Introvertendo 198 – O Fim da Síndrome de Asperger e a Supremacia Aspie

Desde que o DSM-V adotou a noção de Transtorno do Espectro do Autismo, o termo Síndrome de Asperger foi caindo em popularidade na comunidade do autismo, sob muitos conflitos e desentendimentos. Neste episódio, exploramos a ascensão e queda do Asperger como diagnóstico, as identidades em torno disso e a tal da supremacia aspie, um desses maiores conflitos. Participam: Carol Cardoso e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Luiz Anisio Vieira Batitucci, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel, Tito Aureliano, Vanessa Maciel Zeitouni e outras pessoas que optam por manter seus nomes privados.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts | Amazon Music | Podcast Addict e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados ou relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e certamente uma das poucas produções aqui na nossa comunidade que faz contexto histórico. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo, fui diagnosticado com autismo em 2015 e eu vivi a época em que falar que era Asperger não era ruim.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho 24 anos, quando fui diagnosticada já era o Transtorno do Espectro do Autismo, mas a minha psicóloga quando foi me dar a notícia disse que eu seria o que se chamava antigamente de Asperger.

Tiago: Hoje nós vamos falar sobre um tema bastante complexo que envolve, primeiro, o fim da Síndrome de Asperger e a gente vai contextualizar um pouco disso. E também a gente vai falar sobre uma coisa bem específica que as pessoas ainda não entendem muito bem que é a chamada supremacia aspie. Se você quiser entender então, fica aqui que a gente vai explicar direitinho pra você. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Na comunidade do autismo, muitas vezes as pessoas falam sobre a chamada Síndrome de Asperger e eu imagino que na altura do campeonato talvez muitas pessoas não entendam muito bem o que é isso. A Síndrome de Asperger na verdade tem um contexto histórico bastante complexo que remonta até ao próprio surgimento do autismo enquanto padrão diagnóstico. A gente sabe que Leo Kanner lá na década de 1940 acabou se tornando o pai do autismo graças aos seus escritos. Mas lá na Europa também tinha um outro pesquisador que estava estudando algumas crianças que se chamava Hans Asperger, um pediatra. E aí ele escreveu um artigo falando sobre as mais de quatrocentas crianças que ele tinha estudado. Na verdade, focando em alguns poucos casos. E nesse artigo ele cunhou a chamada “psicopatia autista”. Esse artigo não chamou muita atenção. Alguns poucos pesquisadores acabaram mencionando, mas ele chegou ao mundo anglófono (e é claro, se você chega ao Reino Unido ou nos Estados Unidos, o mundo inteiro acaba conhecendo) a partir do trabalho de uma psiquiatra chamada Lorna Wing.

A Lorna Wing particularmente ficou bastante interessada nesse trabalho do Hans Asperger, viu algumas semelhanças entre as descrições dele com as do Leo Kanner e ela escreveu um artigo em 1981 falando da Síndrome de Asperger. Ou seja, foi ela que cunhou o termo Síndrome de Asperger a partir de uma perspectiva clínica. E daí o resto foi história. A Síndrome de Asperger acabou se tornando um padrão diagnóstico no CID-10 em 1992 e no DSM-IV em 1994. E por que você precisa saber disso? Primeiro ponto, pra gente esclarecer que a Síndrome de Asperger não é uma síndrome criada pelo Hans Asperger. A Síndrome de Asperger é uma homenagem ao Hans Asperger. É claro que a Lorna utilizou-se do trabalho original desse pesquisador, mas também fazendo algumas relações para que mais tarde a gente chegasse no que a gente chama hoje de Transtorno do Espectro do Autismo.

E se você quiser entender um pouco mais a fundo dessa história, tem dois artigos da própria Lorna Wing explicando um pouco sobre a história da Síndrome de Asperger e esse artigo original de 1981 que você pode consultar no nosso site e saber um pouco mais sobre como que surgiu a chamada Síndrome de Asperger.

Carol: É, eu acho que a gente aprender mais sobre a história do autismo é muito importante para ter mais clareza sobre esse diagnóstico. E inegavelmente a Síndrome de Asperger é um aspecto muito importante da nossa história. Principalmente porque muitos de nós receberam o diagnóstico de Síndrome de Asperger antes de existir o entendimento do Transtorno do Espectro Autista. E de alguma forma isso acabou tendo um peso nos indivíduos que receberam esse diagnóstico a ponto disso ser considerado até como uma identidade cultural.

Eu lembro que mesmo antes de eu ter recebido o meu diagnóstico já tinha ouvido falar sobre essa síndrome. E eu me identifiquei bastante, inclusive. Eu participei de uma comunidade no Orkut chamada “Eu tenho Síndrome de Asperger”, era alguma coisa assim. E foi uma comunidade em que pessoas com esse diagnóstico interagiam. Algumas pessoas também como eu não tinham diagnóstico formal, mas eu gostava muito porque eu sabia que eu me sentia muito acolhida, embora não tivesse. Eu só viesse a ter o meu diagnóstico muitos anos mais tarde, em um momento em que não existia mais esse termo. Pelo menos na verdade considerando que meu laudo está enquadrado no CID-10 ainda existe esse diagnóstico, mas os critérios utilizados já tendiam a ao abandono desse termo.

E quanto a isso eu acho que as representações do autismo em comparação com as representações da Síndrome de Asperger na mídia e pela própria comunidade e pelos autistas tendem a ser um pouco diferentes. Geralmente as pessoas com Síndrome de Asperger são descritas e representadas como alguém com inteligência preservada ou pessoas que são muito inteligentes, mas que tem poucas habilidades sociais e acabam se envolvendo em situações muito constrangedoras, né Tiago?

Tiago: Exatamente, Carol. E fazendo um contexto desse período principalmente aí final dos anos 1990 e início dos anos 2000, essa identidade social e cultural da Síndrome de Asperger ganha muita força. E se a gente for parar pra pensar, a própria ideia de neurodiversidade quando a Judy Singer, a socióloga australiana, cunha, ela fala bastante de Síndrome de Asperger apesar de já pensar na questão do autismo. E na cultura popular ele se tornou cada vez mais forte.

Então, por exemplo, em 2001 o jornalista Steve Silberman vai publicar uma reportagem na revista Wired dizendo que a Síndrome de Asperger é uma síndrome geek bem representada pelo Vale do Silício. E aí a gente tem também vários indivíduos que se identificam com a Síndrome de Asperger publicando livros de memórias. Então a gente pode citar, por exemplo, o John Elder Robison com Olhe nos Meus Olhos, que hoje é um um dos melhores livros de autobiografia de autistas.

Então a Síndrome de Asperger ganha esse espaço cultural popular e ela vai acabar também de certa forma gerando uma discussão dentro da comunidade do autismo e na comunidade científica. Então já começa a ter uma discussão de por exemplo considerar a Síndrome de Asperger e o chamado autismo de alto funcionamento, que era um termo também antigamente usado, como a mesma coisa. E aí tem até um um artigo muito bom do Ami Klin, que é um pesquisador. Ele publicou se não me engano em 2000 e também está na nossa lista de sugestões, um artigo que ele vai discutir um pouco disso se é a mesma coisa ou se é diferente e tudo mais. E essa discussão da relação da Síndrome de Asperger como um diagnóstico diferente vai ganhando mais força até que na década de 2010 a gente tem então o abandono dessa categoria diagnóstica dentro do que a gente vai chamar de Transtorno do Espectro do Autismo.

E só pra explicar um pouco isso pras pessoas, esse é um debate que se estende há muito tempo e continua até hoje na verdade. Vão ter algumas pessoas que vão dizer que por exemplo existem diferenças significativas entre o autismo propriamente dito e a Síndrome de Asperger, enquanto outros pesquisadores vão dizer que não. Também vai ter uma discussão que a Síndrome de Asperger integrada ao espectro do autismo de uma forma geral também é uma forma mais acessível das pessoas com o antigo diagnóstico de Síndrome de Asperger serem reconhecidas como pessoas com deficiência e ter acesso a que muitas das vezes eram muito mais difíceis de ser alcançados.

Carol: Acho que é importante ressaltar também que o fim da Síndrome de Asperger não significa nivelar todos os autistas e considerar que todos são iguais e exibem exatamente as mesmas características. Mas sim que foi possível observar semelhanças expressivas o suficiente para que de uma forma prática fosse mais fácil identificar as características do transtorno. Ou seja, considerar também a Síndrome de Asperger como dentro do Transtorno do Espectro do Autismo significava também entender um pouco mais sobre esse transtorno do espectro do autismo.

Então não significa que são coisas totalmente diferentes que foram meio que forçar uma barra pra tentar encontrar. As semelhanças são muito expressivas que levaram a essa resolução de tentar enquadrar tudo no mesmo transtorno e a forma como elas se manifestam nos indivíduos e quais medidas necessárias para promover o bem-estar e a qualidade de vida dos indivíduos pode ser diferente. E essa discussão permanece. A gente está aqui justamente pra isso

Tiago: E só pras pessoas entenderem o tanto que essa questão da Síndrome de Asperger como identidade cultural era algo tão forte principalmente nos países anglófonos, quando o DSM instituiu o grupo de trabalho para poder propor o DSM-V, inicia-se um debate de abolição da Síndrome de Asperger. E os autistas que foram diagnosticados com Síndrome de Asperger tinham muito, muito receio nesse sentido. A grande maioria dos relatos que eu já li no exterior eram contra, de que Asperger deveria continuar a existir.

E aí o DSM contou com dois autistas. Dois autistas foram consultados nesse processo, que são o Steven Kapp, que é um pesquisador e se não me engano também é doutor em psicologia e ele escreve bastante sobre autismo. E o Ari Ne’eman, que na época era presidente da ASAN, que é a principal associação de autistas dos Estados Unidos. E aí nessa época o próprio Ari Ne’eman se manifestou entre algumas pessoas alguns ativistas dizendo que considerar tudo como autismo seria bom a longo prazo, que as pessoas iriam entender isso ao longo do tempo em termos de direitos, em termos de reconhecimento e que seria bom reconhecerem as pessoas com Síndrome de Asperger como parte do espectro do autismo. E aí foi o que finalmente foi anunciado.

E em 2016, se iniciou a discussão para geração do CID-11 a partir de uma conferência. E o CID-11 foi anunciado em 2018 e definitivamente a gente teve aí a abolição também da categoria que se chamava Transtornos Globais do Desenvolvimento que era do CID-10 com a adoção do Transtorno do Espectro do Autismo. Só que a forma como o CID-11 classifica o Transtorno do Espectro do Autismo é um pouco diferente do DSM. Mas nós não vamos nos aprofundar tanto nisso. Quem quiser saber um pouco mais ouve lá o nosso episódio 86 – O que é o autismo.

E em 2018 teve um artigo muito impactante que nós falamos lá no episódio 13 – Hans Asperger e o Nazismo, que vai indicar ali que o Hans Asperger participou ativamente do programa de eutanásia de pessoas com deficiência no período do nazismo. Essa discussão sobre Hans Asperger com Nazismo é uma discussão muito grande porque já se tinha uma suspeita, mas não tinha nenhum documento que indicasse isso de forma mais contundente. A história oficial que algumas pessoas adotavam era que o Hans Asperger teria se oposto claramente ao nazismo porque ele não se filiou direto ao Partido Nazista. Mas enfim, era uma discussão meio nebulosa e a gente já falou sobre esse artigo. Esse artigo teve um efeito muito forte na comunidade do autismo e quem quiser saber mais ouve lá o nosso episódio de número treze.

Então estamos falando sobre um diagnóstico que teve um processo de desconstrução e esse processo envolveu múltiplos fatores, envolveu toda uma discussão científica, envolveu também uma discussão social da própria comunidade e a grande pá de cal depois que na verdade não teve tanta influência inicial, mas eu acho que acabou dando rumos definitivos, que foi essa questão do Asperger com o programa de eutanásia. Só que paralelamente a isso e não diretamente relacionado, a gente tem o início de um fenômeno que foi cunhado de supremacia aspie. E o que é isso?

A primeira vez que esse termo é cunhado de forma mais conhecida foi no ano de 2010. A supremacia aspie seria um termo direcionado a pessoas que foram diagnosticadas com Síndrome de Asperger e que se achavam superiores aos demais autistas e as pessoas na sociedade em geral. Então a Síndrome de Asperger seria vista como o próximo passo na evolução humana, sabe? Alguma coisa assim nesse sentido. E a ideia de supremacia aspie na verdade acabou se dissolvendo tão grande nesses espaços de discussão do autismo entre autistas que ela acabou sendo usada em múltiplos contextos, mas esse é o significado mais comum.

A supremacia aspie também tem sido relacionada a própria forma como a comunidade científica e a mídia popular se referiam a Síndrome de Asperger. Então a própria Carol falou por exemplo dessa ideia da Síndrome de Asperger representar uma pessoa inteligente mas que se envolve em gafes sociais, esse esse sujeito desajeitado. E alguns autores vão falar que a Síndrome de Asperger também tem sido representada como o bom autismo. É se o autismo dito severo por exemplo fosse o mau autismo e a Síndrome de Asperger seria o bom autismo. E esse autista diagnosticado com a Síndrome de Asperger é sobre-humano, ele é um robô, sabe? Então tem muito dessa leitura, que é uma leitura também pejorativa e também tem um pouco de capacitismo, de você não ver a pessoa como um ser humano.

Carol: Quanto a isso do da Síndrome de Asperger ser entendida como o bom autismo, eu acho que isso também dá muito gás pra esse tipo de entendimento que tu falou mais cedo sobre a Síndrome de Asperger ser a “síndrome do Vale do Silício”. Então tipo assim, “as pessoas com Síndrome de Asperger são geniais, elas são desajeitadas socialmente mas isso nem importa porque elas estão comandando o mundo de hoje”. Então é como se fosse realmente entendido como um novo estágio evolutivo. E eu acho que uma das coisas que talvez dêem suporte a isso entre muitas aspas, porque isso não tem muita lógica, mas é que existe um entendimento do aumento da prevalência do autismo em relação a população típica. E existem várias razões para isso. Inclusive no livro O Cérebro Autista, a Temple Grandin fala de inúmeras razões para que se aumentem o número de diagnósticos de autismo. E muitas pessoas usam esses dados numéricos que podem muito bem ser revestidos em: “nossa, olha só como nós estamos nos difundindo, então a Síndrome de Asperger seria um outro passo da evolução humana”. Isso revela uma completa incompreensão de como que funciona a evolução porque evolução não é grau, é processo. Então não significa que um estágio é mais evoluído do que o outro, mas que se encaminhou num processo pra isso.

Tiago: E essa coisa sobre o bom autismo sabe o que me faz lembrar também? De que a Síndrome de Asperger na década de 2000 foi muito relacionada à figura do nerd. Pra mim e Carol que somos do final dos anos 1990, no início dos anos 2000 ser nerd era uma coisa horrível. E a ideia de nerd foi ressignificada no final da década de 2000 e início da década de 2010. Eu lembro que teve até aquela música humorística que tinha “Garotas Escolham já seu Nerd”. Eu não sei se você lembra, mas era algo “o nerd de ontem é o cara rico de amanhã”, foi uma coisa muito disseminada. Então eu penso bastante que a Síndrome de Asperger esteve muito relacionada também a esse ideal até nesse certo período.

E uma coisa também que a gente pode inferir que têm uma discussão principalmente na literatura crítica do autismo é que essa ideia do nerd e a ideia do Asperger também é muito relacionada a uma ideia de um sujeito homem branco, embora na literatura crítica do autismo eles vão falar muito mais sobre a questão de gênero do que a questão de raça. Mas de que essa ideia do Asperger como nova evolução também estaria relacionado a muito o ideal de um homem branco. E aí é uma coisa muito curiosa, porque tem uma discussão também sobre supremacia aspie ligada a circuitos neonazistas na internet. Isso dá um pano pra manga, isso dá uma outra discussão talvez um outro episódio, mas de que também tem um artigo na nossa lista que vai discutir isso. A autora vai falar que em alguns circuitos neonazistas tem vários autistas e tem muito dessa ideia de que o Asperger estaria num ponto aceitável, porque enfim ele é o próximo ponto da evolução, ele é homem, ele é branco e tudo mais.

A gente não está tão distante disso. Porque a gente sabe que quando a gente pensa por exemplo no autismo de uma forma geral, apesar de a gente pensar em uma criança, geralmente as imagens que a gente encontra no Google são crianças brancas homens. Então é essa ideia do autismo como algo masculino está bem está bem disseminada e também com o branco.

Carol: Eu acho que uma das coisas que a gente pode entender sobre isso é que esse grupo de meninos brancos de classe média alta são um grupo de maior acesso ao diagnóstico. Então não coincidentemente são os grupos de maior acesso aos serviços. E se eles têm acesso aos outros serviços, é muito mais fácil que eles consigam o diagnóstico. Isso leva ao entendimento de que a formação do conhecimento sobre o autismo está de acordo com esse grupo. Então o que a gente tem de entendimento sobre autismo até certo ponto está muito ligado a identidade cultural relacionada a esse grupo específico. E a gente relaciona também ao fato de que esse grupo é formador da sociedade como a gente entende. Ou seja, são as pessoas que tem maior poder dentro da nossa sociedade, são as pessoas que meio que dizem como as coisas devem ser e que tudo em volta está dentro das aspirações desse grupo. Então eu acho que é um trajeto “natural” que se cria o entendimento de uma supremacia desse grupo em relação aos outros. Então eu acho que supremacia aspie, racismo e misoginia andam muito juntos. E eu acho que é essa a razão da gente ter escolhido falar no mesmo episódio de supremacia aspie e o fim da Síndrome de Asperger.

Ainda que o fim do diagnóstico não tenha relação direta com a descoberta do passado do Hans Asperger, a motivação que o levou fazer a pesquisa que ele fez pode muito bem ter sido o que legitimou a eutanásia infantil de crianças consideradas ineducáveis. Ou seja, embora ele não tenha sido o criador do termo Síndrome de Asperger, a pesquisa que ele fez utilizada posteriormente para esse diagnóstico foi uma coisa que foi criada para separar as crianças umas das outras. As pessoas com as características observadas por ele eram aquelas pessoas que tinham uma inteligência preservada, então talvez elas pudessem superar essas dificuldades que elas tinham. Mas as outras não, as outras não tinha jeito e elas poderiam muito bem ser sacrificadas.

Tiago: Exatamente. E aí, voltando de novo sobre a questão do fim da Síndrome de Asperger, é muito importante observar aqui que o DSM-V propôs o Transtorno do Espectro do autismo e isso não foi bem aceito de princípio. Eu entrei na comunidade do autismo em 2013 aqui no Brasil e eu lembro que até 2018 era normal falar em Síndrome de Asperger  e pras pessoas ainda era normal, ainda estava num processo de assimilação ainda. Então eu lembro que eu particularmente usava “eu tenho Síndrome de Asperger, que é uma forma de autismo”. Era uma coisa bem normal de se falar. E particularmente ainda tinha aquela dúvida: “ah, será que isso vai ser mantido mesmo? Será que isso é só uma coisa de momento, né? Que algum momento vão separar de novo Asperger do autismo?”.

E aí quando esse estudo foi publicado em 2018, isso trouxe assim uma pá de cal pra questão, porque a resistência ao autismo foi diminuindo à medida que as pessoas não queriam necessariamente se associar ao diagnóstico de Síndrome de Asperger. E aí a gente tem uma questão muito importante a ser pensada que é tão recente quanto essas coisas que ocorreram. Então a gente vai levar um tempo ainda na comunidade do autismo pra terminar de assimilar essas questões. E aí pensando em todas essas questões, pensando na representação do autismo, na importância e no peso que a Síndrome de Asperger teve na nossa comunidade e uma contribuição que querendo ou não esse diagnóstico deixou… Porque se não fosse a existência da Síndrome de Asperger talvez nem você Carol e nem eu teríamos conhecido o autismo. Porque saber sobre o autismo da forma como o autismo em si era divulgado até uns tempos atrás era uma coisa muito restrita. Eu fico me perguntando seriamente, de forma honesta: é certo “condenar” quem usa Asperger em 2021? Queria saber primeiro a sua opinião.

Carol: Olha, pra ser sincera eu mesma não aboli esse termo na minha vida. Eu não acho que a gente deva assim de uma hora pra outra condenar e dizer que ninguém deve falar o termo. Porque eu acho que pra mim serve como um propósito até pedagógico, sabe? Porque às vezes eu eu explico pras pessoas assim que eu sou autista. Às vezes as pessoas duvidam até porque elas não entendem o que significa ser autista, mas se a gente fala de Síndrome de Asperger pode ser que a pessoa tenha ouvido falar disso em algum momento. E aí eu posso explicar que agora as pessoas que tem a Síndrome de Asperger são entendidas dentro do Transtorno do Espectro Autista.

Eu acho que é muito mais simples a gente explicar dessa forma do que a gente dizer: “olha, não usem mais esse termo”. Porque às vezes a pessoa não sabe nem sobre autismo nem sobre a Síndrome de Asperger ou da comunidade do autismo que a gente está muito imerso em tudo que tem a ver com isso. Eu acho que é muito pertinente a gente discutir o abandono de certos termos que são pejorativos e que evocam ideias que a gente quer superar, mas que eu acho que a gente não não pode ter uma postura punitiva justamente porque tem pessoas que não conhecem sobre nada disso.

Então se o primeiro contato que a pessoa tem com o autismo é através do termo Síndrome de Asperger, eu não acho que a gente tem aqui que condenar a pessoa por isso. Porque querendo ou não, uma forma de conhecer mais sobre o transtorno promove mais conscientização sobre a nossa condição e acaba gerando um maior engajamento da população em geral pras nossas políticas de inclusão e pra nossa luta por direitos.

Tiago: Eu concordo em absoluto, Carol, eu vejo exatamente dessa mesma forma. Eu acho que tem dois grupos de pessoas que vão usar Asperger em 2021. Um público em geral que muitas vezes não sabe nem que Asperger está dentro do espectro do autismo ou que pensa que Asperger é uma forma de autismo. E aí nesse grupo a gente tem que entender o seguinte: a comunidade do autismo é numerosa hoje em dia, mas tem um monte de gente com diagnóstico de autismo, de Asperger, ou seja lá o que for que não participa da comunidade do autismo. Eu conheço várias pessoas que não fazem parte da comunidade do autismo ativamente, de discutir sobre autismo, que tem interesse em autismo. A própria equipe aqui do Introvertendo! Nós nos conhecemos na universidade e a única pessoa que era um pouco mais engajada era eu. Os outros 10 autistas que faziam parte não sabiam de nada, interesse nenhum.

Então assim, a gente tem que entender muito bem que muitas vezes quando alguém vai falar sobre Asperger por aí, às vezes não tem nem participação dentro da comunidade do autismo. E uma outra questão dentro desse primeiro grupo que eu tô falando, é que a comunidade médica, os profissionais, muitas vezes estão aprendendo o que é a Síndrome de Asperger agora que o diagnóstico está entrando em desuso. O negócio entrou no CID-10 na década de 1990 e agora algumas pessoas estão ouvindo falar pela primeira vez em Síndrome de Asperger. Não é porque um manual de diagnóstico definiu que a partir de amanhã vamos usar o Transtorno do Espectro do Autismo que todo mundo vai usar de um dia pra outro. Isso não existe. Então a gente tem que definitivamente entender que tudo é uma questão de processo.

Mas tem um segundo grupo e aí eu acho que talvez a gente pode pensar um pouco mais especificamente, que são autistas que estão na comunidade do autismo, que sabem todo esse contexto, sabem as implicações de um termo ou outro e deliberadamente querem usar Asperger seja por uma rejeição à ideia de autismo, seja porque não querem associar e tudo mais. Nesse sentido eu acho que a gente pode problematizar. Mas sendo bastante sincero, aqui no Brasil eu não conheço pessoas que se enquadram nessa segunda categoria.

Então particularmente me incomoda profundamente ver alguns autistas na internet até com um discurso quase moralista assim falando assim: “ah porque aquele autista tal usou Asperger,  é um supremacista, é um fascista”. Pelo amor de Deus, gente! Sabe, eu acho isso uma coisa tão boba, sabe? Tão boba… vou usar a palavra boba que é uma palavra mais gentil, mas eu queria usar uma palavra mais agressiva na porque definitivamente isso é contraproducente. Nem todo mundo sabe o que é autismo, o que é Asperger e que já foi integrado de um dia para o outro, ainda mais fora da comunidade do autismo. Acho que a gente precisa mesmo ter um pouco espaço nesse sentido. E as pessoas não vão parar de falar sobre a Síndrome de Asperger de um dia pro outro.

Carol: É, eu acho que existe sim pessoas que evitam, que resistem em parar de usar o termo justamente por isso. Elas não se identificam com o termo autismo e eu acho que assim, uma das coisas que eu até falei com o Tiago uma vez é que eu acho o termo aspie fofinho, sabe? E às vezes é chato não podemos falar aspie. Mas assim, eu estou totalmente de boa em parar de falar isso, porque eu entendo o contexto e eu acredito sim que existem pessoas que evitam porque elas querem se diferenciar dos outros autistas. Então assim: “ah, não eu não sou autista, então eu não sou isso aí tudo que você pensa sobre o autismo, eu sou Asperger, é diferente”. Só que eu acho que isso parte muito mais das pré-concepções que as pessoas têm sobre o autismo do que em simplesmente do diagnóstico em si. E às vezes a pessoa não tem noção, não tem entendimento mais profundo sobre isso.

Eu acho que a gente precisa deixar claro que só pela pessoa ter um diagnóstico de autismo ou conhecer alguém que seja autista da sua família não significa que ela deva virar um expert nesse assunto ou que ela deva saber absolutamente tudo. Às vezes as pessoas não querem isso, sabe? Às vezes até eu tentando me inserir mais na comunidade do autismo, às vezes eu não quero ficar só pensando sobre autismo, só falando sobre autismo e às vezes esse tipo de coisa acaba cansando, sabe? Essas inúmeras nomenclaturas…

Eu acho que é muito mais importante a gente começar a discutir profundamente coisas como o maior acesso ao diagnóstico, entender porque que o recorte do autismo é tão desigual entre as faixas de gênero e raça e por que isso acontece. Por que a gente não pode dar mais enfoque a esse tipo de discussão do que simplesmente parar de usar um termo que começou a ser mal visto e vai cair em desuso?

Tiago: Então a gente sabe que a partir de janeiro de 2022, oficialmente nós vamos estar sob a égide do CID-11, mas isso não significa que as coisas vão mudar do dia pra noite. E a gente também quer saber a opinião de vocês sobre o assunto. Então pode falar aí nos comentários do nosso post, seja no Instagram, no Twitter, no Facebook ou no nosso site o que você pensa sobre isso. E eu espero que essa discussão de certa forma tenha contribuído, que vocês possam pensar, que vocês possam ler o material que está no site da gente, eu particularmente gostei muito dessa discussão, discussão profunda e que vai continuar por muito tempo, muito obrigado por ter ouvido o Introvertendo e a gente volta semana que vem. Um abraço.

(Fim do episódio)

Tiago: Que a Síndrome de Asperger era a síndrome geek, né? Representada no Vale do Silício, não sei o que, Síndrome de Asperger virou algo cool assim…

Carol: (Risos)

Tiago: Mas enfim, tu fica… Cool no sentido de legal (risos).

Carol: (Risos) Entendi, entendi. Ai, eu tenho uma raiva dessa ideia. Eu acho muito tosca, isso sim.

Tiago: O que?

Carol: Esse negócio de Síndrome de Asperger é legal assim. Tipo, Síndrome do Vale do Silício. Acho uma merda isso.

Tiago: (Risos)

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: