Introvertendo 181 – Experiências Inclusivas: Live Introvertendo + Andréa Werner

Em março de 2021, Andréa Werner foi convidada para receber Tiago Abreu e Willian Chimura, do Introvertendo, para uma roda de conversa sobre experiências inclusivas na comunidade do autismo. Os três abordaram o protagonismo autista nas discussões sobre autismo, conflitos e desconfianças, o uso da internet para disseminar informações sobre o autismo e o atual cenário de palestras sobre autismo no Brasil. Este episódio, que traz a maior parte do evento, fecha o primeiro semestre do Introvertendo em 2021. Retornaremos em agosto. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, e pra fechar esse ciclo do primeiro semestre de 2021 nós aqui do Introvertendo estamos lançando um conteúdo especial. Esse episódio de hoje é parte de uma palestra, uma roda de conversa, na verdade, que eu dei junto com o Willian Chimura e a Andréa Werner num simpósio de autismo da Universidade Federal de São João Del Rei, em Minas Gerais. Foi muito legal, a gente falou muito sobre ativismo, sobre a história do Introvertendo, sobre a nossa relação enquanto autistas, Andréa falou um pouco sobre o trabalho dela também e foi uma conversa tão legal, tão legal que eu decidi guardar o material junto com o Willian e a gente resolveu lançar agora. Esse evento está disponível pra ser assistido de forma completa no YouTube, o link tá na descrição ali do nosso site do Introvertendo, mas aqui você ouve as melhores partes, os melhores momentos, com uma edição, com áudio melhor, igualzinho da forma como a gente fez naquela palestra sobre autismo no ensino superior, que saiu no início deste ano de 2021. É isso, pessoal. Queria bastante agradecer a todo mundo que tem acompanhado o Introvertendo em 2021, nós vamos ter um mês de descanso, porque esse ano tem sido, realmente, muito tenso, muito complicado, mas a gente volta em agosto e com força total, espero eu, beleza, pessoal? Fiquem aí com o conteúdo dessa palestra. Falou.

Bloco geral de discussão

Andréa: É um prazer estar com vocês, eu já me sinto super à vontade com esses rapazes, o Willian eu não via um tempinho, mas o Tiago de vez em quando a gente tá se esbarrando por aí, né Tiago? Pelo menos todo dia no Twitter. Acho que já fui bem apresentada aqui, mas além de tudo, eu sou uma mulher neurodivergente, eu não sou autista, mas tenho Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade, só pelo barulhinho da minha cadeira mexendo aqui já dá pra perceber. E quando você conhece um autista, você começa a ver na família assim, você entende porque que tem um autista, né? Tem questões genéticas aí que depois a gente começa a entender (risos). Nunca a família é uma família de pessoas neurotípicas, né? Então, sou eu aqui uma também neurodivergente. Eu vou ler aqui da minha colinha, gente, do Tiago, porque os dois têm um currículo muito bacana, então, eu vou apresentar os dois, eles vão falar um oi, aí depois a gente vai começar, eles têm uma palavrinha muito bacana pra falar sobre protagonismo autista, sobre experiências inclusivas, podcast, canal do YouTube aí depois a gente vai pro bate-papo. O Tiago é jornalista, meu colega, pela Universidade Federal de Goiás, é técnico em informática para internet pelo Instituto Federal de Goiás, é escritor, também, meu colega escritor, lançou em 2019 o livro-reportagem, Histórias de Paratinga, é autista, é ativista, é integrante do Introvertendo, que é um podcast muito bacana que está sendo muito bem recomendado por aí. Que é um podcast no qual os artistas conversam com outros autistas, outros convidados sobre temas interessantes. Oi, Tiago, fala um oi aí pras pessoas, já tem muita gente aí nos comentários, que é o que eu vi.

Tiago: Olá, Andréa, eu já tô ficando vermelho (risos). É um prazer estar aqui conversando com você e com o Willian. Eu lembro que há quase dois anos a gente estava nessa formação na época da campanha do Fora MMS, conversando um pouco sobre essas essas questões próprias da comunidade. E é bom, assim, quase dois anos depois estarmos aqui todos juntos de novo.

Andréa: Muito bem, bem-vindo, Tiago. Willian Chimura é mestrando em informática para educação pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul, youtuber e programador, ele pesquisa como aplicativos e jogos podem contribuir para avaliação e aprendizagem de crianças com autismo. E ele recebeu o diagnóstico de síndrome de Asperger, que é o que a gente chama de autismo leve, hoje em dia, também integra a equipe do Introvertendo, tem um canal do YouTube, ele vai falar mais, mas enfim, bem-vindo, Willian.

Willian: Muito obrigado, Andréa. Prazer, aqui, como o Tiago falou, tá aqui com vocês, eu me sinto muito acolhido aqui, pra mim, parece que eu estou em casa, falando com vocês, realmente, tenho a sensação também. É muito legal a empolgação do pessoal, querendo falar sobre autismo, querendo entender mais sobre autismo. É um tema que tem sido do meu foco, desde que eu fui diagnosticado, também é do meu tema de pesquisa, mas é claro, acaba sendo algo que não tem como se falar sem considerar outros aspectos sociais. Afinal de contas, eu sou autista, vou continuar sendo até o final da vida, até onde eu eu até onde eu saiba, então eu imagino que tenho muita, muita coisa ainda pra vivenciar, muita coisa pra aprender e gostaria de compartilhar aqui com vocês algumas experiências junto com o Tiago, aqui, é mais focado hoje sobre o Introvertendo e também vou falar um pouco do meu canal. São algumas mídias que nós, autistas, estamos produzindo pela internet, nas redes sociais, sempre tentando de alguma maneira compartilhar essas experiências do autismo sob a vivência dos próprios autistas mesmo, né?

Andréa: Muito bem. Então, agora eu vou passar a palavra pro Tiago, pra ele falar um pouquinho. E já antecipo, assim, que isso, pra mim, é uma coisa incrível. Meu filho foi diagnosticado há 10 anos atrás, isso era uma coisa inexistente, não só esse bate-papo da gente virtual, como autistas com canais no YouTube, com podcasts, essa coisa toda é muito bacana. Enfim, gente, aproveitem, vocês que chegaram agora nesse mundo e podem contar com autistas em todas as mídias, né? Invadindo espaços e fazendo a sua experiência serem inclusivas de verdade. Tiago, fica à vontade aí.

Tiago: Então, Andréa, é interessante você falar sobre essa época que você teve o primeiro contato com o autismo, acho que foi ali em 2010, né? Mais ou menos, não me falhe a memória. E eu fui ter o primeiro contato com o autismo em 2013. E a comunidade do autismo era muito diferente, na época até onde eu me lembro. Tinha os primeiros grupos sobre autismo, eu via ali alguns autistas compartilhando algumas coisas, algumas experiências, mas tudo engatinhava bastante. A história do Introvertendo tem um pouco a ver também com esse crescimento do que eu, às vezes, costumo chamar de a primeira onda de ativistas autistas do Brasil. Porque a grande maioria dos autistas que estão se propondo a falar sobre autismo na internet de uns anos pra cá, estão aí há cerca de dez anos, às vezes um pouco menos. E eu sou fruto disso. E tem vários motivos que a gente pode colocar aqui pra falar, com certeza, o maior acesso ao diagnóstico, a própria questão da internet. A internet no Brasil se disseminou muito mais, mais ferramentas, WhatsApp, o quatro 4G e etc, questões tecnológicas, mas eu acho que o ativismo dos autistas hoje, quase daí cerca de 10 anos depois que ele começou a se desenvolver no Brasil, é algo que a comunidade não pode mais ignorar. E que bom que a comunidade está recebendo isso. Às vezes bem, às vezes não tão bem, mas eu fico muito feliz de estar aqui. E já que a gente tá falando de experiências inclusivas, eu quero contar um pouquinho rapidamente a história do Introvertendo. Só pra quem não conhece, o Introvertendo é um podcast sobre autismo, ele foi lançado em maio de 2018 então agora em maio ele completa três anos de existência. A gente tem aí mais de 160 episódios lançados até hoje com foco de autismo na vida adulta. O nascer do Introvertendo foi na universidade quando eu estudava graduação em Jornalismo ali na UFG. Eu procurei por outros autistas na universidade porque eu tinha um diagnóstico recente, não conhecia ninguém que tivesse o mesmo diagnóstico e aí eu conheci uma psicóloga que tinha o atendimento de um da medicina que também era autista. E aí entre eu, ele e ela, ela decidiu: “vamos montar um grupo”. Esse grupo foi juntando várias pessoas, de vários cursos. A gente ia pra esse ambiente da terapia, mas era tudo menos a terapia, a gente conversava sobre trocentas outras coisas. E aí, eu comecei a perceber que a gente conversava coisas muito diferentes que as outras pessoas conversavam e pensei que seria legal transportar isso pro diálogo. Porque o ativismo dos autistas começou muito com criação de conteúdo. Então, eu conhecia blogs de autistas, canais no YouTube, mas eram produções individuais. E aí, eu ficava pensando: se um dos critérios diagnósticos do autismo é a dificuldade de interação social é, muitas vezes, a dificuldade de fazer grupos, de compartilhar essas experiências, que legal seria se tivesse um projeto coletivo de autistas. Então, foi mais ou menos assim como o Introvertendo nasceu, ele nasceu entre os estudantes da UFG, mas à medida que eu fui conhecendo também outros autistas em outros lugares do Brasil, incluindo o próprio Willian, a gente foi expandindo. E hoje, o Introvertendo tem gente das cinco regiões do Brasil além de mim e do Willian, tem mais oito autistas. Então, é muita gente. É um trabalho feito sobre muitas mãos, muitos braços.

Willian: É, bem legal essa história do do podcast Introvertendo. Até onde eu saiba, não sei da existência de nenhum outro projeto, assim, que conseguiu durar tanto tempo quanto o Introvertendo. E eu acho que uma das coisas bem bacanas é justamente ser um espaço que a gente discute muita coisa, né, Tiago? A gente fala sobre muitos assuntos, inclusive eu fui ser um integrante do podcast meio que por acaso, digamos assim, porque o Tiago, a gente se cruzou pela internet. Eu acabei criando o meu canal do YouTube, na época, e a gente tá falando de uma esfera na internet que ainda era pouquíssimo apropriada pelos autistas. Ainda é, na verdade na minha opinião, mas hoje é um pouquinho melhor em comparação a dois anos atrás, quando eu criei o meu canal. E inevitavelmente você conhece essas pessoas. Inevitavelmente em algum ponto da história vocês convergem, algumas ideias, até em alguns movimentos, como o Tiago bem citou do Fora MMS, que foi uma coisa que a gente luta contra até hoje, e outras questões que que sempre ameaçam os direitos dos autistas e outros temas polêmicos. Então, inevitavelmente a gente acaba se encontrando no meio dessa trajetória e com o Tiago não foi diferente. Eu tive esse convite, eu tive essa oportunidade pra gravar junto com vocês. E hoje a gente gravou mais de dez episódios, Tiago? A gente tem falado bastante sobre diversas questões que envolvem o autismo, desde mudanças climáticas, questões do ativismo, detalhes mais técnicos que se relacionam com as características do autismo, segundo os manuais de diagnóstico, enfim, várias questões mesmo.

Tiago: Emojis!

Willian: É, emojis também, é verdade. Quem não sabe que está assistindo a gente, tem toda uma questão aí de autistas possivelmente terem interpretações atípicas ou até alguns tem uma dificuldade de interpretar os emojis e usar eles de uma forma que as pessoas comumente entendem. E os autistas podem interpretar os emojis de uma forma um pouco diferente, então a gente tem um episódio que fez muito sucesso, né Tiago? Que a gente fala sobre os problemas dos emojis entre os autistas. Enfim, são papos muitos muito descontraídos que eu acabo gostando bastante de falar sobre, eu convido vocês também a conhecerem lá o Introvertendo e conhecerem o meu canal também, eu imagino que muita gente que tá aqui no chat já já conhece, né? Queria ressaltar que vale a pena. Pelo menos assim, é claro que não dá pra escutar todos. Assim, o Tiago tem uma linha de produção de podcast, eu nunca vi uma pessoa tão boa em manter uma produção, assim, de conteúdo. Eu tô com meu canal há dois anos, tenho períodos de pausa, tem que dar um descansada. Mas o Tiago não. Ele consegue manter a produção, assim, fiel. Várias estratégias para manter isso, então, é claro que não dá pra assistir todos, mas pelo menos um ou dois ali, seleciona pelos assuntos e ouvem que que vai dar muito bom. Vai dar certo.

Andréa: Eu estava pensando aqui, né? Voltando àquele assunto que, realmente, quando o meu filho teve o diagnóstico em 2010, não existia isso. E aí, quando começaram a aparecer, quando aparece um, dois, autistas falando assim, no Facebook, tinha uma baita desconfiança de ver. “Peraê, peraê, pera aê, tá, esquisito, será que essa pessoa é autista mesmo?”. E, inclusive, apareceu uma época há alguns anos atrás, apareceu uma pessoa que tava dando golpe mesmo, ela não era autista, ela fingia que era autista e não era, a gente descobriu e foi uma coisa horrorosa. Então as mães eram muito desconfiadas. Mas eu queria que você falasse um pouquinho de como é essa relação. Porque assim como nos outros na maioria dos outros ativismos, da deficiência intelectual, da Síndrome de Down, começou como uma coisa que veio dos pais e aí depois passou pro protagonismo das próprias pessoas, com o Síndrome de Down, com deficiência intelectual e autistas. É o que está acontecendo aqui no Brasil agora. E a gente sabe que a relação nem sempre é harmônica. Pra mim, em geral, é harmônica assim. Não só eu tenho muitos amigos autistas, amigas autistas, no instituto. Quando a gente formou o instituto em janeiro, a gente tinha, e eu já sabia, duas diretoras autistas. Agora a gente tem três porque uma não sabia, mas acabou de ser diagnosticada. Então, assim, a gente tá cheio da neurodiversidade lá na diretoria do instituto. Então, eu tenho essa relação muito harmônica e, na verdade, eu aprendo muito sobre o meu filho ouvindo autistas adultos, né? E eu queria entender vocês, através dos canais de vocês, que vocês são ouvidos e vistos por muita gente e por muitos pais e mães, como é essa troca e essa relação?

Tiago: Então, Andréa, é muito legal você falar sobre essa questão da desconfiança, porque assim, Willian até sabe, eu sou apaixonado por estudar a história do autismo, eu já li assim em vários livros e tô sempre buscando atrás coisas assim, porque eu me sinto confortável. É a minha forma de funcionar. Quando eu me interesso por um tema, eu gosto de entender o marco histórico para saber onde que eu estou, na história, o que que os antepassados fizeram para eu poder entender o que que a gente tá fazendo hoje, o que que isso reflete. E uma vez eu li que quando a Temple Grandin escreveu o seu primeiro livro ali em 1986, ela precisou de um prefácio, se não me engano, do Bernard Rimland. Talvez eu esteja me confundindo, mas eu acho que teve um prefácio assim de algum profissional, acho que foi dele, pra ser validada, pras pessoas não terem a desconfiança. Então, a comunidade do autismo não só como a internacional sempre teve essa coisa assim das pessoas olharem com uma certa desconfiança. Alguns autistas conseguem conquistar a confiança mais facilmente, mas outros não e tudo isso depende de questões de contexto e etc. Eu percebo que como a gente teve um gap principalmente tecnológico no Brasil e isso também a ver com a questão do diagnóstico, esse ativismo foi mais tardio. Mas, por exemplo, desde a década de 1990, em alguns outros países, alguns autistas já começaram a participar de fóruns, de comunidades online. Já se tinha aquela suspeita de que o autismo não era aquela coisa tão limitada quanto se pensava e tinha uma nova categoria de Transtorno do Espectro do Autismo surgiria a partir daí. Já se falava sobre Síndrome de Asperger. E é daí que vem o conceito de neurodiversidade, exatamente por uma socióloga australiana chamada Judy Singer, que é muito curioso. E eu acho que a neurodiversidade é um conceito tão mal entendido na comunidade do autismo. Porque a Judy, por exemplo, cunha a expressão neurodiversidade porque ela tem uma filha que ela suspeitava ser autista e a mãe dela também tinha os mesmos traços que a filha dela apresentava. Então, ela via essa questão geracional do autismo e foi aí que ela começou a pensar um pouco nessa nova categoria de deficiência, digamos assim, que já não cabia na deficiência física, na deficiência psiquiátrica, como ela chamava antes e então ela começa a pensar a expressão “neurodiversidade”. Só que isso só chega no Brasil pelos autistas na década de 2010. E aí você falou sobre essa questão, por exemplo, da desconfiança. Infelizmente é algo que ocorre. Mas, por exemplo, no meu caso, que comecei a fazer podcast em 2018 e eu já tinha um tempo ali conversando com outras pessoas, até que eu não tive tanta resistência, sabe? De vez em quando aparece, chega uns e-mails falando assim: “ah, eu não acho que você seja autista”, e aí eu tenho todo o histórico. Eu já passei por dois profissionais diferentes em diferentes contextos que já me atribuíram diagnóstico, mas eu penso que essa resistência está diminuindo. Daqui a uns tempos eu acho que a gente tá chegando num contexto de que a influência autista dentro da comunidade, da produção de conteúdo é tão grande que as pessoas começam a pensar duas vezes antes de falar uma coisa ou outra. Mas eu acho que tudo isso vem com contribuições de muita gente. Nos últimos dez anos, vários autistas publicaram livros falando sobre a sua experiência no diagnóstico tardio. Vários autistas começaram a fazer blogs, vários autistas começaram a fazer canais no YouTube. Então acho que isso começou a gerar um certo impacto na comunidade que hoje faz com que as pessoas tenham menos preconceito. E tem uma coisa que eu acho que está faltando as pessoas comentarem mais, mas que eu acho que vai ficar muito visível nessa década é que, pra mim, a nova marca do futuro da comunidade do autismo são os pais e mães de autistas que estão se descobrindo autistas também. Inclusive, você falou do Lagarta, eu acho que é isso que vai mostrar pras pessoas o quanto que a neurodiversidade era um conceito à frente do seu tempo, porque a Judy já havia percebido isso na década de 1990 e agora estamos começando a ver isso no Brasil agora.

Willian: É nada mais coerente. A gente fala muito sobre a questão das influências genéticas do autismo. A gente entende que é muito comum, uma condição hereditária, mas ao mesmo tempo onde estão esses pais e essas mães. Felizmente estamos tendo um aumento de diagnóstico. Claro que isso se atribui a também a conscientização, a atualização dos manuais de diagnóstico e instrumentos mais sensíveis pra gente conseguir identificar o autismo. E eu fico pensando aqui na versão 10 do CID, que a gente teve Síndrome de Asperger por um bom tempo. Só que aqui, até hoje, quando a gente fala sobre Síndrome de Asperger, para pessoas da saúde, muitas vezes, elas podem conseguir uma imagem de um livro, talvez, que ela, que ela leu ali durante a faculdade, mas que ao mesmo tempo é muito difícil, ainda hoje, de pessoas assim: “Síndrome de Asperger? Eu tenho um amigo que é. Ah, eu tenho um colega. Já estudei com um”, sabe? É uma coisa ainda de muito outro mundo, sabe? Tanto é que isso contribui para aquele estereótipo de que o autista está no mundinho dele, que eu acho terrível. E até hoje isso. A gente tá falando de 20 anos, no mínimo, que a gente tem esse termo já aceito, cunhado, disseminado. Há 20 anos que a gente tem esse termo, essa condição. Já pelo menos deveríamos ter ela sendo explicada na academia, nos cursos. E mesmo assim, até hoje, falando em 2021, a maioria dos profissionais, a maioria das pessoas que deveriam estar supostamente acostumadas com essa condição, ainda não estão. É claro que não estou falando aqui que é necessariamente culpa dos profissionais, é muito além do que isso. Está muito relacionado também com o movimento de conscientização do autismo, que tem ganhado mais força agora também. Está relacionado também com a validação desses autistas que agora, só agora, nos últimos anos começaram a criar conteúdo. E tanto que parece uma coisa tão estranha, como a Andréa falou, que é tipo assim: “poxa, mas autista pode falar? Autista pode criar conteúdo? Autista? Não, não deve ser, né?”. Eu fui desdiagnosticado de autismo umas quatro vezes já online. Algumas pessoas até se dão o trabalho de mandar o CRP, o CRM. Eu entendo que isso é reflexo de, como o Tiago falou, a gente vai ver o histórico de toda a questão que envolve o autismo, realmente a gente vê muitas falhas ainda, muitas lacunas, que a gente tá engatinhando nisso agora. Temos que nos situar nessa posição que infelizmente a gente ainda tá num cenário muito precário de conscientização agora. Então a quem se expõe na internet, infelizmente nesse momento, vai ter que lidar com isso. Mas felizmente, por outro lado, como o Tiago também citou, o ativismo do autismo tem ganhado mais força, essa questão da validação. Nas redes, o movimento da neurodiversidade também vem com essa bandeira e traz, contribui, justamente, para uma segurança mesmo. Eu falo segurança aqui no sentido literal da palavra mesmo. Porque imagina só o quão intimidador pode ser uma pessoa que é autista, que recebeu o diagnóstico, que muitas vezes ela não tem segurança sobre sua própria condição, a princípio ela tem uma repulsa até, isso pode acontecer. Porque afinal de contas, você tem uma sociedade inteira, você tem uma equipe de profissionais inteira que que fala baixinho quando fala sobre autismo. Que fala assim: “ai, você tem esse problema aí, mas assim, você tem outras qualidades também”. E aí, como você vai gostar da sua própria condição quando te apresentam ela dessa maneira? Pensando numa pessoa que passa por todo esse processo e que finalmente ela tem a segurança, tem uma validação mínima pra chegar e falar assim: “olha, vou falar sobre uma experiência na internet”. E aí, a primeira coisa que ela ouve de outros profissionais que supostamente poderiam contribuir ou apoiar ela, seria: “não, mas isto é autismo”. Tem picaretagem em todo canto da internet, infelizmente, isso pode acontecer, de fato, mas tô dizendo pelo lado do ativismo dos autistas protagonizando esse movimento, ainda assim a gente tem ganhado mais força agora, mas na minha compreensão a gente ainda está muito longe do ideal. E espero que a cada ano que passe, tenha mais podcasts, tenha mais canais, tenha vias de comunicação e disseminação para contribuir com essa, com essa validação que a gente ainda precisa, que ainda é bem baixa, na verdade em comparação ao que eu diria como cenário ideal.

Andréa: Então assim, até a própria comunidade médica ainda tem essa imagem muito engessada, antiga, e não entende a questão do espectro. E basta a gente dar uma caminhada pelos autistas ativistas que a gente tem atualmente na internet para entender a dimensão desse espectro. Então, pra quem segue, por exemplo, a Carol Souza, que é uma autista que escreve lindamente, você vê os textões que ela escreve. Mas na hora que ela vai gravar um vídeo, ela tem extrema dificuldade, ela vai formar frases, ela tem dificuldade. Então, nem parece a mesma pessoa que está escrevendo. Então, isso é o espectro do autismo, tem autistas que conseguem conversar com você no WhatsApp como se fosse qualquer pessoa, mas não consegue gravar um vídeo, não consegue falar com você pelo telefone. Então é isso, a compreensão de que é um espectro, também eu acho que tá vindo muito, justamente, por causa dos autistas que estão tendo coragem de se expor, de ir pro Twitter, de ir pro YouTube, de ir pra pro Facebook e se mostrarem dessa forma.

Tiago: Com certeza, Andréa. Inclusive esse seu exemplo é muito interessante, porque existem coisas na na vida social que as pessoas interpretam como se fossem coisas mais simples do que outras. Vou falar isso de uma forma mais concreta. Uma pessoa autista que consegue fazer um mestrado e um doutorado, as pessoas vão partir do pressuposto, já que ela consegue fazer um mestrado e doutorado, que são etapas difíceis da vida, que a maioria das pessoas não fazem, ela vai conseguir fazer todas as funções domésticas da casa sem dificuldade, que ela vai sair de casa e vai lembrar de levar documentos, que ela vai conseguir iniciar uma conversa, finalizar. Então, eu imagino que, principalmente, para autistas que têm uma certa autonomia em algumas atividades mas não têm autonomia em outras, esse julgamento da sociedade é muito forte, muito doloroso, né? E eu acho que os autistas que estão se propondo a falar sobre autismo na internet,conseguem trazer essa essa parte fina e essas nuances do espectro do autismo que são muito difíceis das pessoas entenderem de uma forma automática. Inclusive tem muitas temáticas que a gente discute na comunidade do autismo e que só começaram a ser discutidas já alguns anos pra cá porque os autistas começaram a levantar e não era muito comum entre familiares, entre profissionais. Isso é normal, porque muitas vezes a prioridade ali tá no básico. É de saber como acessa o diagnóstico, etc. Mas, autistas, por exemplo, começaram a introduzir a discussão sobre autismo em mulheres, que foi uma discussão que hoje em dia é geral na comunidade, mas eu acho que ela começou, principalmente, por causa das mulheres autistas. A gente começou a discutir de uns tempos pra cá a questão da sexualidade, que não era um tema muito discutido. Agora, principalmente, de 2020 pra cá, não que isso não tenha sido discutido em outros momentos, mas, por exemplo, a questão negra no autismo começou a ser discutida de uma forma mais massiva, inclusive por profissionais, de 2020 para cá, quando teve o caso de George Floyd e alguns ativistas começaram a trazer esses assuntos. Então, eu imagino que algumas temáticas como essa, que são, principalmente, mais voltadas ao social, elas demorariam 20 anos para entrar na comunidade do autismo se não fossem os autistas. Então, acho que essa variabilidade de pessoas dentro da comunidade falando sobre diferentes temas é muito relevante. E também gosto muito de bater na tecla que a gente mora num país muito grande, um país de muitos contrastes. A experiência de uma pessoa autista na cidade de São Paulo é diferente de uma experiência de uma pessoa autista que mora, por exemplo, no litoral do Rio Grande do Sul, que aí vai ser diferente de alguém que mora no interior do Amazonas. E aí ter possibilidade de ouvir diferentes experiências, diferentes relatos, considerando mais uma vez que essa questão tecnológica está cada vez mais chegando pras pessoas, pelo menos um WhatsApp ali, um Facebook, etc, isso faz com que a gente tenha experiências diferentes e que de certa forma a gente não tenha essa visão tão engessada do autismo como se todo mundo tivesse acesso a todas as ferramentas e todos os modos de vida que você tem numa grande metrópole como São Paulo ou Rio de Janeiro.

Andréa: Pergunta pros dois, o que que vocês acham que falta para que a internet seja mais inclusiva pros autistas, para que mais autistas manifestem suas opiniões, façam podcast, façam canais? É uma questão de inclusão social mesmo, financeira? Qual que é a questão por trás aí para que tenha uma maior inclusão?

Tiago: O ambiente da internet é um ambiente puramente social. E eu acho que aí tem um pouco também a ver com a questão, por exemplo, do próprio mercado de trabalho. São atividades puramente sociais e autistas acabam saindo em desvantagem em algumas dessas questões. Mas eu penso que, em termos de ferramentas, a gente tá conseguindo dominar muito bem. Eu ingressei no mestrado em Comunicação na UFG. E eu tenho trabalhado um pouco com pesquisa sobre podcast e autismo, para entender um pouco como é que é esse universo do autismo de forma mais ampla, até no cenário global. E o que eu tenho percebido é que, por exemplo, nos últimos anos, muito mais autistas têm se proposto a criar mídias como podcast do que profissionais e familiares. Então, assim, o uso dessas tecnologias estão muito mais na nossa mão, talvez de forma geral. O que talvez falta pra nós nessas produções de mídia é um domínio mais técnico da produção. Então, muitas vezes a gente faz uma coisa mais para externalizar a nossa vida, as nossas dores, uma coisa mais íntima, uma coisa mais direta. E talvez por não ter esse traquejo de pensar no público, de pensar algumas coisas mais “mercadológicas”, a gente talvez tá em desvantagem nesse sentido. É claro que a gente vem uma comunidade que é naturalmente desigual. A comunidade do autismo no Brasil começa a se estruturar na década de 1980, os autistas entram nisso 30 anos depois. Então, assim, é natural pensar que a gente já começa uma desvantagem aí por si só. Mas eu acho que a gente tá conseguindo isso um pouco mais. Eu penso também que existe uma noção e isso também tá começando a se quebrar, principalmente agora, depois que teve a pandemia, de que a produção de conteúdo na internet, o ativismo de internet, ele seria inferior ao ativismo presencial. E eu acho que isso tá começando a se quebrar um pouco na mente das pessoas. Se o cenário do ativismo no Brasil é historicamente constituído por familiares, a gente vai pensar automaticamente que as associações, as organizações também são feitas por familiares. Então, há de pensar que nesses espaços onde não tem muitos autistas, os autistas vão se integrar onde? Onde eles, talvez, teriam mais facilidade de penetração, que é na internet. Só que a gente tem aí duas coisas acontecendo. A primeira coisa é que eu percebo que as associações de autismo estão começando a abrir mais espaço para autistas, algumas um pouco mais, algumas um pouco menos, né? Tá tendo algumas resistências, mas isso está acontecendo, pelo menos a passos lentos. E as pessoas estão entendendo que criar conteúdo na internet pode ser uma extensão da vida real. Então, acho tá resolvendo. Eu sou relativamente esperançoso com relação a isso.

Willian: O Tiago falou algo muito interessante sobre a questão mercadológica, tudo que envolve realmente a distribuição disso. E aí agora puxando um pouco pro lado de como essas as plataformas funcionam, eu, por exemplo, como criador de conteúdo no YouTube, eu considero que eu não tenho um canal. Quem tem o meu canal é o YouTube, na verdade. Eu vejo muito claramente dessa maneira. O YouTube distribui o meu conteúdo para quem ele considera que é relevante. Agora, olha só, que difícil que a gente fica nessa situação. Porque, poxa, tá, eu atingi um nível de alcance que eu vou diria como quase próximo do que eu poderia considerar como ideal. Eu não sei se tem como crescer mais. Mas, ao mesmo tempo, olha só quantas pessoas têm na sociedade que a gente precisa conviver inevitavelmente. Então muitas vezes eu posso até ser popular ou as pessoas podem até me conhecer no meio do autismo, mas às vezes o meu vizinho que precisava de uma mensagem minha não faz a mínima ideia de que existe sequer canais no YouTube, que existem perfis de autistas no Instagram, porque as plataformas identificaram que pra ele aquele conteúdo não era relevante. Então a gente tem esse tipo de coisa também. Eu acho que a gente precisa encontrar alguns meios de distribuir pautas sociais em geral, não somente sobre o autismo, mas também conseguir trafegar mensagens a esse público que não necessariamente vai lá e vai pensar: “nossa, que vontade de ouvir um autista falando hoje!”. Às vezes ele nem sabe que isso existe, sabe? A gente precisa de formas de distribuir essas mensagens também pra essas pessoas e convidar elas a observar um pouco mais de perto a nossa realidade. E tudo isso inevitavelmente envolve muitas questões mercadológicas. Envolve muitas questões de estar posicionado em ambientes estratégicos. É claro que é inviável falar sobre autismo todos os dias do ano, porque tem várias outras pautas que são muito importantes também de serem discutidas, mas que pelo menos que haja algumas datas mais específicas, como o caso, do 2 de abril, ou o Dia Internacional das PcDs, por exemplo, que a gente consegue trafegar essas mensagens para quem realmente precisa ouvir elas. Então eu penso muito nesse aspecto também, nessa perspectiva de distribuir mensagens para quem muitas vezes nem sequer faz ideia do que é autismo.

Andréa: Você trouxe uma perspectiva superinteressante mesmo, que é o algoritmo das redes sociais, ele tende a ficar mostrando pras pessoas só aquilo que elas já curtem só coisas similares ao que elas já curtem. Então, se a pessoa não se interessa por nada parecido com isso, isso nunca vai aparecer no feed da pessoa, né? Então, como que a gente quebra esse ciclo? Acho que talvez, a melhor forma seja aparições em nada a ver como convidado. Você, em algum canal, nada a ver, com alguém que você fez amizade, alguma coisa assim. Eu estava até pensando pelo lado político, né? Teve campanhas políticas que fizeram isso, teve gente da esquerda aparecendo em canal político, que era meio que até conhecido mais por pessoas da direita, na época do Guilherme Boulos aqui em São Paulo aconteceu isso. Então, é um jeito de dar uma quebradinha no algoritmo, pra dar uma redistribuída aí nas coisas.

Willian: Eu acho que a chave para isso é o pessoal descobrir que autista também nem precisa não necessariamente falar só sobre autismo, né? Eu acho que tem muita relação com descobrirmos quais são os pontos positivos, a peculiaridade que a gente percebe o mundo, da forma que os autistas percebem e conseguem produzir coisas. Por exemplo, o Tiago, eu falo sério isso, genuíno. O Tiago produz o Introvertendo como se fosse uma empresa. E ele é só uma pessoa.

Andréa: Mas é o hiperfoco dele, Willian…

Willian: Mas esse é o ponto. Esse é o ponto. Não é uma coisa comum de você ver, sabe? E eu acho incrível. Porque eu, como criador de conteúdo, eu tô vivenciando isso na pele e também, por conta das questões digitais e tal, eu sempre tô no meio digital, eu acabei conhecendo muitas empresas que vira e mexe, tem algum projeto, querem distribuir alguma coisa nas redes sociais e tal. E eu sei a dificuldade que é. Hoje o Tiago foi listar os episódios que eu participei do do podcast e tem sei lá, uns 15 números de episódios. E o Tiago sabe, através dos números, ele sabe falar o título de todos. E são mais de o que? 160 e quantos, Tiago? 160?

Tiago: 163 publicados e tem até o 169 para lançar.

Willian: Então, isso é uma uma peculiaridade que a gente sabe que está muito relacionada ao autismo. Eu, por exemplo, quando era criança, não sei quantos anos eu teria, eu acho que teria menos de 4 anos até, uma memória muito antiga. O meu pai é ourives. Ele trabalha com joias, de pedras preciosas, etc, e o meu primeiro hiperfoco que eu me lembro foi pedras semipreciosas. Eu sabia o nome de todas, escala de dureza, outras outras características dessas pedras, sabe? E isso, querendo ou não, é uma coisa que transpondo habilidades hoje em dia na vida adulta, eu sei que essa peculiaridade que tá muito associada ao autismo, também me traz vantagens. Não necessariamente eu vou dizer vantagens, mas produções específicas, produções diferentes e que são muito curiosas, que são muito legais e que podem ser consumidas por qualquer pessoa que seja, PCD ou não, autista ou não. E enfim, eu acho que a chave pra gente aparecer nesses lugares nada a ver, digamos assim, respeitando as suas estratégias, pra gente estar em lugares, pra gente mostrar o autismo além do diagnóstico, ou como patologia, o “ah tadinho”, e etc, é mostrar essa outra questão do autismo, a questão que também está associado muito a uma visão peculiar de mundo, que tá muito associado a criações atípicas específicas que, poxa, acaba achando bom, acaba sendo legal, acaba sendo incrível, impressionante, muitas vezes, ou que não seja necessariamente impressionante tipo “ai, meu Deus, fez sucesso, fez dinheiro, número de seguidores”, mas que é peculiar, que é uma outra visão, uma outra interpretação das coisas. Eu acho que falta ainda a sociedade aprender isso, sabe? Contemplar produções de autistas, entender o que há de específico, o que há de elegante, o que há de peculiar nessa outra visão de mundo. Eu, sinceramente, não tinha parado pra pensar nisso, até o momento que eu começo a ir para congressos e eu começo a ver, por exemplo, artistas autistas. A Letícia, por exemplo, Letícia Soares, eu acho incrível o canal dela. São vídeos curtinhos. Não é “ah, é um autista, um autista fazendo o vídeo”, tá, mas é incrível. E eu não tinha parado pra notar o quanto era incrível até eu ir nesses eventos, nesses congressos e ver. Só que qual é o problema? É que nesse congresso só tá o pessoal do autismo! Poxa, eu não consigo imaginar que estas obras também não poderiam ser apreciadas por pessoas que estão fora dessas comunidade, sabe? E eu acho que a gente ainda precisa distribuir isso. Acho que a chave tá aí. Fico sempre pensando nisso, um evento sobre autismo que não é pra pessoas da comunidade do autismo, um evento sobre autismo que é pra outras pessoas, convidar, fazer ponte. Eu acho que aí está a estratégia.

Andréa: É, eu vi essa discussão muito no movimento negro do ano passado, ter um baita quipropó na época do Dia da Consciência Negra, porque algumas emissoras não colocaram pessoas negras pra falar sobre o Dia da Consciência Negra. Aí depois começou uma discussão de que pessoas negras também são intelectuais, etc, e deveriam ser chamadas para falar de coisas além do racismo. Então, existem pessoas negras que são sociólogas, são médicos, infectologistas, historiadores, e eles estavam ficando meio nervosos de ser chamados em canais de televisão só pra falar sobre racismo. Vocês acham que no movimento do autismo vocês já passaram da fase de chamem autistas pra falar em congressos, etc sobre autismo, em que fase que tá, nos chame a gente ou já tá na fase de a gente não quer só falar autismo, em que fase que tá aí?

Tiago: Essa é uma ótima, é uma ótima pergunta porque isso vem de uma angústia que eu até já conversei com o Willian, várias e várias vezes. A gente tem vários vários pontos aí. Mas eu, eu gostaria de começar dizendo que a gente teve na nossa história recente do autismo aqui no Brasil, pelo menos aí dos últimos quatro anos, de eventos sobre autismo serem anunciados, não terem autistas e alguns autistas nos comentários começaram a se movimentar, mobilizar vários outros e começarem a pressionar mesmo: “não tem autista no evento, não tem autista no evento” e tal. E aí, hoje em dia, praticamente a maioria dos eventos sobre autismo, exceto aqueles que têm temas muito específicos, por exemplo, genética do autismo e etc, a maioria deles traz autistas. Só que aí eu vejo um outro problema, né? É um problema que surgiu quase que instantaneamente, assim, na comunidade como consequência. As organizações começaram a pensar: “bom, a gente tem que trazer autistas. Então, vamos chamar um autista e esse autista vai falar da experiência dele em como ser autista”. E só, sabe? Então, isso acabou criando um outro problema dentro da comunidade, porque a gente tem autistas com diferentes formações. Eu penso que a maioria dos temas voltados ao autismo hoje, a gente consegue autistas que tenham um conhecimento, um domínio técnico sobre o tema. E eu acho que é muito perigoso e muito triste você chamar um autista pra falar do evento só porque ele é autista. Eu já passei por algumas experiências muito desagradáveis, Andréa, de estar no evento sobre autismo e me sentir tão desconfortável, de sair do evento e querer chorar. Parecia duas coisas. Primeira coisa: eu fui chamado só por ser autista. E segundo lugar, na hora que eu tava falando, ninguém tava se importando, porque parece que a organização colocou ali um autista só pra ninguém reclamar e o público alvo do evento não se interessava pela fala. Então eu senti o meu tempo desperdiçado e me senti ao mesmo tempo invalidado. Então, eu penso que isso não está sendo ainda muito discutido dentro da comunidade do autismo, mas é algo pra se pensar. Eu acho que é algo importante, assim, porque a gente tem muita gente que pode dar contribuições legais na comunidade do autismo. A gente que é autistas em todas as fases da idade, nós temos autistas em diferentes áreas do conhecimento, e podemos ter algumas estratégias para evitar isso. Eu penso que as próprias organizações de autismo poderiam começar a pensar nisso no sentido de que como autistas tem uma deficiência com características que se manifestam dentro do meio social, como a dificuldade de interação social, é normal pensar que autistas vão ter dificuldades naquilo que a gente chama de networking. Então, assim, a comunidade do autismo é muito isso. Você vai chamando, às vezes, pra um evento ou outro, pessoas que você conhece, pessoas que você já teve contato. Então, às vezes tem um autista que tem um conhecimento absurdo sobre um tema, mas não tem um círculo social, não tem muitas pessoas que conhecem. Então, como acessar isso? Então, acho que as organizações poderiam começar a pensar nisso também nesse sentido. Eu acho que isso faz parte de um amadurecimento da comunidade que a gente ainda não tem. E, infelizmente, hoje, se você me perguntasse, assim: “olha, como é que a gente vai lidar com essa situação?”. Eu ainda pensaria duas vezes ainda de trazer outros colegas autistas pra essa luta. Às vezes, eu e o Willian, a gente passa coisas nos eventos que não queremos que eles passem pelo que a gente tá passando. Às vezes em alguns contextos, em algumas situações, de que as pessoas não não lidam com a gente com traquejo que deveriam lidar e criam uma situação desconfortável.

Willian: Eu, particularmente, não gosto muito da ideia de “precisamos de um autista porque é um evento sobre autismo, mas precisa de um autista”. Aí o organizador, muitas vezes não sabe quem convidar, não conhece e tal, etc, aí vê aquela questão do networking. E aí começa errado por aí. Olha que curioso, porque é uma pessoa que quer organizar um evento de autismo, só que ao mesmo tempo ela não conhece nenhum autista. Olha o cenário, ou o reflexo do cenário. Mas tudo bem. Aí vamos supor que a pessoa se esforça e tal e etc. “Ah eu conheço um, conheço outro, conheço” e tal. Aí só tem aquela opção pra aquela pessoa. Porque ela está naquele viés de assim: “oh meu Deus, eu preciso de um autista aqui. Vamos chamar ele!”. E aí ele vai chamar essa pessoa. Só que aí esse organizador acha e “ufa! Aí vamos focar no que importa agora!”. Aí ele vai lá e foca nos outros palestrantes, foca na na agenda dos outros. Enfim, não pensa, não se preocupa tanto com a questão do autista participando, porque já cumpriu o que precisava, “já temos autista no evento”. Eu vejo isso muito acontecendo. Eu acho que hoje em dia por causa da pandemia em específico ficou mais fácil de acessar os autistas. Porque até então em eventos presenciais você precisa de toda a questão da logística, que muitas vezes em eventos pequenos é mais difícil mesmo de você bancar toda questão aérea. Às vezes até o autista pode ter uma dificuldade também com a questão do avião que, enfim, acaba limitando as opções de quem organiza. Então, nesse sentido, eu concordaria com o Tiago. Me parece que, que ainda, infelizmente, estamos nesse estado, assim, de que tipo assim, “ah, chamaram um autista, então, tão pelo menos na vantagem”, digamos assim. Se me chamam pra um evento e eu fico pensando: “ah, mas eu não vou dar conta desse evento, porque eu já tenho muitos. Ah, vou passar pra algum amigo meu ou algum outro autista que eu conheço”. Aí eu fico pensando: “tá, mas será que isso vai ser bom pra ele? Será que esse cara aqui não estava me chamando só pra cumprir a tabela? Será que ele não vai dar o apoio necessário? Será que ele realmente o público alvo vai estar prestando atenção?”. Porque se for pra mim, pelo menos eu lido, mas e se eu colocar alguém nessa posição? Eu recomendo esse evento pra outra pessoa e aí fica nessa situação desagradável. Eu tenho muito esse receio ainda. Ontem mesmo isso aconteceu. Se começa já nesse sentido assim: poxa, a pessoa já digitou meu nome errado, logo no início do email, assim, sabe? Acho que ela não me conhece muito. É claro que eu não quero dizer que erros não acontecem. Não posso julgar todo mundo por errar o meu nome. Mas infelizmente isso acontece bastante, que é: “precisa de algum autista”. “Ah, tem um autista popular lá, que é tal pessoa, chama ele”. Nem sabe o que vai falar! A gente se posiciona que ainda estamos nesse momento um pouco sofisticado, pouco desenvolvido ainda. Mas sou otimista que nos próximos anos, logo, logo, a gente vai chegar nessa conclusão de que autistas não falam só sobre autismo não. E que essas essas outras habilidades, outros interesses deles vão passar a ser mais explorados em eventos de autismo sim.

Rafael: Obrigado, Andréa. Obrigado, Tiago. Obrigado, Willian. Foi sensacional escutá-los. Um prazer, assim, inenarrável. Tamo aí juntos, né, nessa luta pra da construção de uma sociedade que seja menos capacitista. É isso, muito obrigado, boa noite a todos e até a próxima.

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