Em junho de 2017, Tiago Abreu foi até a moradia de Michael Ulian para saber um pouco mais sobre sua vida pessoal. A conversa rendeu o perfil Gaivota – o pássaro que ainda não pode voar e uma experiência de diálogo que, quase um ano depois, se transformou no podcast Introvertendo. Em comemoração a 200 episódios, transformamos este texto agora em áudio, com trechos inéditos desta gravação. Arte: Vin Lima.
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Texto original que baseou o episódio
Este episódio é baseado no perfil “Gaivota – o pássaro que ainda não pode voar”, escrito em junho de 2017, e pode refletir questões e valores sobre o autismo que não necessariamente endossamos hoje em dia. Apesar disso, preservamos ao máximo o conteúdo original do texto.
Eu o conheci, em meados de 2016, nas tardes de quinta-feira, quando, numa das escadas que conduzem a Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitária (Procom) da Universidade Federal de Goiás (UFG), um sujeito com botas e de passos largos em meio aos ruídos de estudantes subia os degraus.
Gaivota é estudante de Geologia e natural de Arapongas, município situado no norte do Paraná. No início da convivência, uma confusão mental perante um novo e inesperado convívio parecia intensa em seu olhar aparentemente descompromissado. Eu também carregava uma tensão de adentrar um espaço que não conhecia. Mas, por um compromisso profissional, em junho de 2017, aceitei dirigir um carro e, ao seu lado, seguimos para sua residência, localizada na cidade de Aparecida de Goiânia.
Para quem, em grande parte do tempo, esteve tenso com as palavras, os assuntos, os sons e convivência social, Gaivota estava definitivamente tranquilo. A BR-153 fluía com toda a sua agilidade. Um pouco atrapalhado com a condução dos mapas, enquanto eu dirigia, vibrava a cada acerto que ocorria nas esquinas. No entanto, ao chegar ao destino, assim que as portas do carro se fecharam e meus pés fincaram sobre a terra, me questionou: “O que você está fazendo?”. Por um momento, a entrevista escapou de sua mente.
Naquele momento, uma corrente de ideias pairou sobre a minha mente. Ao mesmo tempo em que minha rotina era quebrada em um lugar desconhecido, estava adentrando o espaço privado de alguém que, por excelência, precisa necessariamente de restabelecer suas energias para interagir socialmente e que nunca tinha recepcionado alguém em seus aposentos. Gaivota é autista.
Nascido com a Síndrome de Asperger, enquadrada desde 2013 como uma espécie de autismo leve pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), Gaivota definitivamente não se importa com sua aparência de “cientista maluco” a qual o faz parecer dez anos mais velho. Ele só tem 19 anos. No clima aquecido do cerrado goiano, não abre mão de tecidos densos os quais compõem sua calça, camiseta e camisa, além da barba espessa e o cabelo que, por preguiça, não cortou nos últimos meses.
Ele mora em um aglomerado de pequenos apartamentos no bairro Jardim Cristalino. As ruas silenciosas, o clima interiorano e a localização próxima do campus da UFG de Aparecida definitivamente favorecem o futuro geólogo. Nós subimos as escadas, passamos ao lado de vários espaços de outros estudantes, para chegar ao seu apartamento, ao fim do corredor. A porta é destrancada. Sou o primeiro, fora daquele espaço limitado, a entrar no apartamento de Gaivota.
Imediatamente, vapor e um cheiro intenso de suor pairam sobre o ambiente. Com a porta aberta entramos, mas o cenário não era receptivo. Era um excesso de estímulos que nem mesmo Gaivota conseguia administrar. Por horas, o ambiente ficou trancado. Era o suficiente para que aquele cenário, de caos e sofrimento, transmitisse no ar a sua agonia.
Nos dois cômodos que abrangem os seus aposentos, Gaivota vive em um ambiente insalubre. Garrafas, sacolas, lixo orgânico e formigas competem o espaço com roupas, fios de cabelo, pêlos e pertences pessoais. O piso do chão, amarelado, mostra que a última limpeza profunda foi há muito tempo. Naquela casa, ficou trancado durante três meses por uma depressão severa, e está se esforçando para se reconstituir frente ao tempo perdido. Mas há muito a fazer.
Não deu para ficar lá dentro enquanto o ar não circulasse. Do lado de fora, Gaivota senta no chão e espera saber quando as perguntas se iniciarão. Eu tinha poucas metas definidas. A intenção primordial era tentar enxergar algo nele que, em certas linhas, pudesse responder, sem o uso de palavras, o que o faz ser quem é além de sua condição genética. O autismo, caracterizado principalmente pela dificuldade de interlocução, é um campo em que perguntas, muitas vezes, não possuem respostas definitivas.
A palavra “apartamento” pode remeter a solidão e ausência. No entanto, para ele, é seu porto seguro. Em seu espaço, definido como um lugar suficientemente grande para um pássaro que sempre esteve preso em sua condição, o jovem não precisa se preocupar com as conversas atravessadas e com a rigidez de pensamento. Os perigos que existem lá fora não parecem tão ameaçadores em comparação a quando se está envolto na selva de pedra. Michael Ulian, apelidado “Gaivota”, abraçou a alcunha como uma ideologia.
Depois de apresentar seu empoeirado jacaré de pelúcia, que possui desde criança, ele transforma, em palavras, o abandono que sofreu na infância. Com as possíveis falhas de aborto, acabou acolhido por uma mãe adotiva, seu avô e sua avó que, desde que se entende por ser humano, fazem parte de sua vida. O núcleo se desmoronou quando a mãe adotiva se casou e, por consequência, mudou-se de residência e gerou um novo filho. Michael ficou com os avós. Mas o distanciamento afetivo fez com que seus sentimentos se tornassem tão nebulosos quanto suas habilidades comunicativas e sociais.
Gaivota não se sente confortável ao se referir às pessoas com seus respectivos nomes. Nem suas memórias são detalhadas em relação ao que viveu até os oito anos. Mas, desde que as observações e as vozes alheias passaram a fazer parte do seu ambiente externo, foi encarado como um sujeito errático, que optava pela leitura de livros ao invés de brincar com outras crianças. Por isso, era podado por cápsulas direcionadas ao diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Mas Michael é muito mais do que um laudo médico. E, aos 12 anos, a primeira pessoa a lhe enxergar além do isolamento e das excentricidades foi uma menina que conheceu num curso de natação. Ele pergunta se precisa especificar o nome. Me lembro de que, em uma sessão a qual presenciei, afirmou que, independentemente da intimidade exercida, referir-se a alguém pelo nome era um imenso desafio.
Não queria forçar. Porém, para alguém cuja importância em sua vida é tão notável, merece, sem dúvida, a sua difícil menção. Dou-lhe a opção de citar. Ele olha para o chão, retraído, respira e afirma levemente que se chama Camila. A eficiência em romper com o seu sistema de defesa fez com que o processo desta amizade, para Ulian, tenha se estabelecido da forma mais natural possível. É a única amizade que persiste, em mais de três anos, em sua vida de ciclos interrompidos.
De Camila, as possibilidades de interação cresceram substancialmente, ao passo que a sobrecarga e as convenções sociais pareciam engolir o então adolescente, numa trajetória escolar que se intercalava com os trabalhos como ajudante na loja do avô. Ele expressa o compasso intenso que fragilizava sua qualidade de vida. Não se sentia forçado a interagir. Literalmente, era arrastado para os grupos sociais formados por pessoas que, como tantas outras em sua vida, o enxergavam como um estrangeiro, um necessitado, sem independência suficiente para ser s. Do seu lado, só queria um espaço para cochilar.
Foi, entre os 14 e os 15 anos, que Michael vivenciou uma das maiores enchentes pessoais. Novos ciclos de amizade, o trabalho na loja de seu avô, o definitivo diagnóstico de Síndrome de Asperger e até um namoro resultaram em uma série de situações novas para administrar. Como um comum aspie, encarou até onde conseguiria, mas o fim do curto relacionamento de dois meses derrubou qualquer perspectiva de avanço em sua vida pessoal.
A namorada de Michael, cujo nome não fora mencionado, era uma das amizades novas que tinham surgido em sua vida. E mais uma vez, pelas pressões externas, seus cursos e caminhos eram modificados com as convenções sociais. Ele aproveitou um pedido de namoro e, a partir dali, evitava cobranças de relacionamentos. Mesmo não tendo interesse romântico, o relacionamento foi encarado de forma séria por Ulian. Mas depois de fugir de todas as investidas para uma relação sexual, a adolescente acabou por se cansar. Ela o traiu e, em seguida, encerrou o relacionamento. A amizade ganhou fim em seguida, com uma pequena e extremamente violenta briga verbal.
A soma de todos os elementos que o afligiam deram resultado ao primeiro estado de caos mental generalizado que sofreu. Aos 15 anos, Ulian literalmente surtou. E quase a escapar da existência, lhe sobreveio a primeira tentativa de suicídio. Para quem não enxergava as próprias lágrimas em anos, o adolescente chorava, encolhido em um canto, durante dias. Ele enfatizou que a angústia ocorria a todo o momento, sem qualquer cerimônia. Até que seu avô o advertiu. Afinal, Michael estava atrapalhando o trabalho e precisava largar de frescura. E foi isso o que ele fez.
Sugeri, intrometidamente, que não haveria outra opção. Em seguida, concordou. Reagir era mesmo a melhor opção.
Foi o momento em que seu corpo conseguiu restabelecer parte das sensações lógicas. No entanto, sua mente não se recuperou imediatamente de todos os traumas e, quem segurou toda a sobrecarga emocional de Ulian era sua melhor amiga, Camila, a quem mais uma vez chama pelo nome. Se, por um lado, ela o enxergava além da visão impessoal dos outros, Michael se tornou “cobaia” dos remédios que seu neurologista, o qual o diagnosticou com Síndrome de Asperger, medicou. A Ritalina, que prometia promover uma maior atenção, já tornara Ulian extremamente paranoico e preocupado no passado.
Entre trancos e barrancos, Michael recuperou, com serenidade, o que lhe trouxe até o final da adolescência. As leituras, desde criança, as quais caracterizavam sua excentricidade, foram fundamentais para conseguir sobreviver ao meio do caos. Entre elas, o seu interesse profundo por temas militares e paleontologia. É capaz de falar durante horas sobre Aves do terror, por exemplo. No entanto, queixa-se do rápido esgotamento em suas atividades. Desta forma, sem mais objetivos, fica perdido, sem saber o que fazer. Por isso, está desenvolvendo um projeto de pesquisa que lhe garantirá um foco até o doutorado, pelo menos.
Depois de contar, por quase uma hora, sua trajetória de sofrimento, legitimado, afirma que não é um graduando comum e se considera ao nível de alguns colegas doutorandos. Afinal, seu cérebro, segundo ele, é a única parte do seu corpo de que se orgulha. E escolheu estudar na UFG pelo fato do curso de Geologia da instituição conter um laboratório de paleontologia. A mudança para uma nova cidade não trouxe desconforto do ponto de vista da ansiedade. Na verdade, surgiu, em sua vida, alívio por estar sozinho em um novo lugar, mesmo sem a liberdade que tanto almeja.
No entanto, os problemas não acabaram. Em um período de seis meses, as bolsas demoraram a chegar e, por isso, Michael acabou gastando todas as suas economias, foi custeado pelos avós e, mesmo assim, não teve condições financeiras de permanecer em Goiás. Ulian conta do mal estar que sente em depender das pessoas. É por isso que sua casa está desarrumada. Já ofereceram, gratuitamente, uma limpeza, mas seu senso de responsabilidade não o permite aceitar.
Mas sua saúde mental ainda estava suficientemente boa para conseguir limpar a casa diariamente. E quando as situações começaram a desandar, procurou ajuda psicológica ao Saudavelmente, programa da UFG localizado na Procom. Afinal, sabia que tudo poderia piorar. Mesmo com o suporte institucional e o uso de medicamentos, seus temores se confirmaram. Tudo piorou. E trancar o curso para se tratar estava fora de cogitação. Sua vida era e está resumida à academia.
Não pude deixar de perceber a quantidade de garrafas de refrigerante vazias. A alimentação é, ainda, um de seus desafios, e para cumpri-la, estipula um valor o qual se adequa ao que recebe das bolsas. Quando diminui, inaugura o período de racionamento, cuja relação de consumo e valor dos alimentos depende do dia em que chega o benefício seguinte. Porém, nessa relação, a nutrição de Gaivota sempre sai em desvantagem.
A maior desordem se deu quando eu já o conhecia, no final de 2016, nos períodos de férias. Naquele período, a sua situação emocional se deteriorou. O fim do calendário acadêmico havia chegado e cada um passou suas férias em um lugar distinto. Ele foi para Arapongas. E, depois disso, o vi somente seis meses depois.
Na cidade paranaense de quase 120 mil habitantes, foi recebido no Terminal Rodoviário por uma amiga que, naquele passado recente, era a sua melhor amiga. Mas, em um período de um mês, foi uma das poucas vezes pelas quais a viu. O silêncio na relação cresceu de forma abismal.
– Não por indisponibilidade dela. Porque entre a opção dela sair comigo que, simplesmente desaprovava as atitudes dela de sair com um pessoal que comprava bebida pra ela porque eles achavam graça ver ela bebendo…
– Então ela preferiu aquelas pessoas. E isso te fez mal.
– Isso me fez incrivelmente mal.
Gaivota não consegue conter a culpa que sente pela situação. Afinal, foi ele quem a incentivou, pela primeira vez, a deixar um modo de vida mais reservado para sair. Mesmo a enxergar o abismo entre simplesmente passear e se embriagar, seu senso de responsabilidade, mais uma vez, não permite enxergar o processo com distanciamento. A única distância, de fato, estava na virtualidade: Toda a briga, que culminou em mais uma amizade desfeita, ocorreu pela internet.
Em março, quando as emoções estavam insustentáveis, Gaivota bolou um plano para sua amiga descobrir que ele estava contando para os pais dela tudo. Tudo para que ela tivesse motivos para não ser mais sua amiga e não voltasse atrás na decisão. A ideia funcionou. No entanto, a consequência foi uma crise depressiva forte.
– Fiquei triste por ter falhado pela amizade, por não ter cuidado dela, por tudo.
– Quantos anos ela tem?
– 17, agora, no máximo.
– Se você tiver alguma culpa, é mínima. O ser humano nunca atua sozinho.
Curiosamente, Gaivota me diz que Tatiana, psicóloga responsável por sua terapia, ao ouvir e discutir a situação recente, disse o mesmo.
– Não é culpa. É responsabilidade. Eu assumi a responsabilidade de cuidar dela. E eu falhei.
– Mas ela estava ciente desta responsabilidade que você exercia?
– Era óbvio e prescrito que eu estava cuidando dela. Eu assumi a responsabilidade por vontade própria. Ninguém me falou, ninguém me forçou.
– Você se colocou neste contexto. Mas quero saber se ela tinha ciência que você estava à frente da situação.
Gaivota me confirma com um sinal positivo, e afirma que sua amiga, num ato de “embirra”, se distanciou da mesma forma que decidiu desobedecer os pais. Só que, diferentemente de seus genitores, o jovem se preocupava com a adolescente e esquecia de si mesmo. Como sempre ocorre, em seus relatos. Mas, mesmo assim, o fim da amizade não esvaziou suas preocupações.
– A guria dormiu no meio da rua feito uma mendiga. Foi parar duas vezes no hospital quase em coma alcoólico – disse, em um tom de decepção.
Entre a queda da autoestima e novas tentativas de suicídio, Gaivota chegou à conclusão lógica que, para se manter vivo, precisava sair de Arapongas. Errou de propósito a senha de seu cartão de banco e usou como motivo para ir embora antes do tempo. E, para ele, foi a melhor decisão tomada. Apesar de ainda ter forças para frequentar os primeiros dias de aula e arrumar a casa ao chegar, a depressão o impediu de ir além. Ele disse que o chão estava limpo. Parou. Suspirou.
– Eu estou vendo que vou dormir hoje cedo só por lembrar disso. Mas enfim, o chão estava limpo. Eu senti muita dor física, foi um esforço monumental, já estava bem fraco fisicamente. Mas como minha situação piorou, eu nem consegui manter a limpeza que eu fiz. Antes dessa situação eu não tinha nojo dessas coisas. Eu fiquei tão mal e esqueci o arroz dentro da panela e ele ficava fora dois, três dias, e eu abria aquela merda e estava com larvas.
– Mas você ainda conseguia fazer coisas mínimas. Era sua fuga?
– Eu ia para o computador porque eu tinha que ficar algumas horas fora da cama por dia para conseguir comer. As poucas horas que eu ficava acordado eu ficava no computador. É o único canto que eu tenho para ir.
– Realmente você não tem muito espaço.
– Mas é o suficiente. É uma gaiola suficientemente grande para um pássaro que viveu preso sempre. Eu não sou definitivamente um ser urbano. Meu lugar é no mato. Longe dessa cidade, longe desta estrutura humana tradicional. Meu lugar definitivamente não é aqui. Ou seja… Eu vivo dentro desta sociedade porque, atualmente, eu não tenho uma opção. Até para conseguir os mínimos recursos para sair eu preciso viver nela – afirma, ansiando ter a liberdade, futuramente, em algum lugar isolado.
O sentimento de diferença extrapola a sua condição de autista? Eu definitivamente não sabia. Mas conhecia de perto a trajetória de outros sujeitos que, diante da convivência com a Síndrome de Asperger, se sentiam distantes frente aos gostos e visões de mundo dos outros. Em seguida, lanço uma pergunta desafiadora a qual nem eu saberia responder em sua totalidade. O que é ser asperger?
– Estamos fora um pouco daquilo que constitui o ser humano. A única coisa que podemos comprovar diretamente que diferencia o ser humano das demais criaturas, principalmente os mais inteligentes (e vou falar isso como cientista), é a linguagem. E a linguagem é exatamente onde o asperger possui mais dificuldades na forma de comunicar com o outro. É o que o torna diferente dos outros humanos. Talvez não seja uma menor comunicação, e sim uma forma diferente de comunicação. Falo obviamente em termos literais, mas as coisas são menos inflexíveis na prática. Tanto é que estamos tendo uma conversa agora. Mas a sua forma de pensar, agir, é diferente da forma do ser humano comum.
– Você acha que isso garante algum grau de superioridade ou inferioridade em relação às demais pessoas?
– Ferramentas são potencial. As ferramentas que o asperger possui tendem sim a serem maiores, melhores. Porém, como vai usar essa ferramenta e como essa ferramenta vai conseguir interagir na sociedade para uma engrenagem com dentes de outra forma, isso vai definir muito se é superior ou inferior. E muda drasticamente. No meu caso, como cientista, isso me dá uma vantagem que, às vezes, é até desonesta em relação aos demais alunos. Porém, isso me coloca em desvantagem em relação aos alunos comuns dentro da sala de aula.
– É um paradoxo.
– Dentro da sala de aula, temos certas regras mecânicas das quais a engrenagem do asperger não se encaixa. Elas são feitas para outro tipo de engrenagem. Porém, se ele se esforçar, se enfiar e limar um pouco seus dentes, ele consegue ao menos girar dentro daquele mecanismo para dar, pelo menos, prosseguimento aos seus objetivos. Num ambiente em que ele tem a liberdade de dar o seu melhor que, para a minha sorte, é justamente o ambiente acadêmico de pesquisa, já é o contrário. São as outras pessoas que não estão adaptadas. Às vezes ele consegue ser a chave-mestra do mecanismo. É só considerar, entre as pessoas consideradas gênios da ciência que provavelmente eram asperger ou eram autistas.
Não sei se eu, dentro da mesma engrenagem social que ele, me encaixo. Afinal, nos conhecemos em um grupo terapêutico no “Saudavelmente” exclusivo de pessoas com Síndrome de Asperger. E, durante as últimas três horas, ao lado de um gravador digital de áudio, estávamos fazendo o que teoricamente autistas menos gostam: Comunicar.
Por fim, Gaivota ri, afirmando que os colegas zombariam do fato de, pela primeira vez, receber alguém em seu quarto e, ainda por cima, do gênero masculino. Perguntei se ele se importa com isso. E, ainda a sorrir, disse que não. Depois de descer as escadas, entrar no carro e colocar o cinto de segurança, eu estava quase anestesiado depois do turbilhão de relatos. Desculpe Gaivota. Se enxergar na dor do outro é um desafio complexo de processar. Fiz o que me era exigido naquele momento: Só dirigi.