Independentemente de ser diagnóstico tardio ou precoce, um dos pontos de maior preocupação de autistas e seus familiares centra-se na questão de autonomia e o autocuidado. Afinal, mesmo para autistas que conseguem trabalho e em alguns casos moram sozinhos, ainda existem vários desafios e cobranças sociais a desempenhar. Por isso, neste episódio, debatemos o que é autonomia e autocuidado no contexto do autismo na vida adulta e como isso pode variar de acordo com cada pessoa. Participam: Carol Cardoso, Thaís Mösken e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Thaís: Um olá pra você que é ouvinte do Introvertendo, esse podcast feito por autistas pra toda a comunidade. O meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, tenho 30 anos, fui diagnosticada em 2018 e hoje sou host deste episódio em que a gente vai falar sobre autocuidado e autonomia.
Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e eu só descobri que eu estava preparado pra vida adulta quando eu tive que encará-la de frente.
Carol: Eu sou a Carol Cardoso, também sou autista diagnosticada em 2018 e eu não sei se eu tô preparada pra encarar a vida adulta ainda.
Thaís: O Introvertendo é um podcast feito por autistas com a produção da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Carol: Autocuidado, de uma forma geral, é tudo que a gente faz pra manter a nossa vida e manter a nossa saúde: escovar os dentes, tomar banho, se alimentar, e as formas que a gente gerencia nossa vida cotidiana como interagir com as pessoas, desenvolver uma rotina, conseguir cuidar de si mesmo, das pessoas que dividem o espaço com a gente e cuidar do ambiente que a gente vive e conseguir promover o seu bem-estar, a sua saúde e a sua qualidade de vida, falando de uma forma bem bem generalizada.
Tiago: E eu só diria também que diante dessa de autocuidado e autonomia, a gente fala muito também sobre manter esse patamar. Então não é só você dispor de uma qualidade de vida, mas você conseguir manter esse patamar a longo prazo. E quando a gente fala sobre autismo, estamos pensando que é uma deficiência que nos acompanha desde o nascimento até o fim da vida. Então falar sobre autonomia e autocuidado é muito importante e muitas vezes é um assunto que só chama atenção das pessoas quando começamos a discutir autismo na vida adulta.
Thaís: E a gente precisa lembrar também que essa parte de autonomia envolve uma gama muito grande de habilidades que a gente vai usando, desenvolvendo, aprendendo, às vezes algumas estratégias que a gente tem que usar no nosso dia a dia pra justamente conseguir levar um dia a dia o melhor possível.
Carol: Quando a gente fala de autismo, essa questão do autocuidado pode ser muito variável. Porque quando se aprende a fazer coisas, de um modo geral, a gente se esquece da quantidade de esforço que a gente precisa fazer para desempenhar essa atividade quando elas se tornam um hábito. Por exemplo: quando a gente tá começando a escrever, a gente não sabe muito bem como fazer isso. A gente precisa desenvolver muitas habilidades para conseguir realmente transformar os nossos pensamentos em palavras escritas, então envolve muitas habilidades físicas e mentais para conseguir fazer isso. E quando a gente já sabe escrever, a gente parece que esquece o tanto de esforço que precisa pra fazer isso. Pra alguns autistas, algumas coisas que pras outras pessoas parecem super básicas são muito significativas, são muito importantes. Então um autista pode ter autonomia pra ficar sozinho em casa ou pra se alimentar sozinho, mas não ter autonomia pra conseguir morar sozinho. E não necessariamente isso significa que ele não tem autonomia. Eu entendo que a autonomia não é exatamente como se fosse um patamar a que se chega e que é inabalável. “Ah, então a partir de agora você tem autonomia”. Eu acho que principalmente no autismo, quando a gente tem habilidades muito boas em um campo e habilidades bem ruins em outros campos, é muito difícil a gente dizer que alguns têm autonomia e outros não tem, mas aí a gente pode discutir isso mais pra frente.
Tiago: E mesmo quando a gente não tem perspectiva a autonomia dita plena… Porque quando a gente fala sobre autismo a gente especificar de qual autismo a gente tá falando. Mesmo aqueles autistas que estão aprendendo coisas muito básicas por meio de comunicação alternativa, como pedir pra ir ao banheiro, estão de certa forma aprendendo a desenvolver certo nível de autonomia. Um nível de autonomia que talvez para aquilo que a gente convive em sociedade não está perto dessa autonomia que chamaria de morar sozinho, por exemplo, mas é um nível muito importante pro desenvolvimento daquela pessoa. Então é muito importante ter isso em perspectiva. Eu acho que a nossa discussão aqui nesse episódio hoje é principalmente levando em consideração aquilo que a gente chama de autismo dito leve, porque a presunção de que ser autista leve te torna um autista com mais facilidade para essas questões e consequentemente tu vai ser autônomo em tudo. E não é bem assim como as coisas são. Como bem a Carol disse, existem autistas que são muito bons tem algumas coisas e em outras coisas são uma completa negação.
Thaís: E mesmo quando a gente fala em deficiência geralmente a gente não tá falando em algo absoluto. Se você tem um um ambiente mais adequado às vezes uma coisa que é uma deficiência em outro ambiente, naquele não é. A autonomia tem também essa característica de depender de qual é o padrão que você está estabelecendo para aquilo. Não é algo absoluto. Então qual autonomia você acha que seria importante pra si dentro do autismo leve? O que você pode fazer pra chegar nesse nesse ponto de autonomia? Quais são as estratégias que você pode usar ou quais coisas você talvez não consiga fazer sozinho, mas encontre ferramentas que façam aquilo pra você? Então eu acho que essa característica de isso não ser um absoluto, depender muito de qual é o ambiente em que você tá e de o que você deseja pra si, eu acho que é bastante importante para que a pessoa possa conviver bem consigo mesma. Que não precisa se forçar a tentar aprender tudo, a fazer tudo só. E como a Carol citou, a gente tem uma diferença bastante grande entre ser inteligente, ter habilidade em determinadas áreas e realmente ter autonomia no dia a dia, conseguir fazer as coisas que são “esperadas” pra que a pessoa consiga se cuidar. O que vocês podem falar sobre esse tipo de diferença de habilidades? Onde a gente foca mais algumas habilidades também e como às vezes a gente pode usar algumas habilidades diferentes pra conseguir levar esse dia a dia de uma forma melhor?
Tiago: Inclusive, uma coisa muito interessante sobre isso, é um exemplo que eu acho que eu já falei várias vezes aqui no Introvertendo mas pra mim é um exemplo muito claro. Dentro da nossa sociedade, a gente tem o entendimento de que você fazer um curso de pós-graduação como mestrado, doutorado, é algo complexo. Não é qualquer pessoa que dá conta de fazer isso. E eu conheço autistas que estão fazendo mestrado e doutorado, mas ao mesmo tempo que cumprem essa etapa “complexa” da vida não conseguem exercer atividades básicas. Por exemplo, na hora que saem de casa, esquecem a carteira, tem isso que a gente chama as vezes de disfunção executiva. E o julgamento social que se tem acerca disso é muito grande, porque é muito difícil você entender intuitivamente que uma pessoa que vai conseguir fazer algo super difícil não vai dar conta de fazer algo ultra fácil. Não tem muito a ver com a autonomia, mas eu tenho um exemplo pessoal meu. Eu tenho muita dificuldade, por exemplo, de descascar frutas, principalmente laranja. É uma atividade normalmente considerada básica, mas que eu não cumpro e tem várias outras coisas muito mais complexas na vida, no dia a dia, que eu consigo exercer com facilidade. Então isso confunde um pouco a cabeça das pessoas. E confunde até quem faz parte da comunidade do autismo, confunde profissionais que em tese deveriam entender muito bem isso, mas infelizmente isso existe.
Carol: Eu tenho uma experiência sobre isso que é muito significativa. Eu sempre frequentei supermercado com a minha mãe e eu tava acostumada a fazer isso. Poucas vezes eu fiz sozinha, porque geralmente a gente fazia compra em família. E aí quando eu passei um tempo em São Paulo e eu tive que ir pra outro supermercado, eu tive uma crise bem forte durante uns dias. Porque tudo tava fora de lugar, parece que não era a mesma experiência. Eu fiquei me sentindo horrível e perdida. E se eu não tivesse com a minha irmã talvez eu tivesse ido embora. Era um mercado, eu sabia que era mercado, eu tinha ido pra fazer a mesma coisa que eu faço aqui na minha casa, mas não era igual. Então como é que uma pessoa que consegue fazer certas coisas muito bem e que teoricamente é lida como adulta e que deveria saber fazer essas coisas básicas não consegue lidar com uma situação de ter que comprar mantimentos pra sua casa, sabe? Quando as pessoas veem a gente assim do Introvertendo, que conseguem verbalizar esse sentimentos, elas acham que parece até que a gente tá mentindo. Porque “ah, se tu consegue entender ou se tu consegue falar tão bem sobre isso, como é que isso ainda é um problema”, sabe? Ao mesmo tempo que cobram que a gente aprenda habilidades que tragam autonomia pra nossa vida, dificultam muito a nossa vida pra gente conseguir ter essa autonomia. Por exemplo, quando a gente reivindica certas coisas que fariam muita diferença na nossa vida, como conseguir ter acesso a uma fila preferencial para evitar um prolongamento dessa situação de estresse. As pessoas super questionam o nosso lugar, o fato da gente estar ali. Então eu acho que a gente sempre se vê nessa situação que as pessoas cobram da gente uma postura, mas não dão as condições pra gente ter essa postura.
Thaís: Eu acho que quando a gente fala também de autonomia, tem muito a ver pelo menos no dia a dia, com a gente lidar com coisas inesperadas. Eu, por exemplo, tenho muita facilidade em me planejar pra fazer alguma coisa. E por mais que às vezes seja algo que vai me incomodar muito, que eu demore muito pra conseguir reunir energia pra fazer aquilo, por exemplo, se eu tiver que sair pra ir no mercado, fazer compras, eu consigo me planejar pra fazer aquilo. Só que às vezes, por mais que você tenha planejado, coisas que saem completamente do planejamento acontecem. Então por exemplo, um equipamento que quebra, uma torneira que começa a espirrar água pra todo lado, passou alguém e quebrou alguma janela sua… pra mim até eu conseguir encaixar o fato dentro da minha realidade e entender o que eu tenho que fazer com aquilo, isso pode ser um problema. E dependendo da pessoa, pode se tornar um problema ainda maior. Existem alguns casos, dependendo de como tá a minha estabilidade emocional naquele momento, em que eu percebo que parece uma coisa desesperadora, é alguma coisa pequena que saiu do esperado, que saiu ali da minha rotina e eu não sei como lidar com aquilo por algum tempo. Às vezes eu acabo precisando de ajuda inclusive pra entender o que tá acontecendo e poder atuar sobre aquilo e seguir em frente depois. Então, pra mim esse é o tipo de coisa que também para muitas pessoas que me conhecem, por exemplo, no trabalho ou da da escola de quando eu tirava notas boas, pode não fazer sentido pra essa pessoa eu ter esse tipo de dificuldade. E acontece muito mais no dia a dia de alguém que mora sozinho do que poderia parecer. Por exemplo, se você assistiu um filme, novela, for ler um livro, esse tipo de situação não costuma aparecer ali com muita frequência, mas é algo bem comum na minha vida pelo menos.
Tiago: É engraçado isso que você falou porque eu tenho uma percepção que eu não diria que é diferente, mas ela talvez pode complementar. Eu percebi que uma coisa que fez muito bem pra mim e quando a gente fala sobre autonomia muita gente pensa imediatamente do morar sozinho, por exemplo, é que morar sozinho me fez estar menos diante dessas situações imprevisíveis. Porque a quantidade de demandas que eu recebia de outras pessoas com que eu convivia dentro de casa que alteravam o meu script eram muito maiores do que hoje quando eu moro sozinho. Hoje eu tenho muito maior previsibilidade sobre a minha rotina, sobre as coisas que eu vou fazer, os meus planos B diante das coisas que dão certo ou dão errado. Então, ao mesmo tempo que eu consigo visualizar isso que você tá falando, eu também tenho uma experiência diferente no sentido de que morar sozinho não acabou com todos meus problemas, entre aspas, mas ao mesmo tempo me deu a possibilidade de ter mais controle sobre as coisas que acontecem, sobre as variáveis dentro do ambiente que eu interajo.
Thaís: Eu acho que se você tem razão no que tange principalmente a interação com pessoas. Então, as pessoas acabam te trazendo menos problemas quando você está sozinho. Então realmente eu tenho também essa percepção de que as pessoas alteram muito menos o meu cronograma, eu consigo me organizar melhor sozinha. Mas qualquer coisa que saia do esperado, eu também vou ter que resolver sozinha. Então acaba sendo um equilíbrio ali que a gente tem que escolher o que que a gente prefere.
Carol: Eu tive essa impressão assim quando eu passei um tempo morando só com a minha irmã. Eu tinha uma facilidade maior pra me reorganizar quando alguma coisa saía do controle porque eram poucas variáveis. Em parte do tempo eu podia ficar sozinha, então eu eu poderia ter que me comunicar com as pessoas por mais tempo. Se alguma coisa fugisse do meu controle, talvez eu tivesse um pouco mais de tempo pra me organizar sem que eu tivesse outra demanda social naquele mesmo dia. Isso acaba sendo um balanço assim. E tem outra coisa que eu acho muito interessante que muitas vezes as pessoas acham que autonomia significa que a gente não precisa de suporte e isso não necessariamente é verdade, porque às vezes a gente consegue ter muita autonomia, mas a gente vai precisar em algum momento de suporte de alguém ou a gente pode ficar mal ou a gente pode não conseguir lidar com alguma situação. Tipo uma vez que eu fui numa rodoviária e a pessoa me emitiu um um bilhete que tava com o código errado. E aí em vez de eu estar com uma ida e uma volta, eu tava com duas voltas e nenhuma ida. E aí o ônibus não deixava eu embarcar e eu não soube lidar com essa situação. Eu fiquei paralisada, eu fiquei: “meu Deus, eu não sei fazer isso”. E aí nesse tipo de situação a gente fica: “meu Deus, eu não sei fazer nada, eu não consigo me virar sozinha, eu não consigo resolver as coisas sozinha”, mas tem muita coisa que eu consigo resolver sozinha. Essa em particular eu não consegui, eu precisei de ajuda. Talvez isso esteja muito relaxado com a ideia que as pessoas têm de como que a gente responde às terapias e aos tratamentos, porque parece que quanto mais tirarem o autismo de dentro da gente, mais autônomo a gente vai ser. Ou quanto menos autistas a gente for, mais autônomo a gente vai ser. E quando a gente demonstra que a gente ainda é autista, as pessoas ficam tipo “sei lá”. Parece que invalida tudo que a gente conquista, sabe? E eu acho que eu acabo trazendo isso pra mim mesmo, sabe? Às vezes eu me assusto porque eu percebo que eu ainda sou autista. É meio polêmico e meio bizarro falar sobre isso, mas às vezes eu fico tão feliz de conseguir fazer alguma coisa. Tipo quando falo em público e aí eu fico: “nossa, eu estou muito feliz que eu consegui fazer isso”. E aí de repente vem uma crise por uma coisa totalmente besta, inesperada que eu nunca tinha pensado que poderia acontecer. E aí eu fico super mal e aí parece que é o mundo me lembrando que ainda existem barreiras pra ser do jeito que eu sou. É bizarro isso.
Tiago: Eu me identifico com isso que você disse agora Carol, mas no meu caso é porque também tem um pouco de drama. Eu poderia dizer que eu sou meio dramático em situações como essa, principalmente depois que eu comecei a morar sozinho e principalmente ao conviver bastante com o Willian, que faz parte também do podcast, eu tive muitos momentos assim que eu pensei: “poxa, eu não tô preparado pra vida toda, não tô preparado pra vida adulta” e o Willian: “Para. Pera aí, vamos racionalizar aí”. Aí ele começa a enumerar a quantidade de coisas que eu consigo fazer e como eu estou me organizando pra falar: “você está preparado pra vida adulta sim”. Aí eu começo a lembrar, porque nessas horas a gente talvez tende totalmente ao negativo. Aí ele vai me lembrando: “olha, você cozinha no almoço, na janta, coisa que poucas pessoas conseguem fazer e manter um ritmo sobre isso, tu paga suas contas, tu consegue personalizar o horário do trabalho e cumprir todas as demandas do trabalho”. Aí tem um pouco a ver também no meu caso individual com algo que a própria Thais falou lá no episódio 94, de autocrítica, que é no sentido de se cobrar demais. Eu acho que essa busca pela autonomia e pelo desenvolvimento pleno em em atividades, como a gente tá falando aqui em alguns assuntos, tem muito a ver também com se cobrar. E isso é bastante complicado. Se você não tem o repertório e se você não tem outras questões que te garantem que você vai conseguir desempenhar isso, como por exemplo, renda, que eu acho que a gente vai acabar falando um pouco sobre isso, você na ausência dessas coisas que vão garantir com mais facilidade o seu desenvolvimento, você vai acabar se cobrando mais e isso vem frustração e isso é muito complicado pra autistas. E principalmente considerando que a gente tem uma rigidez sobre algumas coisas ou sobre a forma como a gente pensa, sobre alguns fenômenos que pode ser até perigoso pra nossa saúde mental.
Thaís: É isso tem a ver, inclusive, com o que eu tava falando de não ser absoluto o que significa autocuidado e autonomia. Então eu acho que é importante a gente ter em mente no que é que a gente quer ter a autonomia, quais são as coisas importantes? Que nem o que o Chimura citou pro Tiago: “ah, você cozinha, você paga suas contas”. Então esses são pontos importantes e eu sempre me lembro que a minha mãe usava o termo “você precisa fazer” pra muitas coisas que ela ia fazer. Então ela precisava limpar o telhado, ela precisava limpar a grama que estava solta, e às vezes eram algumas coisas em que eu não via tanto sentido assim. Eu não entendia porque ela precisava tanto fazer. Se ela tivesse extremamente cansada, ela ainda se forçava a fazer uma coisa que ela achava que precisava ser feita, que ela foi ensinada que precisava fazer. E pra mim é uma coisa que eu teria dificuldade de fazer com essas tarefas em que eu não vejo valor e que geralmente eu não faço. Mas eu consegui já fazer duas mudanças, hoje eu tenho um gato, eu cuido dele, eu lavo minha louça, faço minha comida ou então compro comida, dependendo, eu arrumo as coisas, limpo a casa, pra mim esses pontos são relevantes pra eu ter autonomia no meu dia a dia.
Carol: Pelo que a gente tá conversando parece que o problema não é nem a gente, o problema é só os outros, porque toda vez a gente consegue se virar sozinho, as pessoas vão e dizem “não, mas você não consegue fazer isso”. O Tiago depois que morou sozinho ficou mais de boa e tu consegue lidar com mudança e etc e tá de boa e aí as pessoas vão lá e dizem pra gente o que a gente não sabe fazer. Enfim, eu tô falando parecendo o Michael aqui, que o problema são os outros (risos). O problema dos autistas são os neurotípicos (risos).
Tiago: Inclusive, a gente fez um episódio sobre Atypical, saiu há pouco tempo a quarta temporada e a gente até discutiu lá no episódio, que ela tem muito a ver com isso também. E eu até queria até contar aqui um pouco mais profundamente, porque eu falei lá mas aqui é melhor de falar um pouco mais. Eu há muito tempo planejava morar em Porto Alegre. Se eu for contar aqui um pouco mais detalhadamente, em 2016 eu já estava pensando onde eu poderia fazer mestrado. Eu pensei primeiro em Florianópolis porque lá tinha um mestrado em Jornalismo na UFSC e aí eu tinha um professor que ele vinha de Santa Catarina. Até conversei com ele e aí ele falou assim: “não, Florianópolis não, pelo amor de Deus, Florianópolis não tem nada, só tem praia e isso só agrada turista. Que tal Porto Alegre? Porto Alegre é uma cidade mais cultural, tem uma vida mesmo, as coisas acontecem”. E aí aquilo acendeu assim um certo interesse, sabe? E aí acabou coincidindo que em 2017 eu recebi uma proposta de emprego de uma empresa de Porto Alegre a qual eu tô até hoje. Foi acho que a coincidência mais bizarra da minha vida. E aí essa vontade que antes era só uma curiosidade acabou se tornando concreta e eu consegui de fato morar sozinho em 2021. Mas entre esse primeiro momento de conseguir uma vaga de trabalho numa empresa da cidade em 2017, trabalhar remoto e mudar, eu lidei muito com a desconfiança das pessoas sobre isso, entendeu? Eu tinha essa leitura e eu não sei se é uma leitura equivocada, mas algumas pessoas falaram isso claramente pra mim. E eu lembro de uma vez que um conhecido meu chegou pra mim e falou assim: “eu acho que você vai ter muita dificuldade pra sair da casa dos seus pais, você passa essa impressão”. E aí quando ele me disse isso, eu só mentalizei: “ah é, eu passo essa impressão? Então beleza, então vamos ver”. E aí meses depois eu estava pegando um voo, indo pra um outro estado do qual eu já conhecia algumas vezes, mas não tinha parente e nada. Tô até hoje, tô muito bem, obrigado. Então eu percebo que talvez pela nossa forma de ser, pela nossa forma de interagir em sociedade, de talvez não conseguir ter independência dentro dos espaços que a gente tá inserido pra fazer certas coisas, as pessoas presumem essa incompetência. Assim como teve lá na série, na temporada, eu fiquei pensando muito nisso e lembrando das vozes ou das pessoas que agiam de uma forma desconfiada: “ah, mas como é que você vai se manter? Ah, mas você vai dar conta de fazer isso? Ah, porque tu não é muito sociável”, etc. E aí eu ficava pensando: “ah, beleza. Então eu vou conseguir e vou mostrar que é o contrário”, mas ao mesmo tempo eu ficava muito cético. E fiquei tão cético, tão cético em relação a isso, que eu só comecei realmente a acreditar de que eu realmente dava conta de todo esse contexto quando tive uma validação externa, que no caso foi do Willian, quando ele disse: “olha, o seu senso de autocuidado é acima da média”. E isso com umas três semanas que eu estava em Porto Alegre ele me fez essa observação. E aí eu nunca mais esqueci disso e desde então moro há meses aqui, não deixo de cozinhar um dia sequer, limpo todas as coisas, consigo dar conta de todas as demandas, não deixei a peteca cair do trabalho. O mês de abril, para quem acompanha a comunidade do autismo, sabe a quantidade de eventos, palestras e eu consegui sobreviver ao mês de abril. Só que aí tem uma outra discussão também que é sobre recursos, posição social, que a gente também pode falar, mas eu já tô monopolizando as conversas, vou deixar vocês falarem também.
Carol: Quando a gente fala de autismo não quer dizer que todos os autistas sejam iguais ou que tenham as mesmas condições de um modo geral assim. Como a gente pode ver aqui, a gente mesmo concordando em alguns pontos a gente diverge em outros e eu acho que é muito importante a gente trazer para a discussão de autonomia questões de classe, de raça e de gênero. Porque assim como esses parâmetros envolvem diretamente o que se espera socialmente desses indivíduos, ou seja, como que esses indivíduos são lidos socialmente, como as pessoas encaram esses indivíduos. E como a gente já demonstrou aqui por a gente ser autista, as pessoas agem de certos modos, mas autismo não é a única variável. Então a ideia de autonomia de algumas pessoas que têm uma pressão social maior para conseguir trabalhar porque elas precisam trabalhar para se manter desde muito cedo ou porque não tem tanto acesso por questões financeiras a tratamentos ou terapias que viabilizem esse ganho de autonomia, essa pessoa ela vai tropeçar muito mais na vida pra conseguir isso do que alguém que teve todo o suporte pra ganhar essa autonomia. Então é muito complicado a gente esperar das pessoas certas histórias de superação. E eu não tô falando só sobre superação em relação à deficiência, mas existe muito aquele discurso da pessoa que era muito pobre, trabalhou muito e conseguiu vencer na vida e a gente nunca coloca em perspectiva as condições que a pessoa teve pra chegar nesse lugar e que muitas vezes isso é uma exceção e não uma regra. Então, por exemplo, quando a gente fala de mulheres, é como se existisse uma cobrança social muito maior ou desde muito mais cedo para que a gente tenha um nível de autocuidado muito maior do que pessoas da mesma idade que são homens. Então desde muito cedo a gente ouve essas coisas de que a gente é uma mocinha, então a gente tem que aprender a cuidar das coisas. Se a gente é uma mulher, é uma menina que desde cedo é cobrada de ter uma performance equivalente as meninas da idade dela e ela não consegue cumprir isso que se espera dela, a cobrança sobre ela vai ser muito maior, falando no ponto de vista de uma menina que é autista e que as pessoas cobram certas posturas que ela não consegue desempenhar e que muitas vezes os pares masculinos não tem essa cobrança desde cedo quanto as mulheres. Então ao mesmo tempo que isso pode promover uma autonomia mesmo que forçada desde mais cedo, ela pode vir com um prejuízo muito mais acentuado.
Thaís: E conforme a Carol falou, eu também senti isso ao longo da minha vida, principalmente quando eu era mais jovem de “você uma mocinha”, então você precisa aprender tais coisas, você precisa fazer tais coisas e uma coisa que eu sempre tive muita dificuldade é aprender olhando. A minha mãe esperava, por exemplo, que eu aprendesse a cozinhar determinadas coisas observando enquanto ela cozinhava. E pra mim se alguém não explicar porque que uma coisa tá sendo feita, porque se eu não tiver esse conhecimento um pouco mais estruturado ou se eu não for pesquisar depois, eu não vou aprender aquilo. Então não importa quantas vezes eu tenha visto minha mãe fazer determinadas coisas, eu não aprendi aquilo porque eu não aprendo desse jeito. Então, além de tudo, eu acho que tem a questão de formas diferentes de aprendizado também que podem acabar influenciando no que é que a gente vai saber fazer depois pra nós mesmos no nosso dia a dia. E além dessa parte de aprender olhando, eu acho que também acontecia muito comigo, pelo menos eu tinha a percepção de que era num volume excessivo, as pessoas esperarem que eu auxiliasse algumas coisas da casa que eu não percebia e que precisavam da minha ajuda, que não tinham me pedido ajuda. Na época, não tinha uma proatividade pra perguntar se precisavam ali, eu não percebia o que estava acontecendo muito bem e isso também influenciava em acharem que nem falaram do Tiago, em acharem que eu não teria capacidade de me cuidar sozinha depois. Então várias pessoas que conviveram comigo ao longo de grande parte da minha vida também demonstraram surpresa quando eu passei a morar sozinha, que não esperavam que eu fosse conseguir morar sozinha de fato, o que pra mim era muito estranho porque eu não achava que eu estava deixando de fazer algo relevante. Então tinha essa diferença de julgamento também entre o que eu entendia que deveria ser feito ou como deveria ser feito e a forma como as outras pessoas entendiam isso.
Tiago: Inclusive isso que você disse, Thaís, me faz transportar para uma outra questão que eu relaciono muito com a equipe do podcast. Quem já ouviu o Introvertendo há mais tempo sabe que o Introvertendo surgiu de um grupo terapêutico da universidade. Lá a gente conheceu vários autistas, alguns fizeram parte da formação que criou o podcast, outros não, e nós tínhamos pessoas com diferentes demandas, com diferentes dificuldades, com diferentes características e foi ali que eu comecei a perceber ou a entender o autismo de um ponto de vista mais externo do que apenas interno. E eu acho que isso é muito importante, entender aquilo que você tem que encaixa com autismo, aquilo que não se encaixa, o que as pessoas têm de comum. Enfim, aonde que eu tô querendo chegar? Eu conheci vários autistas que, do ponto de vista da convivência, eu sabia que eles tinham aquilo que a gente poderia chamar de potencial, tinham habilidades muito boas pra algumas coisas. E tinha uma coisa terrível que era muito evidente de que marcaria a vida daquela pessoa negativamente para sua autonomia, que é falta de dinheiro. Quando as condições financeiras familiares eram claríssimo entrave pra que essa pessoa conseguisse se desenvolver ou, por exemplo, morar só. E isso era muito triste. E aí a gente não tá falando de uma família que tem uma renda muito grande porque a gente sabe que o Brasil é um país desigual e um país que de forma geral é bastante pobre, mas eu tô falando de falta de recurso suficiente para que você consiga se alimentar na universidade. Eu conheci alguns casos assim. Então, ao longo desses anos, vi pela estrada não só nesse contexto da universidade, como também na comunidade do autismo em geral, muito essa cena se repetir. E aí é muito complicado porque você tem esse nível dos autistas que não vão conseguir desenvolver mais autonomia por causa de questões socioeconômicas, por questões de classe e raça, como a própria Carol citou, e tem aqueles que vão conseguir às vezes minimamente, por exemplo, morar sozinho como é o caso da Thaís e o meu. Mas por exemplo eu, morando sozinho, conduzindo as coisas bem, sinto uma ausência do ponto de vista financeiro de ter acesso a certos serviços que são caros. Você ter o acompanhamento de um profissional… e aí não falo nem de um profissional qualquer, porque profissional qualquer já é caro. Eu falo profissional bom, aquele que sabe do que tá fazendo, aquele que entende de autismo na vida adulta, aquele que estuda, aquele que tá acompanhando as coisas, que vai perceber os aspectos finos, é muito difícil de encontrar. Então a gente tá trabalhando em um cenário de que a gente tem habilidades próprias para se desenvolver, a gente tem um ambiente que muitas vezes não está adaptado, a gente tem uma ausência muitas vezes de recursos financeiros para isso e a gente vive num mundo que não espera, que a gente é cobrado todos os dias, então isso é realmente muito muito complicado e eu só quero tocar nesse assunto porque é uma questão que me chateia bastante, é uma questão até pessoal. Aqui no Introvertendo a gente fala da nossa vida pessoal (pelo menos no meu caso) apesar de não gostar de fazer isso, pra deleite de vocês, mas como um ponto de reflexão mesmo. E eu imagino que muitos dos que nos ouvem talvez estão nesse ponto. Eu acho que é a parte mais triste da discussão, sabe? É o autista que tem o repertório, é o autista que só precisa do contexto para se desenvolver, mas não vai conseguir ou dificilmente vai conseguir por causa de entraves do ambiente que vive, da renda familiar e isso é potencial desperdiçado.
Carol: E sobre isso eu acho que é importante ser explícita que tipo as pessoas que são pobres e que não são brancas e que são mulheres ou não são homens sabe, pra ser direta, elas vão ter muito menos oportunidade de usar esses talentos, esses possíveis talentos, esse potencial que ela tem, por mais que mesmo diante de situações totalmente adversas ela consiga ainda dar conta de si mesma ou ela consiga ainda pelo menos ter uma estrutura interna pra pra conseguir se manter frente a isso. É como se a sociedade que não tem lugar pra ela ou que mesmo diante de tudo isso. Além dela ser autista, ela é pobre, ela não é branca e ela é mulher, sabe? Parece que vai diminuindo mais ainda as chances dessa pessoa conseguir ter uma autonomia porque a sociedade tá dizendo que o formato de ser humano que ela é, é indesejável. E não é esse tipo de formato que a sociedade estimula que exista, por mais que a gente tenha falado no começo, tentando contextualizar como funciona esse caminho do nosso desenvolvimento até chegar a nossa autonomia. Eu acho que é muito importante colocar isso em perspectiva. Por mais que a gente chegasse e dissesse uma história que a gente tinha muita dificuldade na infância e a gente consegue lidar minimamente com certas coisas, existem diversos fatores além do autismo que contribuem pra gente conseguir ou não conseguir isso, sabe?
Thaís: E complementando essa parte de diferença de recursos que cada pessoa tem, e falando recursos de forma geral mesmo e não apenas dinheiro, mas os recursos são uma ferramenta pra gente melhorar tanto o nosso desenvolvimento quanto o nosso dia a dia. Então eu percebo claramente que quando eu entrei na vida adulta, comecei a trabalhar, eu já tinha um suporte da minha família, eu comecei ganhando muito pouco, mas eu sabia que se as coisas dessem muito errado, se a minha mudança pra Floripa desse errado, meu novo emprego fosse terrível, eu teria pra onde voltar. Então, eu teria algum amparo. E aí, a partir disso, eu pude arriscar algumas coisas, então arriscar mudar de cidade pra ir pro emprego que eu não conhecia, etc. No final deu certo, mas se eu não tivesse tomado esse risco eu provavelmente estaria em condições muito piores hoje. Então, conseguindo isso, depois eu consegui me desenvolver nesse emprego, eu consegui ganhar mais, aumentando o meu salário, sendo promovida e isso foi me dando cada vez mais possibilidades, abrindo mais opções do que eu podia fazer pra tornar minha vida melhor. Então com o tempo eu deixei de usar ônibus, por exemplo, que era algo que pra mim era terrível. Eu passei a usar Uber que era muito mais caro pra mim, mas isso faz muita diferença no dia a dia. Eu deixei de morar em um quitinete pequeno, cheio de pessoas em volta. Eu passei a morar em uma casa com quintal grande onde eu podia ter um gato e onde não tem ninguém perto de mim. Eu não ouço ninguém me incomodando ao longo do dia. E cada uma dessas coisas são hoje para eu perceber que eu tenho um dia a dia muito melhor do que antigamente. São coisas que não é mesquinharia, não é a gente tentar falar sobre aspectos meramente físicos e atribuir ao dinheiro mais valor do que ele realmente tem, é que realmente são ferramentas que a gente consegue usar pra melhorar o nosso dia a dia e isso influencia diretamente na nossa autonomia também, pessoal. Essa foi nossa discussão sobre autonomia e autocuidado. Espero que tenham gostado do episódio e até mais.