Depois de quatro temporadas de sucesso, Atypical chegou ao fim sendo uma das séries de autismo mais importantes da história. Por isso, nossos podcasters fazem uma avaliação geral da produção, especialmente das duas temporadas mais recentes, incluindo representação do autismo, relações sociais, sexualidade e até discussões sobre cripface e construção de roteiro. Participam: Carol Cardoso, Paulo Alarcón, Thaís Mösken e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Thaís: Um olá pra você que é ouvinte do Introvertendo, este podcast feito por autistas pra toda a comunidade. O meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, tenho 30 anos, fui diagnosticada em 2018 e hoje eu vou ser host desse episódio em que a gente vai falar novamente sobre Atypical.
Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, também diagnosticado com autismo e eu não fui pra Antártida mas eu já fui muito longe também nessa caminhada da vida.
Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho vinte e quatro anos e também sou autista.
Paulo: Oi pessoal, sou Paulo Alarcón, tenho 30 anos, fui diagnosticado em 2018, nesse ponto eu posso me considerar um pouco privilegiado porque perto da casa dos meus pais existe um aquário com pinguins onde você pode alimentar os pinguins.
Thaís: O Introvertendo é um podcast feito por autistas com a produção da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Thaís: Bom, vamos começar a falar sobre Atypical. Só pra lembrar para quem estiver nos ouvindo, Atypical é uma série que passa na Netflix e esse episódio vai conter muitos spoilers. Já gravamos um episódio sobre Atypical, sobre até a segunda temporada e esse daqui a gente vai tratar principalmente a terceira e quarta temporadas. E se você não quer ouvir spoilers é melhor você pausar agora porque senão a gente não se responsabiliza mais sobre isso. Vamos começar falando sobre um tema que não aparecia aí nos primeiros episódios, na primeira temporada inteira, na verdade, e que é muito relevante especialmente nas temporadas 3 e 4, que é o relacionamento da Casey com a Izzie.
Carol: Quero comentar que essa foi uma jogada muito inteligente porque quando a gente é LGBTQIA+ e coisas do tipo, a gente caça obras que retratam as nossas vivências e é sempre muito difícil de encontrar. No passado já foi mais, mas agora é bem bem mais fácil, mas ainda assim a gente fica caçando e sempre que a gente vê que existe um relacionamento lésbico e tal, a gente vai atrás de saber que é sabe se é legal e etc. Então eu acho que isso pode ter trazido pra série pessoas que não tem nada a ver com autismo, que não sabem sobre autismo simplesmente por causa desse relacionamento. Existem grupos pela internet que são de ship, então por exemplo se tem algum casal numa série e aí tem uma página falando só sobre esse casal. Então isso pode ter feito as pessoas irem atrás da série. E pra ser sincera, eu acho que a coisa que eu mais gosto dessa série é justamente esse relacionamento. Tanto que quando eu fui receber meu diagnóstico, a minha psicóloga perguntou se eu conhecia essa série pra introduzir o assunto comigo. E ela perguntou se eu me identificava e eu falei que eu me identificava mais com a irmã dele do que com ele e isso eu achei muito interessante. Então, pra ver que mesmo sendo uma série sobre o transtorno que eu tenho, eu acho que a coisa que que eu achei mais legal assim, não mais legal, mas uma coisa que eu gostei mais da série foi foi esse relacionamento delas.
Tiago: Eu acho que isso foi uma estratégia muito acertada da roteirista e da criadora da série no sentido de que as séries hoje, principalmente em serviços de como Netflix, Amazon Prime, Apple TV e etc, quando elas tem uma temática mais jovem, elas precisam apelar muito pra cenas sexuais e Atypical não tem isso. Atypical é uma série sobre um jovem autista e é uma coisa mais family friend e tal. Então a única forma talvez deles fazerem a série sem sexo explícito ou coisas do tipo seria ter um casal assim. E eu percebo na internet, pelo menos em redes sociais como Twitter, que o relacionamento acaba chamando mais a atenção das pessoas na discussão sobre a série do que o personagem do Sam e isso era um negócio impensável quando a gente gravou o episódio lá em 2019, quando só tinha só a segunda temporada. E eu vi uma virada disso. Quando as pessoas falam sobre Atypical, elas não falam mais sobre autismo e eu acho isso muito engraçado. Eu acho que isso incorpora até uma discussão que eu vi algumas pessoas falando de que as séries que trazem personagens autistas não necessariamente precisam ter o autismo como o único assunto. O autismo pode estar dissolvido dentro da narrativa com outras questões.
Paulo: Porque o autismo ele acaba não sendo tema principal na vida mesmo de uma pessoa autista né? Você ainda tem que conviver com sua carreira, com sua família e inclusive eu acho que na quarta temporada da série a Casey praticamente virou a protagonista, apesar do Sam aparecer lá, parece que ela aparece por muito mais tempo em em vários episódios.
Thaís: Eu concordo que o autismo em si é só uma parte da nossa personalidade. Tanto que nós todos somos muito diferentes porque a gente é composto muitos aspectos diferentes da nossa vida, é bem mais do que só o autismo. E eu gostei bastante que trataram desse relacionamento da Casey com bastante naturalidade mesmo na hora que ela foi falar com a família, ela teve aquela tensão, mas a família foi o melhor possível, acolher o que ela sentia e tudo mais, teve aquela dificuldade com o pai dela, com quem ela era mais próxima, etc, mas eu devo admitir que eu sou a pessoa que não curte muito ficar shippando relacionamento. Mas uma coisa que eu curti bastante da dessa parte foi especificamente quando ela foi lá no grupo da escola. Eu não lembro se era um grupo só de gênero, esqueci o nome dele, mas que ela não se identifica com o grupo. Ela tem pra ela qual que é a identidade dela, ela sabe do que que ela gosta, mas ela não necessariamente se identifica com aquele grupo. E é uma coisa que eu já senti muito em vários momentos da minha vida que eu tenho um aspecto parecido com outras pessoas e às vezes eu não me identifico com aquele grupo específico, em estar ali em uma reunião, por exemplo, de pessoas que tem aquele interesse, nem sempre esse é um tipo de coisa fácil. Então, eu gostei de ser retratado que pra Izzie aquilo fez muito sentido, enquanto pra ela não, mesmo que elas tivessem uma característica em comum, elas também tinham várias diferenças. Achei isso legal.
Carol: E foi inclusive um incômodo meu é que as pessoas não conversam abertamente sobre as coisas. Elas ficam escondendo até que isso venha à tona e gera um conflito. E aí eu sempre ficava: “as pessoas deveriam ter conversado antes”, sabe? E isso me irrita muito, sabe? Eu acho que isso é uma coisa que me desgasta muito na vida real. Quando eu vejo isso retratado, me acho que é mais ainda, eu acho talvez. Porque, por exemplo, tu fala em relacionamento e uma coisa que sempre me fez pensar nessa série foi o relacionamento do Sam com Paige. Porque parecia uma coisa muito unilateral. A impressão que eu tenho é que a Paige acaba não sendo muito clara sobre os sentimentos dela, sobre como que ela se sente em relação às coisas e ela fica frustrada e parece que o Sam também não não entende muito bem. E eu não sei se é essa a minha percepção como autista porque pra mim as pessoas deveriam ser muito mais claras em relação às emoções delas do que elas são.
Tiago: Sobre o caso da Paige, isso é interessante porque eu já conversei sobre isso com algumas pessoas, mas a impressão que eu tenho é que a personagem desde a primeira temporada até a última, a relação dela com o Sam é totalmente estilizada. Eu não consigo ver aquilo funcionando na vida real. E é construída pra criar humor. Ao mesmo tempo, me sugeriram e eu achei a linha de raciocínio muito boa de que a personagem dela é a personagem “normal” sendo ridicularizada no sentido de que ao contrário da vida social social em que nós somos os diferentes, na narrativa da série ela seria a diferente por ser “normal”. Só que ao mesmo tempo a história dos dois é um negócio às vezes tão absurdo. As investidas sexuais que ela tem com ele na última temporada eu fiquei assim: “meu Deus do céu”. Tem uma cena ali que o Sam quase vira um furry (risos). Meu Deus do céu, como é que eles chegaram nesse ponto da narrativa?
Paulo: (Risos)
Carol: O que é furry?
Tiago: Furry são pessoas que interpretam animais em situações sexuais, transam vestidos de animais, disfarçados de animais (risos).
Carol: Mano, essa cena… Essa cena foi horrível. Eu fiquei tipo: “mano, por que que ela não falou pra ele que ela tava afim?”.
Thaís: É que ela falou… (risos)
Carol: Não, mas gente, é sério. Eu achei isso um absurdo eeu acho que eu não entendo muito bem o tom de humor dessa série. Eu acho que às vezes tem coisas que são sérias e às vezes tem coisas que são humor. Por exemplo, quando o amigo do do pai do Sam morreu, eles fazem piada! A gente não tem que levar muito a sério, mas às vezes acontece coisas sérias e aí eu fico, “ué, vocês querem que leve a sério ou não?” (risos).
Paulo: Nessa questão do relacionamento da Paige foi bem mostrado lá na primeira temporada. Porque foram coisas também que já aconteceram até comigo de que a garota ter que ser mais clara pra mostrar que gosta. Isso aconteceu entre eu e a Bela, mas com o passar da série que esse relacionamento não evoluiu. Foi um relacionamento mais de companheirismo. Parece que o Sam sempre ficou o tempo todo alheio a Paige.
Carol: O que me incomodou mais pensando no ponto de vista do autismo é que pode dar a impressão pras pessoas que os autistas são alheios aos sentimentos dos outros, sabe? É verossímil que ele não entenda sempre porque isso pode realmente acontecer, isso acontece bastante, mas eu acho que a série poderia conduzir de um jeito que ele participasse mais e se preocupasse mais com os sentimentos dela, e que pelo menos tivesse esse ponto de conflito. Porque parecia muito que ele não entendia nada dos sentimentos dela e ela ficava frustrada e aí ela ela tinha que compensar isso de alguma forma e aí a gente chega naquela cena.
Thaís: Além desses pontos, eu também me senti incomodada quando a Paige tava fazendo aquelas tarefas aleatórias que a Casey pediu. Então, a Casey começou a dar várias tarefas pra ela, pra ela provar que não era igual a Gretchen, que era aquela mina que ficou com o Zahid. E a Paige ficou se submetendo aquilo por algum tempo e isso me incomodou. E eu achei que depois ela falou uma coisa que é muito verdade. Apesar da Paige geralmente estar em cenas em que ela comete vários erros, faz várias bobagens, mas ela fala sobre parar pra entender os seus próprios erros, que é uma coisa que a Casey não estava fazendo, ela tava só descontando nos outros e que é uma coisa que a própria Paige tenta fazer. Então, eu achei assim um ponto importante também, ache valia mencionar. E eu acho que a série tentou se retratar em relação a não mostrar o Sam retribuindo o sentimento da Paige com aquela cena bem no final em que eles jantam e ele faz vários elogios a ela, mas realmente acho que foi uma falha a série não mostrar no mínimo o Sam tentando racionalizar sobre os sentimentos da Paige, nem que fosse ele sentando e conversando com ela, tentando entender o que ela sente, às vezes retribuindo de uma forma um pouco diferente, de uma forma que talvez pra algumas pessoas soe esquisita e eu acho que esse tipo de coisa é mais comum no pelo menos entre os autistas que eu conheço do que simplesmente a pessoa ignorar tudo. Mas é claro que isso depende da pessoa.
Tiago: É, eu acho que tem muita coisa na história de Atypical que eles foram corrigindo ao longo das temporadas conforme o feedback do público ou da própria comunidade do autismo. Uma coisa que eu critiquei muito na primeira temporada foi aquele arco horroroso da mãe. Ela cuidou do filho a vida inteira, aí o pai volta, vira o herói e aí arruma aquela história lá da traição que pra mim foi extremamente forçada pra transformar ela como uma vilã por um tempinho e depois ter a reconciliação. Aquilo pra mim foi tosco, mas depois também a personagem da Elsa foi melhor trabalhada na minha impressão. Ao mesmo tempo, também teve aquela questão da expansão do casting pra alguns atores autistas que deram uma percepção mais geral, mais coletiva sobre o autismo e eles tiveram um papel muito importante nessa quarta temporada até pra dar sugestões ali pro Sam de como desenvolver autonomia. Ao mesmo tempo, tem algumas coisas que a série apresentou que seriam entre problemáticas ao longo dessas quatro temporadas e que ficaram meio em aberto. Eu acho que uma cena muito interessante que provocou muito debate na comunidade do autismo, não só lá fora quanto aqui, foi aquela cena do Sam tendo meio que uma crise na rua e ele sendo abordado por um policial. E ele foi simplesmente levado preso sendo que na vida real um autista naquela naquele contexto poderia ter levado um tiro como já aconteceu no exterior. Tem uma discussão também sobre raça também, alguns autistas negros falariam que a violência policial seria maior nesse contexto, e foi uma coisa meio fora da realidade. E aí isso me faz pensar em uma questão que eu vi em algumas críticas de que Atypical é essa coisa limpinha, sabe? Às vezes é uma série fofinha, é uma uma série divertida, mas ao mesmo tempo ela não aprofunda tantos problemas que a gente tem em sociedade e em relação a comunidade do autismo, sabe? É aquela família tem os seus dramas, mas ao mesmo tempo é super compreensiva e a gente sabe que pra muitos autistas adultos não há essa compreensão, as famílias não são tão bem estruturadas nesse sentido. Em Atypical tudo acaba bem, sabe? Não tem nada que dê totalmente errado (risos). Eu acho isso muito engraçado, funciona no formato da mas tem esse problema, essa falta de conexão com a realidade em alguns aspectos. E eu acho que isso acaba traduzindo muito bem nisso que a gente tá falando do relacionamento entre o entre o Sam e a Paige que pra mim é um negócio assim que não duraria uma semana aquilo ali na vida real.
Paulo: Essas questões ao mesmo tempo que parece que os problemas se resolvem facilmente, magicamente, tem problemas que prosseguem por toda a história e não são devidamente resolvidos também, são problemas que não causam maiores consequências.
Carol: Eu acho que é bom a gente ter isso em perspectiva. Porque essa é a proposta sério eu acho que ela mesma não não nos propõe a aprofundar muita coisa mas é é bom a gente mencionar isso justamente pra dizer que a vida real não é assim e a gente como autista pode dizer que não é e muitas vezes eu me peguei pensando porque realmente eu fumia tema é muito compreensiva, eles fazem muita coisa por ele e enfim, outras situações mesmo até em relação à sexualidade da Casey e tal e o apoio na carreira profissional dela e do Sam sobre, por exemplo, ter tido a oportunidade de viajar pra onde ele queria viajar, sabe? Eu acho que realmente na realidade talvez não seria muito verdade, mas assim, parece que a gente só tá falando mal da série. Então, eu queria falar de uma coisa que eu acho que é muito legal da série, eu acho que essa essa coisa me trouxe um fechamento bem legal da série pra mim, eu acho que eu fiquei com uma impressão muito boa da série por causa disso, que foi a relação dele com a faculdade. Porque eu acho que ela foi realista no sentido de mostrar as dificuldades de uma forma que elas acontecem realmente, então esse lance de que os autistas, boa parte não conseguem terminar a faculdade e isso é bem real. Pelo menos no meu caso, por exemplo, não que eu não tenha terminado, mas é que eu demorei muito e eu acho que é muito legal mostrar essa contraposição entre o hiperfoco e a carreira acadêmica, porque ele escolheu aquela faculdade com base nas coisas que ele era bom e que ele tinha um grande interesse. Então foi um lugar pra onde ele foi pra reunir os interesses dele e que mesmo assim ele teve bastante dificuldade, tanto que ele percebeu que a carreira acadêmica dele estava atrapalhando ele de continuar no hiperfoco dele, tanto que ele queria largar a faculdade, sabe? Então, eu acho que é muito interessante porque geralmente nas séries por aí que retratam autistas e principalmente seus hiperfocos, é como se a pessoa tivesse hiperfoco e ela fosse muito boa nisso e ela tivesse uma carreira profissional exemplar dentro desse hiperfoco dela.
Tiago: Alô Good Doctor! (risos)
Carol: É, eu tô eu tô pensando nisso (risos).
Paulo: Nessa parte é muito legal na série mostrar ele falhando e um monte de coisas que não eram fora do hiperfoco dele.
Carol: Eu acho que as pessoas às vezes não entendem muito bem o que significa isso, porque parece que a gente simplesmente não quer fazer as coisas que não estão no nosso interesse, mas na verdade não é, não é só o que a gente não quer porque as vezes é muito muito difícil. É um esforço gigante pra gente fazer uma coisa que a gente não entende ou que a gente não tá interessado em fazer, sabe? Parece até que a gente é meio mimado. Mas a série mostrar como é essa dificuldade acho que foi muito legal, foi uma decisão muito acertada das pessoas que escreveram a série.
Paulo: Aquele momento que a professora que viria a se tornar orientadora do Sam depois pede pra ele fazer as entrevistas e ele não consegue falar com as pessoas, não consegue entrar em contato com pessoas diferentes e vai em todo mundo do círculo de amizades dele. Isso é o tipo de coisa por exemplo que eu faria. Muito complicado e até um problema que é recorrente na minha carreira profissional às vezes. “Fala com fulano”. Nossa, é um esforço insano.
Thaís: O que eu gostei dessa parte também foi mostrar que não era porque ele tava tendo essa dificuldade que ele não sabia ou não queria fazer uma coisa que significava que ele tava sendo preguiçoso. Porque realmente uma tarefa que ele não conseguiu executar e em troca daquilo ele executou uma tarefa provavelmente para outras pessoas que pareceria muito maior, que foi pegar todos aqueles questionários e digitalizar, digamos assim. E pra mim isso também já aconteceu no meu trabalho de uma tarefa de atendimento a outras pessoas eu ter quase surtado e ter realmente falado pro meu chefe que eu sairia da empresa se eu tivesse que executar aquilo, então parecia que eu tava sendo mimada de: “meu, não quero fazer tarefa chata” e aí ele tudo bem em troca eu precisaria ajudar automatizar as tarefas que as outras pessoas fariam no meu lugar desse atendimento e eu fiquei muito feliz com isso. Então eu automatizei para que elas tivessem menos aquela tarefa e era o que eu queria. Eu não teria problema em passar muito tempo em colocar muito esforço, mas em desde que assim uma tarefa que fosse condizente com o que eu faço, com o que eu sei fazer e isso ficou muito claro ali e agora comentando outro ponto do Sam e ainda puxando o assunto que vocês já tinham comentado da família ser compreensiva, uma coisa que pra mim faltou um pouco, mas eu acho que é condizente com a realidade era nos momentos em que o Sam agia de forma muito mal educada. Ele não era não só repreendido no sentido agressivo, violento. Mas eu tinha pelo menos do que eu me lembro, em nenhum momento a mãe dele chegou pra falar com ele como ela podia ficar chateada quando ele simplesmente gritava com ela ou quando ele falava alguma coisa. Então eu entendo que isso faça parte do aprendizado de uma pessoa autista. A gente pode não saber intuitivamente que uma coisa vai ser ruim, a gente pode às vezes não conseguir parar pra pensar antes de algo ser dito em determinados momentos, mas eu acho que é muito importante que esse tipo de coisa fique explícito. Eu acho que é muito importante que seja verbalizado qual é o problema de determinada ação. Pelo menos pra mim, pra que eu compreenda aquilo, eu preciso disso. E pra mim foi uma oportunidade que a série perdeu. Eles poderiam ter mostrado o aprendendo algumas coisas, melhorando em algumas coisas, simplesmente por as pessoas pararem algum tempo pra explicar de forma racional para ele o que estava acontecendo.
Paulo: Eu vi isso um pouco como uma bola dentro e uma bola fora, na verdade. O lado bom é ter quebrado um pouco da ideia de que autista é naturalmente bonzinho e não tem essas atitudes, mas sim realmente precisava ter a repreensão com a conversa explicando como é que é a forma correta de se portar.
Carol: Também fiquei pensando nisso aí que tu falou e tem uma coisa que me chama atenção que era uma estratégia que eles faziam uma série que tipo assim: ele tinha sido grosso ou tinha, enfim, tinha feito alguma coisa pra alguém que foi ruim, que não foi legal. E aí essa pessoa nunca falava pra ele. E aí depois de um tempo passava e aí ele magicamente se dava conta disso, tipo quando ele teve aquela briga na quarta temporada com o Zahid que foi quando o Zahid fala pra ele que ele teve uma alteração no exame que ele fez. E aí o Sam só escuta a parte que ele fala sobre a tartaruga lá. E tudo bem, essa parte dele ter escutado só a parte de tartaruga porque ele ficou muito em choque pode acontecer porque às vezes a gente fica assim quando a gente tem uma informação que é muito chocante pra gente ou causa uma quebra de expectativa muito grande. Inclusive a retratação disso na série foi muito verdadeira, porque quando eu me deparo com alguma informação que me desconcerta de alguma forma parece que tá tudo girando. Mas aí depois de um tempo ele lembra do que foi falado pra ele pelo Zahid e aí ele vai lá ele percebe sozinho que ele não foi legal. Só que tipo assim: é como se a série tivesse dizendo que ele tem capacidade de perceber essas coisas e ele vai perceber sozinho e aí ele mesmo vai lá fazer. Mas nem sempre é assim, às vezes a gente não tem habilidade para perceber o que foi que incomodou as pessoas.
Tiago: É um recurso narrativo meio preguiçoso, né? É um problema de roteiro isso aí (risos).
Carol: Sim e isso foi bem chato. Custava as pessoas dizerem: “e aí isso que tu falou não é legal por causa desse motivo”, sabe? É muito simples fazer isso, mas… ai, tô braba agora.
Paulo: Coisa que poderia ter sido feito na série, por exemplo, é uma terceira pessoa que soubesse do que aconteceu, avisar pra ele disso. Foi algo meio Deus ex machina ele simplesmente lembrar e…
Tiago: Eu só quero fazer uma “defesa” da série no sentido de que eu entendo que todas essas coisas que foram acontecendo na série, principalmente desde que ele entrou na universidade a série começa a trabalhar uma ideia que pra mim é uma ideia muito legal que é a ideia de autonomia. Quando a gente discute deficiência, principalmente autismo, e quando mães por exemplo tem o seu diagnóstico dos filhos uma pergunta muito comum entre elas é “o que vai ser do meu filho quando eu morrer?”. Quando a gente fala dessas mães a gente tá falando de mães que têm filhos que tem uma dependência muito grande e quando a gente fala sobre dependência leia-se autistas por exemplo que tem dificuldade de ir no banheiro sozinho. Então assim, não é o nosso caso aqui. Mas enfim, a série mesmo assim trabalha a temática da autonomia para adultos. Existe toda uma complexidade quando a gente pensa a questão da autonomia porque envolve também um pouco disso de você conseguir trabalhar por si mesmo coisas que talvez no contexto do autismo precisariam de uma segunda ou terceira pessoa, então tem toda a questão de morar sozinho ali que que é muito bem retratada na quarta temporada com humor da série. E uma coisa que eu acho muito legal e que eu não vejo as pessoas discutindo que é a falta de crença das pessoas nele. Isso é muito comum porque eu pelo menos tenho a impressão de que eu vejo muitos autistas com uma certa uma certa possibilidade de conseguir ter essa autonomia mas que falta confiança externa. Eu vivi isso, sabe? É claro eu não quis ir pra Antártida, eu acho que é um desafio exagerado que a série constrói mas que tem tudo a ver com o Sam e tudo que aquilo que ele é na série. Mas ver todo aquele comportamento de ceticismo ser quebrado pela perseverança e pelo interesse dele em realmente aprender e desenvolver, pra mim foi um negócio muito legal pra fazer a gente pensar sobre essa questão da autonomia, sabe? Porque isso é muito importante quando a gente fala sobre autismo na vida adulta e infelizmente é uma discussão que é mais nós os autistas que estamos tendo ou que são aqueles familiares que tem aquela preocupação. Mas a sociedade de uma forma geral não está muito interessada. Se espera que a gente desenvolva por si só ou não acredita, simplesmente presume incompetência.
Thaís: Queria perguntar pra vocês, pessoal, da parte vocês estavam comentando do Zahid. Na verdade o Sam um tempo depois lembrar do que o Zahid tinha dito pra ele sobre os exames estarem estranhos, pra mim é uma coisa muito real esse processamento posterior dos fatos. Então eu ouvi uma informação, focar muito em alguma coisa específica que nem a Carol falou, alguma coisa que me desconcerta, eu vou focar naquilo que me desconcertou e algum tempo depois talvez eu consiga processar o resto da informação e agir sobre aquilo e eu queria saber se isso acontece com vocês também.
Carol: Muito, é isso acontece comigo também. Só que nesse caso específico da série é mais no sentido de processar informação e ele saber exatamente o que ele fez de errado sendo que em outras ocasiões ele nunca sabe o que ele fez de errado e ninguém nem sinaliza pra ele e tal. Mas eu queria falar mesmo da amizade dele com porque no começo eu achava o Zahid meio sei lá porque ele só fazia piadas sexuais e eu não gosto muito deste estilo de humor ou quando a pessoa só sabe falar disso, acho meio chato. Mas depois de um tempo eu comecei a gostar muito assim da amizade deles, principalmente agora que eles começaram a morar juntos. Eu acho que uma coisa muito legal justamente porque em algum momento da série o Sam fala que uma das coisas mais legais da amizade deles é que não é um um cara autista e um cara neurotípico, são só dois amigos. Então eu acho isso super legal porque o Sam consegue se sentir muito à vontade com o Zahid e o Zahid também entende o jeito do Sam, sabe? O jeito do Sam não é um problema. Eu acho que é muito interessante isso porque em alguns momentos as pessoas enxergam só o autismo ou como se todas as nossas características fossem por causa do autismo, sabe? Às vezes é importante a pessoa entender isso, mas eu acho que a série faz isso muito bem, principalmente quando acontece aquela coisa do Sam ser preso, ele entende a situação e ele age conforme a situação, sabe? Então eu acho que o Zahid é uma pessoa que enxerga o por inteiro e isso é muito valioso de ser mostrado.
Tiago: E sobre o Zahid, eu concordo completamente. Inclusive eu não problematizo tanto o personagem do Zahid porque eu tenho um Zahid na minha vida que é exatamente esse tipo de relação, entendeu?
Thaís: E o Zahid faz uma coisa que justamente a gente tava criticando que aparece pouco na série. Mas o Zahid fala diretamente pro Sam quando eles tem aquele problema logo depois que eles foram morar juntos de o Sam começar a criar várias regras e aquilo não tá dando certo, o Zahid começa a ficar incomodado e ele realmente deixa isso claro pro Sam qual é o problema, ele procura uma forma de resolver aquilo em conjunto e isso eu acho muito importante pra mim, esse é um aprendizado bem grande. Bom pessoal, estamos quase encerrando, alguém tem alguns comentários finais, quer falar mais alguma coisa sobre a série?
Tiago: Eu tenho uma coisa que pra mim é muito importante e eu vou tentar ser muito rápido e muito sucinto que é o seguinte: Quando o atípico saiu, alguns autistas começaram a discutir uma coisa aqui que chama cripface, que é quando um ator sem deficiência interpreta um personagem com deficiência, seja no cinema, seja nas séries e etc e as pessoas problematizam isso. E assim, eu tenho uma opinião que é um pouco divergente da opinião corrente sobre essa discussão sobre cripface porque o seguinte. Eu concordo que existem menos oportunidades para pessoas com deficiência, isso inclui autistas, e segundo, quando a gente fala sobre um ator sem deficiência interpretando um personagem com deficiência a gente esquece também que um ator com deficiência por exemplo, um ator cego, que tem nanismo, dificilmente vai conseguir interpretar um personagem que esteja fora dessa questão da deficiência. Ele não consegue esconder a deficiência dele pra interpretar um papel. Tanto é que se a gente lembrar por exemplo do Peter Dinklage, que fez o Tyrion Lannister ali em Game of Thrones, todos os personagens que ele faz no cinema, ele interpretava personagens com nanismo e é engraçado que no cinema todo tipo de personagem com nanismo é ele que é o ator que interpreta. Mas no caso do autismo, a gente tem uma coisa que eu acho que é uma armadilha nessa discussão sobre o clipface e inclui Atypical que é o seguinte primeiro ponto: o problema de Atypical, o problema de Good Doctor, o problema de alguma dessas séries não é um problema de interpretação. Em Good Doctor, o Freddie Highmore carrega a série nas costas, o que torna Google Doctor bom é exatamente a interpretação dele, porque o roteiro tem vários problemas. Atypical também eu faço essa relação, sabe? Então eu vejo que muitas vezes a gente discute a questão de que “ah, é um ator sem deficiência interpretando personagem com deficiência” e a gente ignora que existe toda uma cadeia de produção no cinema, nas séries, que deveria incluir autistas. Pra mim é muito mais importante a gente discutir que séries sobre autismo tenham roteiristas autistas que pensem os personagens, a construção dos personagens do que simplesmente escalar atores autistas pra fazer personagens genéricos baseados no DSM-V, sabe? Então eu acho que a discussão sobre cripface é uma discussão interessante, é uma discussão que pode ser feita futuramente dentro da comunidade do autismo, mas que a gente tem que ter um pouco de cuidado em relação a isso, até considerando também que atores autistas conseguem interpretar personagens sem deficiência. Anthony Hopkings, vários atores aí fazendo personagens sem deficiência, o que é um pouco diferente de quando a gente fala sobre deficiências visíveis e deficiências invisíveis. Mas enfim, terminei aqui meu TEDTalk, eu só queria mesmo falar sobre esse tema polêmico (risos).
Carol: Tiago tá cheio das polêmicas.
Tiago: (Risos)
Carol: Queria só finalizar uma coisa que eu percebi e que me deixou muito feliz também da quarta temporada é que aos poucos a série foi ficando mais sutil um pouco em relação ao autismo e que talvez as pessoas que não são autistas ou não são da comunidade do autismo não percebam, mas por exemplo, quando Sam teve desconforto e ele foi ficar sozinho lá na a loja, ele foi ficar sozinho e aí ele permitiu que a irmã dele e o amigo dele fossem lá e ficassem com ele, sendo que no começo isso não seria possível pra ele porque ele precisava ficar sozinho, ele tinha crises muito mais fortes e isso foi uma construção bem legal, eu acho que isso é muito legal. E parece que as coisas foram se dissolvendo, como se as características do autismo fossem se dissolvendo na série…
Tiago: Ele tava saindo do espectro (risos).
Paulo: (Risos)
Carol: Ah não, pelo amor de Deus. Ai, agora eu não sei o que eu falo.
Tiago: Desculpa, eu estraguei, ignore o que eu falei, continua (risos).
Carol: (Risos). E eu achei que isso foi legal porque porque tira um pouco daquilo que a pessoa com autismo ela é só o autismo, sabe? E tem muito a ver com isso que tu falou dos dos personagens serem baseados no DSM. É uma contradição as séries se basearem só em manuais sendo que os manuais foram baseados em pessoas. Então, por que vocês não vão lá na lá nas pessoas pra entender um pouco melhor sobre como é isso, sabe? E tipo, as pessoas não entendem muito bem como que é isso e eu acho que com o tempo, no começo série era meio estereotipada, mas eu acho que ela encaminhou muito bem com o tempo essa questão. Então de um modo geral eu gosto dessa série, eu acho que foi uma série divertida, não é minha série preferida, mas é uma série que eu considero que foi muito importante pra comunidade do autismo, principalmente porque ela trouxe pessoas que não tem nada a ver com autismo, que se interessaram pelo tema, acharam uma série divertida, eu acho que ajuda muito a normalizar a nossa condição como uma coisa que acontece e que a gente pode muito bem se integrar na sociedade do nosso jeito e que a gente não é um bicho que tá lá distante e que ninguém sabe nada sobre. Eu acho que esse é o maior mérito da série e eu acho que ela acabou no momento que tinha que acabar e teve um fechamento bem legal até e foi isso. Acho que o saldo é positivo dessa série.