, no sentido de ser pró ou contra ABA e tudo mais. A gente sempre teve um embate em relação a isso.
E desse grupo, eu me lembro realmente de uma enxurrada de mensagens. E eu tava numa sensação de “todo mundo contra mim”. As pessoas não mensuravam palavras para me atacar, se aquilo ia soar bem ou se ia soar mal. Pessoas me ligando e por um tempo também continuaram a ter membros do grupo me ligando pra não sei o que, iriam querer falar pra mim, né? E alguém pode pensar assim, mas eram somente mensagens em um grupo ou eram apenas ligações, mas no momento que você tem uma massa de pessoas contra você, é realmente assim, pode deixar qualquer pessoa se sentindo vulnerável, se sentindo incompreendido, injustiçado que foi justamente o meu sentimento que eu tive algumas vezes participando de grupos assim, tanto é que é por isso que eu também não não participo ativamente de grupos. Eu gosto de acompanhá-los, saber a discussão e tanto é que eu sou um ativista e tudo mais, faço parte do ativismo mas eu tenho um histórico de retaliação totalmente desproporcional.
Eu diria que já tive também um caso de uma palestra que eu iria dar ali em um evento, que os organizadores do evento pensaram que seria adequado contratarem um segurança, principalmente pensando no meu caso. Mas não somente, é claro, segurança faz a segurança geral do perímetro, mas dito a mim, que principalmente teria essa atenção especial a mim considerando que antes do evento houve uma discussão muito acalorada sobre questões de modelo biomédico, modelo social de se entender o autismo. E aí muita gente me categoriza erroneamente como se eu fosse um autista que defende o modelo médico. E aí os autistas que defendem, entre aspas, o modelo social, precisam me “combater”.
Então em debates acalorados que eu presenciei por meio de outro número do WhatsApp que eu estava acompanhando grupos, eu mesmo notei mensagens de pessoas ali sugerindo jogar ovos, arremessar ovos enquanto eu estivesse palestrando, cuspirem em mim. E eram outros autistas falando isso. Claro que aqui eu não vou revelar quem, mas é realmente esse nível de hostilidade que muitas vezes a gente vê na comunidade. Alguém pode até falar assim: “Ah, claro que eles não iam de fato jogar ovo em você e tal”. Mas apenas o fato de você receber uma mensagem, ler que esse é o nível de discussão que está se tomando se referindo diretamente a você, isso realmente te abala inevitavelmente. Claro que hoje eu já tô um pouco mais dessensibilizado, mas principalmente pensando há anos atrás, durante as minhas primeiras palestras, foi esse tipo de coisa que eu tive que lidar e ainda tenho que lidar até hoje.
Além desses pontos, também é uma questão de autistas em grupos privados, no Twitter, ativistas, enfim, tem uma forma de se referir a mim de uma forma pejorativa mesmo usando termos como “autista pet”, “pet dos médicos”, “pet de neurotípico”, enfim. Como se o meu comportamento, como se tudo que eu criasse de conteúdo, enfim, fosse buscando uma aprovação, como se eu só falasse coisas fossem agradar essas pessoas, os médicos, os psiquiatras, os terapeutas, enfim. Como se eu não tivesse as minhas próprias perspectivas, as minhas próprias conclusões. E esse trato eu interpreto inevitavelmente como um trato capacitista. Realmente ignora todo esse meu repertório. Como se eu não fosse uma pessoa que estou vinculado a um programa de mestrado em instituição federal, eu tenho uma pesquisa que sim é voltada para autismo e que foi aprovada por comitê de ética com todos os seus passos bem detalhados, bem descritos e ainda assim eu passo por coisas do tipo em um grupo de WhatsApp eu recebi mensagens agressivas de outros autistas falando que a minha pesquisa é um lixo, que é um desserviço para a comunidade e enfim, que eu não deveria pesquisar isso, que é muito preocupante pessoas como eu pesquisando dessa forma, baseado na Análise do comportamento aplicada.
E neste contexto, por exemplo, foi um contexto que senti que: “ah, o Willian está sendo hostilizado, né? Ah, mas está tudo bem, porque o Willian está ‘defendendo’ ABA, então o Willian pode ser hostilizado”, mais ou menos nessa lógica assim. Esses dias eu estava no YouTube, por exemplo, e eu vi no canal do Ricardo do Autismo Pensante um vídeo que claramente ele está me ridicularizando ali. E tem outras pessoas ali curtindo. Sim, eu me sinto mal sobre isso, eu vou dormir mal. E aí ele se sente bem porque ele está recebendo aprovação de outras pessoas, de outros autistas ali que pertencem teoricamente a mesma comunidade autista.
Existem vários casos de amigos, amigas minhas, outras autistas que estão em grupos privados que, ao compartilharem um vídeo meu, essas pessoas apenas pelo fato de compartilharem um vídeo meu são hostilizadas por outros membros desse grupo. Pois de alguma forma, para algumas pessoas, alguns ativistas, principalmente qualquer forma de contribuir para o meu trabalho, divulgar meu trabalho, é algo a ser combatido e eles atacam a pessoa. Já tive N situações, mais de 10 no mínimo, de amigas minhas chorando e saindo do grupo e aflitas por terem sido hostilizadas por outros membros do grupo por elas terem ali se revelado amigas minhas e de alguma forma defendendo o meu ponto de vista. Ou enfim, geralmente são criticadas fortemente por isso. Desculpe a sessão de desabafo aqui, mas realmente isso é algo que a gente tem lidado em silêncio, né? Na verdade há anos pelo menos no meu caso, acho que o Tiago também.
Inclusive até me lembrei de diversas situações que o meu advogado sempre me instruía que havia vários precedentes que eu poderia seguir com um processo, uma ação judicial que realmente é como deve ser, na verdade. Mas aí é como o Tiago falou, que a gente pensa duas, três vezes antes se posicionar ou de “falar mal” ou atacar alguém porque a gente sabe que nós como influenciadores podemos sem querer aí gerar uma onda de contra-ataque e não é a nossa intenção. Mas realmente já passou da hora, porque os ataques estão a um nível desproporcional faz muito tempo.
E sendo totalmente honesto, um dos motivos para eu ter parado de gravar vídeos recentemente no meu canal (que muita gente pede, inclusive), é justamente por conta desses ataques, justamente por conta desses conflitos com outros autistas. E que não há nenhum orgulho em dizer isso aqui, mas que eu posso dar a certeza de que os ataques partem justamente de outros ativistas, de outros autistas que supostamente são anti-capacitistas e que são pró-inclusão.
Tiago: O que vocês estavam falando me fez pensar também em uma uma coisa que foi escrita por um filósofo autista da França chamado Josef Schovanec. Porque ao longo desse tempo, eu vi muitos autistas dizendo assim: “ah, se o mundo tivesse só autista seria um mundo melhor”. Eu fico assim… hum, tenho um pouco de dúvida sobre isso. Eu tenho uma sensação de que isso é uma ideia bem errada. Mas o Josef argumenta isso melhor dizendo que historicamente na França teve um ativismo de pais. Era um ativismo conflituoso, tinha muita briga entre os pais. E aí quando os autistas começam no ativismo do autismo, os próprios autistas começam a pensar: “não, agora as coisas vão ser diferentes, vai dar tudo certo”. E na verdade nada mudou, os conflitos, as tretas, os desgastes, as ameaças, as pessoas falando mal uma das outras. Isso na verdade é bastante complicado porque se teve muito dessa crença de que autistas, por serem autistas, vão construir um mundo melhor. Eu acho que isso é papo furado. Autistas não são melhores que as outras pessoas, nós não temos uma moral acima das outras pessoas e é justamente por isso que existem autistas excludentes que a gente está conversando sobre.
Willian: E sim existe essa ideia, né? De que autistas vão entender melhor autistas, autistas podem se relacionar melhor com autistas. Em primeiro lugar, não temos evidências pra acreditar nisso neste momento. Não creio que isso seja uma verdade. Se relacionar com outras pessoas engloba uma série de coisas que envolvem os seus valores, a sua expectativa, a sua própria definição do que é amizade. Eu entendo que seria um mito pensar que autistas se relacionariam melhor com autistas. Mas é claro, a minha opinião é irrelevante em comparação a possíveis evidências que teremos por aí, que talvez sim vamos descobrir que sim, que autistas se relacionam melhor com outros autistas. Mas até esse momento, ao que eu estou ciente, não temos evidências para sugerir isso não.
Carol: Eu também não acho que seja uma verdade que os autistas se relacionam melhor com autistas. A gente não é só o autismo. Então se fosse só o autismo, era muito simples. E eu acho que isso está no centro dos conflitos. Se fosse simplesmente um conflito de interesses ou um conflito de afinidade, personalidade, isso seria uma coisa simples de resolver. Mas eu acho que quando a gente fala de autismo, a gente fala sobre políticas, a gente fala sobre formas de lidar com ser autista, a gente fala de diversas questões que impactam na vida de muita gente, todas as pessoas que estão dentro dessa comunidade e realmente existem muitas frentes, existem muitas visões e eu acho que a gente não está sabendo com essas diferenças.
Tiago: Sim, eu gosto bastante de bater nessa tecla, já falei várias vezes aqui, mas eu acho que é sempre bom repetir. Todos nós compartilhamos um mesmo diagnóstico que é o autismo, mas todo mundo tem um contexto de vida totalmente diferente. E aí eu não falo só questão de sexualidade, raça, gênero. Estou falando de origem mesmo. O Brasil é um país continental. Um autista de Roraima pode ter aspirações e visões de mundo e contexto de vida totalmente diferente de um autista no Piauí, de outro do Espírito Santo.
Então eu percebo, por exemplo, que muitas vezes a gente compra certas brigas dentro da comunidade do autismo porque a gente tem uma falta de respeito a opiniões divergentes. E acho que essa é uma autocrítica que todos nós autistas precisamos fazer, inclusive eu. A gente muitas vezes não respeita as opiniões das pessoas. Não no sentido de concordar com elas, mas de entender o contexto de onde elas surgem e isso está diretamente relacionado a respeitar a história de vida das pessoas.
Ninguém é obrigado a gostar da Carol, ninguém é obrigado a gostar do Willian, ninguém é obrigado a gostar de mim. Não gostou, paciência e é isso aí. Tem um botão de silenciar, tem deixado de seguir, tem de bloquear, fingir que a gente não existe. E são coisas às vezes claramente mentirosas, sabe? Se você não gosta de alguém e você discorda da ideia de alguém, pelo menos você for falar dessa pessoa, fale pelos motivos certos, não vá distorcer. Então assim, é uma coisa que me irrita, me entristece, me causa ansiedade, ferra a minha saúde mental e definitivamente eu estou já entre várias pessoas que eu já vi comentarem na comunidade do autismo que já pensaram muitas e muitas vezes de simplesmente encerrar as atividades e sumir da comunidade.
E assim, só pra completar: essa linguagem inflamatória que alguns autistas trazem, esse cenário de conflito e quase guerra constante dentro da comunidade, é algo que provoca problemas em alguns autistas. E isso vai exatamente contra a própria noção que a gente tem de acessibilidade. São autistas construindo ambientes inacessíveis para outros autistas. Isso é muito triste.
Carol: É muito comum pessoas que são violentadas reproduzirem essa violência que elas sofrem. Então existem vários tipos de atravessamentos de violência que as pessoas autistas sofrem e que nem sempre tem a ver com autismo. E essas coisas vão se somando e muitas vezes essas pessoas acabam reproduzindo esse comportamento e projetando ele sobre outras pessoas. Só que isso é uma coisa estrutural e que é muito acentuada nas redes sociais e eu acho que é muito muito relevante porque esse é o nosso maior ambiente de ativismo.
Considerando nossa deficiência que está na área da comunicação, muitas vezes a gente só sente à vontade nesse ambiente para atuar. Na internet, as coisas sempre ficam gravadas, sempre ficam acessadas mesmo que alguém apague. Sei lá, alguém vai tirar print isso, vai ficar sempre pra sempre gravado, nem que seja no arquivo pessoal de alguma pessoa que registrou aquele momento. Por mais que a pessoa se retrate, aquilo vai ficar sempre impresso na mente das pessoas. E muitas vezes isso acaba não dando oportunidade para mudanças de pensamento.
E eu acho muito importante que a gente tenha essa oportunidade dentro do ativismo e enxergar essa oportunidade. Se a pessoa não está disposta, é largar de mão e buscar outras formas e não ficar atacando a pessoa eternamente. Porque isso é até contraproducente. A gente está lutando com um dentro de um país que é tão capacitista, que a gente tem lutas reais de perda de direitos… e eu acho que ficar debatendo por uso de certas palavras na internet… não vou falar isso porque senão vou me cancelar.
Ai que medo! Não, sério. Tipo assim, a gente faz esse episódio e fica com medo de ser cancelado toda hora, sabe? É disso que eu estou falando! Eu acho até que podia deixar essa parte porque eu tenho medo de ser cancelada e isso permeia toda a nossa experiência da gravação desse episódio e isso é muito importante de falar porque é real, é sensível, isso tira o nosso sono.
Willian: Com certeza, em geral, é claro que eu consigo entender e compreender essa hostilidade, é difícil de se pensar que uma pessoa que foi hostilizada a vida toda dela, não vai ter nenhuma manifestação hostil. Seria pedir demais para essa pessoa que ela não se comporte, não se expresse de forma hostil. Porém, é claro, também vale pensar em algum ponto do processo do desenvolvimento do ativismo se essas formas são válidas, se conseguimos alcançar o melhor patamar de inclusão, o melhor patamar de empatia, de compreensão, de harmonia e enfim. Acho que esse é um questionamento pertinente para o exato momento que estamos vivenciando agora na comunidade do autismo aqui no Brasil.
Carol: E eu acho que uma coisa pra pensar também sobre como funciona o ativismo do autismo no Brasil é que muitos desses ataques não aconteceriam fora do ambiente on-line. As pessoas só têm coragem de falar sobre isso, de fazer esses ataques, porque as redes sociais são um ambiente propício para isso.
Willian: Eu concordo plenamente. Inclusive eu consigo imaginar perfeitamente que num contexto presencial nós estaríamos conversando, nós chegaríamos à conclusão de que muitos objetivos são semelhantes. É claro que haveria pontos de divergência, mas no mínimo eles seriam respeitados ou debatidos ou enfim. Eu realmente acho infeliz termos chegado nesse ponto de agressões, hostilidade e aqui estamos nós gravando esse episódio de podcast desabafando sobre esse sentimento constante que infelizmente acompanha os produtores de conteúdo, essa ansiedade de possivelmente falar alguma coisa errada, ser “cancelado”, ser hostilizado por algo que você defende ou deixou de defender. Mas realmente é uma infeliz realidade da produção de conteúdo hoje, especialmente na internet. E espero que possamos lidar com mais maturidade esses tipos de divergência ao longo do tempo.
Tiago: Então acho que no final das contas o que a gente espera é menos crises de ansiedade, menos ataques, menos perseguições que às vezes podem ocorrer na comunidade do autismo e muito provavelmente na verdade esses conflitos não vão diminuir porque a comunidade autista só tende a crescer. Mas que pelo menos nós, que estamos inseridos há mais tempo, tenhamos a sobriedade e a autocrítica, uma vigilância frequente com relação a essas questões. Então queria saber o que vocês que ouvem o Introvertendo sobre isso, porque nós queremos saber a opinião de vocês sobre isso.
Willian: Muito obrigado, pessoal. Qualquer divergência pode mandar um email, pode agregar aí na discussão. Sabemos que também ficam irritados. Ter emoções em momentos de discussões como essa são inevitáveis muitas vezes, então de nenhuma forma estamos aqui julgando isso. Mas deixando claro que estamos abertos a dialogar de uma forma saudável e que aqui não precisamos de formas mais hostis de se expressar.
Carol: É isso gente, gostei muito de gravar o episódio de hoje, apesar de ser um tema sensível. Muitas vezes eu realmente já fiquei muito abalada, apesar de nunca ter sido atacada. Mas quando pessoas que eu conheço são atacadas, eu realmente fico mal. E eu acho que esse tema é muito importante de se estender para outras esferas da comunidade do autismo, não só aqui no Introvertendo, mas é um um assunto que tem adoecido muita gente e isso acaba atrapalhando muito as nossas lutas. E eu acho eu gostaria muito que a comunidade discutisse mais sobre isso de uma forma saudável, que não fira dignidade de ninguém e é isso.
Tiago: Valeu pessoal.