Depois de falarmos sobre as experiências autistas em grandes metrópoles brasileiras e cidades de interior em 2020, decidimos trazer vivências em países do exterior. Tiago Abreu recebe o integrante Willian Chimura, que fez intercâmbio nos Estados Unidos, e também os convidados Bruno Soares (que morou por dois anos na Alemanha) e Germanna Parreiras (que viajou para os Estados Unidos e Argentina) para abordar os pontos positivos e negativos dos países, como a deficiência é vista no exterior, xenofobia e também algumas histórias divertidas. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Olá pra você que ouve podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e certamente o mais cultural do mundo inteiro. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015, nunca estive fora do Brasil e nesse episódio eu estou numa função mais pra saber as histórias aqui das pessoas que estão com a gente pra falar sobre as suas experiências em países do exterior.
Willian: Eu sou Willian Chimura, apesar de ter ascendência japonesa e o meu irmão morar lá, meus familiares já terem morado lá também, eu nunca estive no Japão, porém já estive duas vezes nos Estados Unidos, uma vez em Washington, em Seattle, e outra vez para a faculdade em San Francisco, Califórnia.
Tiago: E eles que apareceram no episódio falar sobre autistas biscoiteiros depois que vocês pediram muito, eles estão de volta. Então Germanna e Bruno mais uma vez aqui no Introvertendo, se apresentem.
Bruno: Oi, o meu nome é Bruno, diagnosticado com autismo, passei uns dois, quase dois anos no exterior morando em Berlim na Alemanha fazendo intercâmbio.
Germanna: Olá, eu sou a Germanna, também sou autista. Na verdade, nunca morei no exterior, mas eu passei um período curto nos Estados Unidos e já viajei pra Argentina por um período curto também.
Tiago: Em 2020 nós fizemos uma pequena série no Introvertendo que foi baseada em dois episódios: Autistas na cidade grande e Autistas em cidades de interior, trazendo contrastes de experiências autistas conforme a localidade do país. E o pessoal pediu muito por um episódio de autistas em cidades do exterior, mas eu particularmente nunca viajei pro exterior, sempre percorri muito o Brasil conheço aí uns oito, nove estados do Brasil, mas eu nunca botei os pés pra fora, e aí pensando bastante decidi trazer esse tema aqui com o Willian, Bruno e a Germanna, que são bastante viajados, e viajam por vários lugares do mundo aí, só países desenvolvidos, só países imperialistas, né? Viajar pro Butão ninguém quer, né?
(Risos)
Tiago: Mas eu acho que pra nós, que somos brasileiros, e o Brasil já é um país muito rico culturalmente e considerando também as questões do autismo, tem muita coisa legal pra ser conversada, pra ser pensada, essas questões de viver em um outro país, morar em outro país ou simplesmente viajar, e é por isso que a gente tá discutindo um pouco disso.
Quem quiser saber uma experiência também diferente de autista no exterior, a Thaís integrante aqui do podcast, contou a viagem que ela fez na Índia no episódio 71- Pé na Estrada, mas sem mais delongas eu queria que vocês falassem mais ou menos qual país vocês se conheceram, se vocês foram pra morar, pra intercâmbio, se foi só passar uma temporadazinha, então fiquem à vontade.
Willian: Bom, Tiago, a primeira vez que eu fui foi por um programa de Intercâmbio Cultural, de bolsas, na verdade, do governo do Estado de São Paulo. Na época eu ainda não tinha nem dezoito anos, na verdade estava me formando ali no curso técnico das escolas técnicas que eu fazia o curso de informática ali em Palmital, uma cidade do interior, e por desempenho acadêmico mesmo eu acabei ganhando essa bolsa. Foi uma surpresa, na verdade, eu me lembro que eu não sabia nada sobre outros países assim, nem cogitava, tinha uma visão bem superficial mesmo de como outros países eram, no máximo saber um pouco do Japão por conta da minha família e tudo mais, mas realmente Estados Unidos era uma imagem bem abstrata, vamos dizer assim, e nem imaginava ir tão cedo visitar um outro país, como eu fui por conta dessa oportunidade.
E eu passei lá um mês, foi uma experiência muito boa pra mim, muito produtiva, tive a oportunidade de praticar muito o meu inglês, que eu já considerava avançado. Eu já tinha feito teste de proficiência naquela época, mesmo não tendo ido para países do exterior, eu desenvolvi muito o meu inglês em jogos online. Então eu acabava falando muito pelo Skype, digitando mesmo, me socializando com outros players* de outros países, e isso me ajudou bastante, e aí quando eu vou pra lá eu fiquei hiperfocado mesmo na língua. Eu fiz um um teste de nivelamento que também foi considerado como avançado, mas eu queria ser, assim, queria ser indistinguível de um native speaker*, esse era o meu objetivo, e eu passava o dia todo só falando inglês, conhecendo pessoas aleatoriamente, enfim, foi uma experiência bem bem rica assim, tanto na questão acadêmica, quanto na questão de socialização mesmo.
E já na segunda vez que eu vou para os Estados Unidos, eu fui pelo programa Ciência sem Fronteiras do Governo Federal, então já estava na faculdade, já tinha uma noção muito melhor de como era os Estados Unidos. Na época na verdade eu queria ir pra Coreia do Sul, só que eu li os editais e vi que a proporção ali de vagas para Coreia do Sul na verdade talvez não fosse tão atrativo quanto pro Canadá, por exemplo. Então eu pensei “Ah, eu vou pro Canadá que eu acho que vai ter uma probabilidade maior de ser aceito”. Porque o Ciência sem Fronteiras, teoricamente, tinha relação com a sua formação, a sua graduação, e a minha graduação era em jogos digitais, e a Coreia do Sul e Canadá eram os países mais atrativos pra isso naquele momento. Só que logo em seguida, enquanto ainda especulava os editais, abriu um novo edital pros Estados Unidos com muitas vagas, e aí eu pensei “OK, essa me parece uma chance melhor”.
Então eu passei muito tempo lendo os editais, estudando pra prova de proficiência, fazendo todos os procedimentos, até finalmente conseguir. Tive um aceite, então eu passei um ano lá nos Estados Unidos. Estudei no City College of San Francisco, não necessariamente estudei jogos digitais, na verdade, apesar de ter feito vários créditos em Computer Sciences*, e um em Psicologia, na verdade, mas por mais que não tenha sido relacionado, foi uma experiência muito enriquecedora pra mim, foi ali que eu tive um primeiro contato, na verdade, com a aprendizagem mais formal assim no campo da psicologia, por mais que a gente estude isso um pouco em jogos digitais, não é nada tão relacionado assim quanto diretamente estudar, né? Uma aula introdutória de psicologia e novamente também considero uma experiência muito enriquecedora principalmente por conta do meu interesse naquela época ser muito voltado pra tecnologia.
Então eu estava na Califórnia, ali tive contato com muitas palestras interessantes, muitas empresas interessantes, tive oportunidade de conhecer professores, fazer cursos que eram caríssimos aqui no Brasil e lá foram custeados pelo programa. Então, isso foi muito bom, em geral, tanto pra minha carreira quanto para amadurecimento pessoal mesmo.
Germanna: Eu dei um spoiler pros lugares que eu fui, eu fui pra Argentina quando eu tinha uns 22 anos, eu acho. Foi a primeira vez que eu saí do Brasil, eu ainda morria de medo de viajar, eu fiquei uma semana, foi uma experiência diferente e foi relativamente tranquilo. E aí quando eu fui pros Estados Unidos, já fui mais recente, fiquei um tempo maior, mas ainda não tive uma experiência de moradia, eu fiquei lá por dois meses. Foi muito interessante ter contato com outra cultura, conhecer vários lugares, foi muito bom.
Bruno: Bom, eu fui num programa de bolsa pra estudar na Alemanha, em Berlim, eu passei pouco menos de dois anos morando lá. Eu não diria que a minha experiência foi necessariamente positiva ou negativa. Eu não acredito muito nisso. Eu acho que eu evoluí bastante do que eu passei lá. Eu acho que a maior contribuição, na verdade, do meu intercâmbio foi o aumento do meu cinismo com o mundo e com a vida em geral.
Tiago: Eu acho engraçado que aqui a gente tem diferentes perspectivas assim de origens mesmo. Enquanto o Willian, por exemplo, tem uma ascendência japonesa, o Bruno já tem uma ascendência alemã e a Germanna eu já não sei (risos), ascendência brasileira, podemos dizer assim, por enquanto, que nem eu. E eu acho que isso influencia bastante em quais países nós vamos conhecer e também principalmente da forma como a gente vai interagir quando a gente está nesses lugares. E eu imagino que devem ter muitos contrastes em relação ao que a gente está acostumado a viver no Brasil. Então eu queria saber quais foram as coisas mais confusas pra vocês, quando vocês estavam estranhamentos, teve alguma coisa cultural assim que nossa, isso aqui é muito diferente, é muito incômodo?
Germanna: Eu acho que por eu ser do interior, então eu tava tão deslumbrada com tanta coisa diferente, tanta informação que eu não sei se eu parei pra discriminar o que eu achava de tão diferente assim, de ruim ou algo relacionado. Eu lembro que eu gostava muito dos cafés, da forma como você andava lá e tinha vários cafés, e como o acesso a museus lá era tão comum, era como se fosse ser sócio de um clube, pessoas são sócias de museus lá, isso pra mim era muito maravilhoso, e eu amei nos museus então eu acho que isso é o que eu senti de diferente, como tinha uma oferta maior dessas coisas lá, e eu tava deslumbrada mesmo, né? Era tudo diferente e eu tava aproveitando tudo que eu tava conhecendo lá. Restaurante que tinha um monte de comida diferente, eu amava comer, um monte de coisas.
Willian: É, falando sobre choques de cultura, preciso lembrar do meu primeiro intercâmbio. Principalmente quando eu tinha dezessete anos e fui pra Seattle, no primeiro momento, e aí esse choque faz mais sentido, especificamente em Seattle porque a escola de idiomas ali onde eu estudei pelo período mais ou menos de um mês ela era bem próxima da University of Washington. E ali no campus você notava muitas pessoas de outras partes do mundo, na verdade, principalmente coreanos.
Havia até uma estatística ali naquele momento que se eu não me engano metade ou um pouco mais da metade dos alunos da University of Washington na verdade eram coreanos, e isso me surpreendeu. Porque na minha concepção leiga, eu ia para os Estados Unidos e ia conhecer outras pessoas que eram daquele país ou de alguma forma, nasceram naquele país, ou enfim. E eu não esperava ter tido tanto contato com a cultura coreana quanto eu tive lá. Inclusive eu acabei estudando coreano enquanto eu estive lá, além do inglês e eu realmente gostei.
Eu tive vários amigos, na verdade, coreanos. A gente trocou várias informações, histórias, fotos, a gente fazia atividades juntos, comíamos juntos, inclusive eu tenho uma lembrança da primeira vez que eu fui num restaurante asiático ali com eles. Eu digo asiático porque como se trata de um restaurante ali nos Estados Unidos, não necessariamente ele era exclusivamente nichado para comida de um país asiático específico, né? Então, ali você tinha pratos que eram desde mais em um viés japonês, quanto outros desse viés coreano. Mas ainda assim poderia-se dizer que era um restaurante com uma forte influência mesmo.
E ali naquele momento eu até me familiarizava com alguns pratos, apesar de que eu ainda não conhecia kimchi, por exemplo, que é um alimento bem básico na cultura coreana, e eles me falaram sobre, como aquilo fazia parte do dia a dia deles, obviamente tive uma curiosidade de experimentar e tal, mas ao mesmo tempo eu queria pedir algo que eu era familiar com, mesmo porque eu sempre tive muitas peculiaridades, mesmo antes de saber que eu era autista, sempre soube sobre as minha peculiaridades na hora de me alimentar, então eu pelo menos pegar um prato que eu já conhecia, já era familiarizado com na primeira vez.
E pra minha surpresa, na verdade, quando eu faço o pedido do meu prato, ao chegar, a comida chega de uma forma comunitária, na verdade, ela é servida de uma forma comunitária. Então, não havia exclusividade nos pratos. Cada pessoa pediu um dos pratos que fazia uma composição de uma refeição maior que era dividida entre todas as pessoas. Então o meu pressuposto de que eu ia comer uma coisa e as pessoas iam comer outra na verdade foi totalmente invalidado. Eu notei isso na hora, na verdade, consegui notar isso rapidamente.
Achei até interessante, na verdade, como as pessoas deliberadamente invadiam, vamos dizer assim, o prato uma das outras, e estava tudo bem sobre isso, o único prato que realmente era exclusivo era um bowl de arroz, um pequeno bowl de arroz, que às vezes eventualmente você pegava outros alimentos também pra compor ele. E essa realmente foi uma experiência bem interessante, agradável.
Falando um pouquinho mais sobre a questão da alimentação, agora já no contexto da minha host family*, que é uma prática comum lá nos Estados Unidos, então algumas famílias, não somente nos Estados Unidos, mas algumas famílias, às vezes têm um quarto, até um andar disponível para ser alugado, e aí eles decidem receber um intercambista para ser hospedado ali por um certo período de tempo, a empresa envolvida no intercâmbio paga a eles alguma quantia e eles cuidam de alguma forma desse estudante, provendo ali itens de necessidade básica, às vezes também provêm almoço, café da manhã, enfim isso depende, varia muito de acordo com cada família e até que ponto ela tem disponibilidade também pra ajudar esse estudante. No meu caso a minha host family foi muito receptiva comigo, ela foi bem respeitosa e o que me surpreendeu é que eu tinha um andar inteiro pra mim.
A narrativa toda antes de chegar lá nos Estados Unidos era de que eu teria um quarto pra mim então, eu ficava imaginando esse quarto com mais ou menos o mesmo espaço, com os mesmos recursos que eu teria por exemplo num quarto comum do Brasil, mas chegando lá o andar inteiro era disponível pra mim, e o andar inteiro na verdade era apenas uma parte da casa que não era uma casa grande comparada às comuns dos Estados Unidos. Era uma casa OK, era uma casa média, porém muito mais espaço do que eu sequer imaginava, então eu tinha uma mini cozinha disponível pra mim, eu tinha uma cama super confortável, eu tinha um canto de estudos ali que tinha uma luminária, uma mesa ótima, uma cadeira muito boa, espaçosa. Eu tinha um banheiro que, enfim, tinha banheira também, e sem falar nas máquinas de lavar que pra mim eram bem cômodas também. Então assim, foi uma outra coisa que foi muito impactante pra mim, que eu nem sequer imaginava que aquilo ali poderia ser considerado como classe média.
Mas enfim, voltando ao ponto da alimentação, a minha host family costumava fazer, preparar algumas das refeições, e eu notava como não existia o componente básico, arroz e feijão, por exemplo, ou o macarrão, as massas costumeiramente feitas aqui no Brasil. Eu notava como as refeições às vezes, por exemplo, eu me lembro de um dia que a refeição principal era alcachofra e eu nem sequer sabia o que era alcachofra. Uma outra coisa que me surpreendeu também foi como o leite é consumido lá, por exemplo, porque lá é comum notar americanos tomando leite enquanto almoçavam, na janta, por exemplo, e eu nunca sequer tinha pensado nessa possibilidade.
E eu sei que eu já falei demais, mas eu preciso falar dessa que no Brasil eu sempre fui uma negação no sistema transporte público, até hoje na verdade é um dos déficits que tem muito a ver com autismo, eu diria. Tem muitas pistas sociais que precisam ser seguidas quando você está num ônibus pra você saber o ponto que você vai parar, pra você saber quais as rotas tomar, e aqui no Brasil, isso é realmente muito confuso pra mim. É difícil, não acho nenhuma das indicações claras o suficiente pra conseguir ter uma boa autonomia, então eu realmente não costumo me arriscar muito, e quando eu me arrisco frequentemente eu fico perdido, dá algum problema, e já nos Estado Unidos foi totalmente diferente.
Eu explorei todos os cantos da cidade porque eu peguei um folheto do ônibus e eu via sistematizado de uma forma tão lógica, tão fácil, tão previsível que eu simplesmente senti confiança de navegar pela cidade toda, sem falar no fato de que a cada esquina, não literalmente a cada esquina, mas era bem comum de você ter uma rosa dos ventos nas esquinas e aquilo facilitava muito para eu conseguir saber para onde ter um ponto de referência para onde eu tinha que ir, para onde eu poderia ir e enfim, isso foi com certeza um ponto positivo e que me impactou também logo de cara.
Bruno: Bom, na minha experiência na Alemanha acho que um primeiro ponto bastante interessante para um podcast de autismo foi definitivamente os supermercados de lá. Primeiramente eu não sei se é uma questão de preço, se é uma questão ecológica, mas a obsessão por caixas, os produtos mais absurdos que vocês consigam imaginar são vendidos em caixas lá. Tipo, eu comprava sei lá caixas com peitos de frango ou caixas tipo com sal dentro, uma coisa bastante bizarra assim de vender numa caixa aqui no Brasil.
E ainda no tópico do supermercado, os caixas de supermercados são absolutamente insanos lá, é quase uma modalidade olímpica. Sinceramente acho que aquelas mulheres, aqueles homens fazem, nossa, aquilo não é de Jesus, tu coloca tudo na esteira e daí eles vão passando aquilo ali como se a vida deles dependesse daquilo, o que depende. Bom, eles passavam muito rápido aquilo e daí, principalmente de início assim, e mas continua sendo um problema depois porque tu fica completamente perdido ali porque começa vir essa avalanche de compras por cima de ti e tu não sabe como é que tu faz pra empacotar as coisas a tempo! E também tu tem que sempre manter o teu método de pagamento contigo e pagar e tem muito essa pressão de ser rápido no caixa, sabe? Tu consegue ver as pessoas te olhando feio se tu não tiver o negócio pronto. O que é extremamente difícil porque o teu trabalho provavelmente é mais demoroso que o do caixa em si porque ele só passa ali o código e tu tem que empacotar as coisas. Fica a fila inteira possessa contigo.
Tiago: Isso parece quando eu vou no Subway, sabe? Eu tenho que escolher os ingredientes rápido e parece que a pessoa não tem paciência e aí eu escolho a primeira coisa que aparece porque eu não sei escolher um negócio, mas enfim.
Bruno: No tópico específico de autismo, que eu acho que seria interessante pros ouvintes desse podcast, uma coisa pela qual os alemães são bastante infames é encarar as pessoas. Os alemães adoram te encarar na rua por motivo nenhum, às vezes. Ah, outra coisa que é muito comum lá são as mijadas gratuitas que tu vai receber invariavelmente se tu ficar lá, alguém vai ficar bravo contigo por tu não saber alguma coisa, por tu tá mal informado ou fazer alguma coisa errada e vai se sentir empoderado no direito de ficar te dando uma lição de moral ali no meio da rua.
Tiago: Você falou em mijadas e aí eu pensei em alguém mijando literalmente em você eu pensei: “uai, mas e o consentimento?” Mas ainda bem que você falou no sentido figurado (risos).
Willian: Consentimento? Tipo, oi, eu posso mijar em você aqui?
(Risos)
Bruno: É que sei lá, sempre foi muito comum aqui na minha casa falar de mijada. É a pessoa não tem vergonha nenhuma, sabe? Uma pessoa desconhecida ficar implicando.
Tiago: O Willian já falou bastante sobre a questão da língua, que ele tinha uma proficiência, então imagino que no caso dele a experiência foi muito boa, mas eu queria saber principalmente de você, Bruno, e você, Germanna, se vocês tiveram alguma dificuldade em relação à língua ou se foi algo natural, como é que era conversar com as pessoas nativas?
Bruno: Particularmente sempre tive bastante facilidade pra aprender línguas, porém eu também talvez seja do próprio autismo, porque eu experienciei a mesma dificuldade do Willian que ele mencionou que ele queria falar como nativo, e essa obsessão assim por perfeição, sabe? Eu acho que isso muitas vezes acaba funcionando contra mim. Eu acabava me inibindo muito porque tu atingir um nível que tu consiga ter uma conversa natural com alguém é bastante difícil. Pra mim, não ironicamente, a Inês Brasil é um ícone, sabe? Porque ela fala alemão e ela não fala um alemão totalmente correto, sabe? Mas é perfeitamente compreensível. E eu acho sinceramente que é um exemplo pra nós, porque não precisa ficar tão focado nessa ideia da perfeição, sabe? Eu acho que é obrigação do falante nativo de ter a gentileza de compreender que tu vai ter dificuldades e que mesmo que tu conjugue as coisas erradas ou de alguma forma esquisita, tentar entender e se relacionar contigo como uma outra pessoa.
Germanna: Eu concordo com o Bruno sobre a gente contar com a compreensão dos nativos em relação a dificuldades, e como a gente se embola às vezes pra algumas coisas, mesmo porque é muito complexo expressar em outra língua uma coisa que você está tão acostumada a falar na sua própria língua, tem diferenças além das linguísticas propriamente ditas. Tem uma questão cultural que às vezes você não consegue expressar bem em outra língua porque não faz sentido na outra língua.
Então sinto que eu aprendi, o que eu sei de inglês, eu aprendi sozinha. Então, eu tenho muita dificuldade com assuntos, principalmente coloquiais. Então, quando eram temas específicos, principalmente música, jogos ou ciências, eu sinto que eu tinha mais facilidade pra conversar. Agora, quando eram assuntos corriqueiros, com muitas gírias, eu sinto que eu ficava com um pouco mais de dificuldade, mas como eu estava visitando amigos, todo mundo foi muito tranquilo na verdade comigo lá, então eu não passei tanto por isso e quando eu estava sozinha e passei algum aperto era naquele viés divertido assim, nossa, eu estou passando um aperto aqui e é isso, né? Era como uma experiência mesmo, então eu estava experimentando uma coisa nova.
Eu acho que a minha experiência é diferente da do Willian e do Bruno, porque eu fiquei pouco tempo, né? Então talvez se eu tivesse ficado por um tempo maior eu tivesse reparado em mais coisas e me incomodado com mais coisas, estranhado mais coisas. Eu acho que pelo tempo que eu fiquei o que eu mais estranhei foi realmente sentir falta de almoçar às vezes como eu almoçava aqui ou de talvez não de ter opções de comer mais frutas ou coisas principalmente de alimentação que eu senti muita falta, mas eu lembro de uma reflexão que eu tive lá que foi houve essa questão da barreira da linguagem em si eu pensei assim “ah, quando eu voltar pro Brasil eu vou ter mais facilidade pra me comunicar, porque eu vou estar falando a minha própria língua, vou ter experienciado o quanto é difícil às vezes você se comunicar adequadamente numa outra língua.” Aí eu voltei pro Brasil e não tive essa experiência, continuou sendo desafiador eu me comunicar em vários contextos, enfim.
Tiago: Do que eu conheço vocês, as experiências de vocês no exterior todas elas foram antes do diagnóstico de autismo, né? Então eu imagino que obviamente vocês talvez não prestaram atenção em questões do autismo relacionadas à experiência de vocês no exterior, vocês nem sabiam que eram autistas. Mas tem uma outra questão que talvez fique um pouco mais evidente, que é a situação de você ser brasileiro em outro lugar e às vezes quando você é de um outro país, você acaba sofrendo aquilo que a gente chama de xenofobia. Aí eu queria perguntar nesse sentido, o país que vocês estavam vocês percebiam que havia alguma hostilidade em relação ao fato de vocês serem brasileiros, e as características do autismo de alguma forma interferiram negativamente nessa experiência de morar no exterior?
Willian: Por mais que os dois períodos que eu passei nos Estados Unidos tenham sido obviamente do mesmo país, eu acho que são contextos significativamente diferentes, porque o primeiro contexto eu vou para uma escola de línguas, fico apenas um mês e eu ainda sou menor de idade, então querendo ou não eu diria que eram interações menos complexas ali, porque o ambiente já selecionava muitas pessoas. Eu tinha muito contato com pessoas que foram para outro país que já estavam fora da sua cultura nativa, vamos dizer assim, e que estavam sim open minded*, disponíveis para interagir e conhecer coisas novas, então nesse sentido de interação eu não diria que eu tive problemas nesse primeiro intercâmbio.
Já no segundo intercâmbio, foi um período bem maior, um pouco mais de um ano, e eu dividi apartamento com outros estudantes brasileiros. Então teve este ponto crucial também que aí sim, eu tive sim muitos episódios que se relacionavam. Inclusive eu tenho um episódio até hoje que um dos meus colegas de apartamento eles ficou muito bravo comigo, ele ficou realmente muito muito muito bravo comigo, e até hoje eu não tenho certeza do que desencadeou, eu fico pensando e revisitando esse contexto e eu realmente não sei o porquê. Eu só notei quando ele já estava muito bravo. Estava me dando uma lição de moral, vamos dizer assim. Mas eu realmente não sei o que engatilhou isso, e até eu acho que eu nunca vou descobrir na minha vida o que engatilhou isso. O que é bem clássico do autismo, na verdade. Inclusive até nos testes você tem algumas vezes algum dos itens que é: “Às vezes as pessoas estão bravas comigo e eu não sei o porquê.”
Mas falando sobre casos de xenofobia, eu me lembro especificamente também no contexto da Califórnia que um dos meus professores alertou a gente sobre isso. Principalmente antes de ir para o City College of San Francisco a gente teve ali um período de mais ou menos umas três semanas de aula de inglês para um Warm Up*, vamos dizer assim, da turma antes de ir de fato para a faculdade, e o professor foi bacana o suficiente para alertar a gente sobre essas questões. E ele especificamente disse que no caso dos brasileiros ele não entendia que a gente deveria ser muito vítima de preconceito. Porque na Califórnia existia esse viés de que, poxa, já tem muita gente aqui e aí você encontra filipinos falando em outra língua no ônibus, chineses falando outros dialetos, você encontra outras pessoas ali de origem latina. Só que por algum motivo, no entendimento dele, os brasileiros tinham uma imagem positiva, uma imagem de que o Brasil era um país legal, um país bacana e, poxa, eu encontrei um brasileiro, que legal, eu costumeiramente não vejo brasileiros por aqui, deixa eu falar com eles, então parece que era algo que era mais convidativo e menos propício a sofrer esse tipo de preconceito do que outras populações.
Porém, também me lembro que quando comecei no estágio ali em uma empresa, eu me lembro de um comentário de uma pessoa em específico que falou brincando coisas do tipo “Ah, pois é, eu sempre pensei que os brasileiros eram preguiçosos, mas vocês são bons e etc.”, se referindo ao nosso grupo de estudantes ali que estava efetivamente produzindo. Então dava pra notar que realmente existia esse viés de preconceito, mas especificamente eu não sofri muito diretamente, mesmo porque eu acabei sendo de certa forma notado ali por justamente estar envolvido e engajado em muitas atividades curriculares e extracurriculares, a trabalho acadêmico e etc.
Apesar de que os meus colegas de apartamento brasileiros certamente me viam como bem mais reservado. Eles programavam muito mais viagens, eles andavam muito mais pela cidade, conheciam muito mais pessoas, e eu estava mais preocupado em ficar no meu quarto, na verdade, estudando, lendo coisas, comprando coisas diferentes na Amazon, e eu também me lembro autisticamente da sensação de andar pela neve, né? Inclusive eu tenho até um vídeo gravado sobre isso e também da sensação da porta fechando em dias de inverno principalmente quando a casa está quente por causa do termostato e lá fora o ar está frio, e era muito interessante pra mim notar essa resistência e essa troca de temperaturas diferente enquanto você fecha a porta. Eu realmente gostava de me despender um tempo nisso.
Bruno: No tópico de xenofobia, a Alemanha como sociedade, devido ao seu contexto histórico, eles procuram bastante evitar e suprimir símbolos considerados opressivos. Mas na realidade não existe tanto um combate contra as ideias ou discursos preconceituosos, xenofóbicos. Uma coisa a se entender é que a cultura alemã, assim como as culturas europeias, elas se baseiam muito num conceito de sangue de família, de linhagem, então na ideia deles tem um conceito muito restrito do que é ser alemão, por exemplo. Até hoje tu vê o maior exemplo disso é o crescimento do islamismo na Europa, que tu tem várias pessoas que são nascidas nesse lugar, viveram a vida inteira nesses países e não são considerados alemães, franceses, ingleses, enfim.
Eu particularmente não diria que eu sofria assim ataques ou agressões ou até mesmo muitos comentários maldosos ou coisas do tipo. Mas eu também sou um homem branco, sempre passei por alemão, e até porque o que eu falei antes, que eu tentava falar a língua sem sotaque, então eu acabava muitas vezes em pequenas interações eu passava meio despercebido, não sentiria xenofobia.
Naquele momento eu ainda não tinha o diagnóstico de autista, mas eu já reparava que a sociedade alemã é muito menos tolerante à deficiência do que é brasileira. Eu sei que pode ser chocante pras pessoas, porque nós sabemos como o Brasil tem dificuldades, não dá o apoio necessário pras pessoas que têm necessidades especiais, mas eu não posso falar assim por programas governamentais ou de saúde, que tipo de suporte eles dão.
Mas visivelmente, por exemplo, eu nunca vi fila de deficiente lá fora, eu nunca vi gente subir e dar lugar pra outra pessoa num ônibus ou num metrô. É um problema muito grande com idosos também. Tem muito abandono de idosos na Europa, em geral, porque eles têm muito uma ideia muito rígida de respeito aos mais velhos, mas os mais velhos acabam sendo jogados às traças no final da vida.
E eu tenho a impressão que todos os defeitos dos brasileiros, nós fazemos um esforço pra ajudar essas pessoas que precisam de ajuda, sabe? Às vezes aparece algum gringo perdido aqui no Brasil, ele pode ir numa padaria, ninguém fala inglês, vão ligar no telefone do tio do primo, alguém que fala pra ajudar essa criatura, sabe? E esse tipo de coisa tu não vai ver na Alemanha.
Da mesma forma que por exemplo se um brasileiro vai no Brasil ele já procura jeito de trazer a mãe, o pai, a avó, traz a família inteira junto pra se ajudar ou mandar dinheiro pra casa, sempre tem essa ideia de família muito forte, o que não necessariamente é tão verdade no exterior. O que eu quero dizer é que eu acho importante nós focarmos também no positivo da nossa nação, da nossa cultura, porque abriu muito meus olhos ir pro exterior nesse sentido, sabe? Porque nunca é um motivo pra desistir de mudanças e melhoras, mas eu acho que é bom contextualizar como o brasileiro é capaz de ter muita compaixão.
Germanna: Na minha experiência eu também não consigo identificar isso de ter passado por isso de xenofobia ou alguma questão relacionada ao autismo que eu já não experimente aqui. E eu acho até que lá era pressuposto que eu tinha alguma diferença, porque eu era de outro lugar, né? Então de certa forma pra mim aquilo já era esperado durante as interações, mas não consegui identificar nenhum preconceito, algo nesse sentido, até porque o amigo com quem eu passei a maior parte do tempo também era autista, então querendo ou não acho que isso foi um facilitador pra eu me sentir compreendida, à vontade, de certa forma, durante a maior parte do tempo, porque ele estava comigo e outras pessoas, então eu sinto que isso me ajudou lá.
Tiago: Então é isso pessoal, espero que a gente tenha encerrado com chave de ouro essa série em diferentes lugares do mundo. Se você quiser mandar uma história pra gente, contar alguma experiência pode mandar nas redes sociais e a gente volta semana que vem com mais um episódio do podcast Introvertendo.
Glossário:
- Players: Jogadores
- Native speaker: Falante nativo de um idioma
- Computer Sciences: Ciências da Computação
- Bowl: Tigela
- Host Family: Família que recebe convidados/intercambistas em sua casa
- Open minded: De mente aberta
- Warm up: Aquecimento