Introvertendo 180 – Os Autistas Foram se Vacinar e Olha no que Deu

Depois de muita expectativa, autistas em diferentes lugares do Brasil começaram a receber vacina, especialmente em maio de 2021. Por isso, Luca Nolasco, Tiago Abreu e Willian Chimura conversam com Mariana Sousa e Paulo Rafael sobre processo de vacinação: os lugares onde ocorreu e onde não ocorreu, como os governos se posicionaram em relação ao autismo, capacitismo e recusa de vacina em locais de vacinação e a legislação sobre autismo. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que também é um dos podcasts mais vacinados da podosfera brasileira. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015 e recebi a primeira dose de AstraZeneca.

Luca: Oi, eu sou o Luca Nolasco, diagnosticado com autismo em 2016 e vacinado em 2021 pela AstraZeneca.

Mariana: Meu nome é Mariana Sousa, meu diagnóstico veio ano passado e eu fui vacinada pela Pfizer.

Willian: Meu nome é Willian Chimura, eu sou autista, também youtuber e pesquisador, fui vacinado com AstraZeneca, quase morri, mas passo bem.

Tiago: E temos aqui um convidado que acompanha o Introvertendo há muito tempo, até já rodamos áudio dele aqui, no ano passado, e queria que ele se apresentasse também podcaster e autista.

Paulo: Saudações, galera, tudo bem? Tudo beleza? Meu nome é Paulo, embora a maioria do pessoal me conheça como El Clandestine, eu fui diagnosticado em agosto de 2019 e eu confesso a vocês que a minha cura começou pra vida desde quando eu comecei a entender um pouco mais sobre autismo com quem já era autista adulto. Uma boa parte disso são vocês do Introvertendo.

Tiago: É, a gente fica vermelho aqui (risos).

Paulo: Opa. E não existe cura. Óbvio, na hora que eu comecei a falar, eu falei: “ai”.

Tiago: Não, mas eu acho que as pessoas entenderam o sentido figurado da coisa. E esse episódio é pra falar um pouco sobre o processo de vacinação no Brasil em relação a Covid-19. Se você tiver ouvindo esse episódio no futuro pós-pandemia e sobreviveu, eu estou feliz por você, e se você está atravessando esse turbilhão com a gente, então acompanhe os nossos relatos. E se você é autista também e ainda não foi vacinado ou não foi vacinada, a gente torce por você. Vale lembrar que o introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Quando a gente fala sobre vacinação em relação a Covid-19, uma das principais coisas que a gente discute é o Plano Nacional de Imunização, que foi anunciado pelo Governo Federal mais ou menos aí na mesma época em que a vacinação começou no Brasil, em janeiro de 2021. Os autistas não entraram necessariamente no Plano Nacional de Imunização como a gente poderia imaginar. Em fevereiro de 2021, o blog Vencer Limites do Estadão publicou uma matéria falando que o Governo, definitivamente, naquele momento, ali, já com um mês da vacinação ocorrendo, incluiu, as pessoas com deficiência dentro do grupo prioritário no Plano Nacional de Imunização, mas incluiu de uma forma meio confusa, porque o documento não citava autistas. Na verdade, de todas as deficiências, aquela que ficou mais evidente, mais destacada em relação a questão da vacinação foi a Síndrome de Down, enquanto as outras deficiências, algumas não ficaram tão específicas. Isso levantou até alguns questionamentos, algumas críticas de pessoas com deficiência. A senadora Mara Gabrilli do PSDB até questionou o ministro da saúde Marcelo Queiroga na CPI, isso mais ou menos já em maio, do porquê autistas, até pessoas com esquizofrenia e outros diagnósticos não estavam contemplados no PNI. Mas na prática, a verdade é que autistas começaram a ser vacinados no Brasil já desde abril, alguns estados interpretando o PNI com esse grupo de pessoas com deficiência já incluindo autistas e outros estados por conta própria, mesmo fazendo do seu próprio estilo. E a primeira coisa que eu queria lançar pra vocês antes da gente falar um pouco como é que se desenvolveu essa vacinação de autistas pelo Brasil são as expectativas que vocês tinham em relação a vacina. Vocês tinham alguma coisa em relação a isso?

Luca: Olha, eu era bem desesperançoso, pelo menos depois que saiu o Plano Nacional de Imunização, eu vi que eu não tava enquadrado, eu falei: OK, eu só vou ser vacinado ano que vem se eu der sorte, senão 2023 é isso aí. Tanto é que eu nem acreditei quando eu consegui marcar a minha vacinação, porque era algo que até o último segundo eu não estava esperando.

Paulo: Eu também estava bem desesperançoso porque a gente sofre tanto impedimento. Como eles falam, por ser uma deficiência que não se enxerga. Eu não tava com esperança também, eu tava esperando ser vacinado por idade.

Willian: É, talvez eu seja um dos mais otimistas entre os colegas aqui. Num sentido, é claro que a gente sabe que o governo teve toda essa questão, né, com as vacinas e que agora é investigado por meio da CPI e tudo mais. Mas a minha sensação, pelo menos, mais recentemente era no sentido de que: OK, o Brasil infelizmente demorou muito pra entender que vacinas são importantes, mas parece que agora ele entendeu e parece que em breve teremos sim vacinas e felizmente as coisas estão andando. Claro que muita gente poderia ter sido vacinada antes. Infelizmente, não aconteceu. Mas, nesse sentido, eu tinha uma expectativa que, em breve, eu seria vacinado e, realmente, aconteceu de uma forma bem acurada, de acordo com as minhas expectativas, mesmo em questões de tempo. Eu tinha um porém que eu teria mais problemas em relação ao que o Paulo mesmo falou, que a gente infelizmente temos muitas negativas, o autismo é uma deficiência invisível e tudo mais. Então, eu tinha uma expectativa de que não seria tão fácil assim, no momento da vacinação, que aí eu conversar, dialogar com os funcionários, os voluntários, talvez até, enfim, pensava em mandado de segurança, Ministério Público, enfim, eu já pensava mais nesse sentido de que talvez seria necessário escalar algum tipo de intervenção, não seria tão tranquilamente quanto foi. Pra minha surpresa, na verdade foi até muito surpreendentemente fácil em comparação ao que estamos acostumados a termos os direitos negados e enfim, uma certa resistência, preconceituosa mesmo nos diversos setores da sociedade.

Mariana: Eu não tinha nenhuma esperança. Tanto que aqui em Goiânia a gente tinha um aplicativo pra marcar, pra fazer esse agendamento, eu sequer tinha baixado o aplicativo, porque eu realmente não tinha nenhuma esperança, mas foi bem mais tranquilo do que eu imaginei.

Tiago: Eu conheço um pouquinho de cada um aqui, nós somos de estados diferentes, eu morei durante um tempo em Goiás, eu tô no Rio Grande do Sul, então acompanhei um pouco a vacinação dos dois estados, Willian do Rio Grande do Sul, o Paulo do interior do Paraná, então a gente tem algumas experiências um pouco distintas e eu particularmente estava muito confuso em relação ao calendário de Goiás, porque uma vez falavam que seriam os professores, o governador falava uma coisa diferente. Uma coisa que ficou muito evidente pra mim em relação não só a pandemia, mas também a vacinação é que as informações estavam muito desencontradas. Não bastava você consultar somente os órgãos públicos ou as páginas das prefeituras, das secretarias de saúde para se informar porque às vezes até a própria imprensa dava informações contraditórias em relação a isso. E isso me causava uma certa angústia.

Luca: Eu tenho uma coisa pra reclamar, porque a Secretaria de Saúde de Goiás foi tão incompetente que a página da Secretaria de Saúde de Goiânia e de Goiás não tinha absolutamente nada sobre o Plano Nacional de Imunização. Não tinha o andamento do plano em Goiás, não tinha qual setor que vai ser vacinado agora, não tinha absolutamente nada. Se você quer saber alguma coisa, você tem que ligar a sua televisão (se você tiver uma) e assistir o jornal de meio-dia, porque senão você não vai saber. Então todos os dias eu tava plantado pra assistir o jornal, porque senão eu não iria saber que era minha hora de vacinar, ou que era hora da Mariana, ou que era a hora da minha mãe. Nunca saberia se dependesse do site.

Tiago: É, que é uma coisa bem diferente, por exemplo, o que ocorreu aqui no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, que, pelo menos eu acompanhava o Twitter da Prefeitura e da secretaria de saúde do município e as informações eram diárias, eles já tinham uma previsibilidade daquilo que eles ia anunciar no dia seguinte. E mesmo assim eu ficava um pouco apreensivo em relação a isso. Mas antes eu queria voltar um pouquinho pra falar sobre os estados que começaram a vacinar autistas antes de todo mundo, ignorando até o próprio Plano Nacional de Imunização. A Carol Cardoso ia estar nesse episódio, ela não pôde estar e a Carol seria uma pessoa central para falar sobre o estado dela, o Amapá, que vacinou autistas em abril. E quando eu fui saber um pouco mais da situação, os autistas foram vacinados com as pessoas com comorbidades. Então, não só o Amapá, mas como alguns outros estados, se não me engano, Piauí também, consideraram autistas e pessoas com Síndrome de Down, como pessoas em maior vulnerabilidade para receber a vacina. Então, eles saíram desconectados das demais pessoas com deficiência. Isso trouxe uma certa confusão. E lembrando também que o mês de abril é o mês da conscientização do autismo. Então também era uma jogada de marketing, digamos assim, entre aspas, vacinar autistas no mês da conscientização do autismo. Então, o caso do Amapá é realmente curioso e a Carol até deu entrevista pra prefeitura e foi uma coisa que pra ela foi uma grande surpresa, teve teve autista também entrando em conflito lá porque teve recusa de vacinas, mas isso a gente vai falar um pouco depois. E tem o caso do Rio de Janeiro que também é um caso completamente atípico do país inteiro, que anunciou vacinação de pessoas com deficiência de uma forma geral. Primeiro começou autismo, paralisia cerebral e síndrome de Down e tinha um ponto específico principalmente na cidade do Rio de Janeiro, que era o Maracanã ali. E depois eles anunciaram a vacinação de familiares e cuidadores de pessoas com deficiência. Isso contrasta bastante com outros estados que ficaram somente restritos nas pessoas com deficiência que recebem BPC. E essa é uma outra discussão também, porque quando a gente fala sobre o Plano Nacional de Imunização, ele prevê essa divisão de pessoas com deficiência permanente que recebem BPC e pessoas com deficiência permanente sem BPC. Isso levantou muitas críticas de pessoas com deficiência, porque a família que consegue BPC está num grau muito alto de vulnerabilidade social, então não é todo mundo que consegue receber BPC, mas infelizmente isso é o que ocorreu. Em alguns estados, como o próprio estado de São Paulo, praticamente só pessoas com deficiência que receberam o BPC começaram a ser vacinadas com maior facilidade. Eu quero ouvir um pouco também do Paulo sobre o estado do Paraná, que eu sei que tem várias regiões e cada região administrou essa questão um pouco diferente.

Paulo: Isto, o Paraná, o plano seguiu, vamos dizer assim, pra todas as regiões, como eles tavam dizendo, de maneira igualitária. Só que em termos de informações, pra nós aqui chegava uma coisa meio atrasada. Eu costumo dizer que eu tô no no Novo Oeste Selvagem, que é o Noroeste do Paraná aqui, é a região que foi colonizada por último. Mas informação não chegou a faltar por causa do site da Prefeitura, todos os dias tava chegando informação, tudo tranquilo, televisão tava tudo OK, os canais locais, rádio, também tudo tranquilo, internet. Cada prefeitura tava fazendo a sua divulgação, no caso de Umuarama não deixou a desejar em informação, pelo menos não deixou a desejar, e está seguindo em frente a fila.

Tiago: Já em relação a própria comunidade do autismo e especificamente a comunidade autista eu vejo que muitos autistas entraram em certo pânico em relação às informações que eram divulgadas pelo secretarias de saúde, porque aí algumas coisas começaram a se desencontrar. Salvador anunciou em abril a vacinação de pacientes transplantados e o cadastramento de autistas para vacina, só que eles anunciaram claramente que esse cadastro era para autistas “severos” e isso começou a levantar uma discussão muito de que os autistas leves estariam sendo excluídos. Depois eu vi uma outra matéria falando de autistas moderados e severos e aí de uma certa forma eu não consegui nem entender se teve alguma exclusão de fato ou se foi uma má divulgação. Até o momento que a gente tá gravando esse episódio, ainda é discutido e causa algumas tensões dentro da comunidade. E isso não é constitucional, né, Willian? Lembro que a gente já conversou um pouco, também, sobre isso, sobre essa divisão de níveis e tudo mais, porque a política nacional é uma só, ela fala do espectro do autismo e não faz diferenciação.

Willian: Na verdade eu vejo que esse caso de Salvador, como você mesmo disse, é um pouco difícil, tá um pouco nebuloso da gente conseguir descriminar o o que realmente foi falado, como está sendo feito, se houve ou não discriminação nesse sentido. O que é plenamente possível de ser feito porém no meu entendimento leigo, é que o município poderia priorizar um grupo, por exemplo, de pessoas com deficiência com comorbidade, e aí essa comorbidade seria, por exemplo, deficiência intelectual, por exemplo, para priorizar ela, como aconteceu no caso da Síndrome de Down. Por algum motivo isso foi entendido que Síndrome de down é uma condição específica junto com outras condições mais específicas também. Então nesse sentido é possível sim fazer esse tipo de diferenciação. Agora, o que não pode ser feito é: “vamos vacinar pessoas com deficiência”, chega lá na hora e se vacina todas as pessoas com deficiência exceto autismo leve, porque afinal de contas autismo, para todos os efeitos legais, de acordo com a Lei Berenice Piana, é uma condição de deficiência. Então seria, no meu entendimento, algo até anticonstitucional, no sentido da violação dos direitos das pessoas com deficiência que também é conhecida como a Lei Brasileira de Inclusão. A gente já vê isso ocorrendo em várias situações. Empresas, por exemplo, que anunciam vagas para pessoas com deficiência e aí a pessoa com Síndrome de Asperger vai lá, passa por um processo seletivo e tal e etc. Chega no final, a banca recusa de alguma maneira. Então, se você olha na jurisprudência, por exemplo, a decisão do dos juízes têm sido consensual no sentido de que não tem o que discutir. As pessoas diagnosticadas com o CID de Síndrome de Asperger, de acordo com o CID-10, são sim pessoas que, para todos os efeitos legais, são pessoas com deficiência. Agora, se no caso de Salvador é no sentido de priorizar, ou seja, ainda não foram vacinadas todas as pessoas com deficiência, eu entendo que é possível sim de se fazer isso por conta da mesma lógica que fizeram com a priorização da síndrome de Down, que também é uma condição de deficiência, mas que foi entendido como prioridade.

Tiago: A gente vai continuar acompanhando esse caso de Salvador e você que ouve o Introvertendo e reside em Salvador também pode mandar a sua mensagem pra gente pra explicar um pouco como é que tá ocorrendo isso aí. Quase todos nós fomos vacinados enquanto pessoas com deficiência, mas eu sei que tem uma pessoa especificamente que não foi vacinada como pessoa com deficiência, que é o Luca. Queria que você contasse um pouco como é que foi isso, Luca.

Luca: Cara, eu não só tava tão desesperançoso que o autismo entrasse no plano de imunização de Goiás, que assim que eu vi a oportunidade de me vacinar, eu fui atrás, que foi como comorbidade. Pra quem não sabe, eu tenho asma e faço uso contínuo de, pelo menos, uns sete medicamentos que usam corticoide. Não faz nem um pouco bem pra saúde, mas é o que eu preciso. Então assim que eu vi que iria ficar disponível pras pessoas com comorbidade eu fui atrás e minha vacina foi rejeitada. Assim, eu não pude ser vacinado pela primeira vez porque o laudo que tava escrito pela médica simplesmente estava errado, ela não tinha colocado que eu fazia uso de um medicamentos e não tinha esclarecido qual era a doença pelo CID, só tinha deixado o CID. Então, a Mariana é testemunha do desespero que eu tava, porque eu não tinha mais nenhuma perspectiva de ser vacinado depois dessa. Mas no final das contas eu achei receitas lá em casa que comprovavam o uso e aí eu consegui ser vacinado no dia seguinte. E uma semana depois, Goiás libera que pessoas autistas possam também vacinar.

Tiago: E já que a gente tá falando de Goiás, então, Mariana, conta pra gente como é que foi o dia. Acho que vocês dois estavam juntos, né?

Mariana: Sim, nós dois estávamos juntos, tava realmente muito alheia a essa questão da vacinação, porque eu tava imaginando que eu só ia me fascinar daqui muito tempo e o Luca que acabou correndo atrás dessa dessa situação pra mim, de fazer o agendamento, essas coisas assim, porque eu realmente não tava acreditando que os autistas iam ter prioridade na hora da vacinação. Nós dois fomos no local de vacinação, eu consegui agendar para um local bem perto da minha casa e nós dois fomos juntos, foi um pouco incômodo, porque nós tivemos que pegar uma fila realmente muito grande, apesar do agendamento ser com horário e tudo, nós pegamos uma fila bem demorada, mas assim, consegui vacinar, isso foi o importante. Eu senti alguns sintomas pós vacina, mas não foi nada muito preocupante, foi assim, foi tranquilo. Mas eu fiquei realmente com muito medo de ter colocado ali em questão. Porque sempre que a gente fala sobre autismo, alguém sempre vem fazer um questionamento, alguém sempre vem: “ah, mas você não parece”, mas eu achei que isso ia acontecer, eu achei que seria bem mais cansativo ter que explicar toda essa situação, mas é bem compreensível, não tive muitos problemas, não.

Tiago: E você, Paulo, que foi o último de nós a vacinar, queria que você contasse aí a história, inclusive o que foi exigido durante o processo de vacinação.

Paulo: Sim, eu estava observando aqui agora os anúncios que a prefeitura aqui do município, em Umuarama no dia publicou. Constava, além do anúncio principal ali da tela principal no Instagram, que era pras pessoas com deficiência, com ou sem BPC, mas algumas telas, entre elas, dizendo que era pra levar os laudos tudo e que isso deveria, assim como o Willian tava falando, relatar-se dificultava a realização das tarefas ou ainda aptidão pro trabalho, alguma coisa assim. Eu acabei não dando print, não tenho como ver aqui em mais detalhes a pessoa deveria dizer, além, além de ter o laudo com a CID, tudo, deixando bem claro que ela está no espectro, dizer ainda se aquilo causa prejuízos e se ela não pode ou fica mais difícil pra ela exercer a função que ela tem exercer ou fazer o que ela tem que fazer. Aí eu olhei os dois laudos, eu falei: “eu vou ter que levar os dois, o primeiro, o de 2019 e vou ter que levar o desse ano, caso acontecer, digamos assim, uma inquisição da enfermagem no local”. Estar pronto pra deixar bem claro a que razão eu fui até lá e poder ter vacina. Aí juntei os documentos e fui. Aí eu fui o 27º naquela manhã, tinha bastante gente, tantos com comorbidade, Síndrome de Down, tudo, e os autistas. Aí chegou a minha vez, aí a moça me pediu o laudo: “me dê a cópia, por favor”. Eu passei o laudo a cópia, ela olhava pra esses dois, olhava pra mim, ela olhava pros dois, ela falava: “olha, eu não tô enxergando aqui nada, eu vou passar aqui pra outro enfermeiro, só um minuto”. E passou o laudo. Eu falei: “olha, eu tenho um laudo anterior dizendo o que me dificulta o trabalho conforme consta no edital de ontem”. Aí ela: “ah, deixa eu ver”. Nisso já tava tendo uma pessoa com telefone na mão, eu já fiquei preocupado, eu pensei: “Tá ligando pra Secretaria de Saúde, só pode”. Aí eu fui ficando nervoso até que puxei a carteirinha, a CIPTEA. Eu falei: “olha, eu trouxe a carteirinha também”. Nessa hora, a enfermeira-chefe, que estava atrás das duas, falou: “Opa, opa, opa, opa, opa, opa, opa, opa, opa, opa, deixa eu ver!”. Olhou a cópia, não era nem original. “Ele tem atendimento preferencial, ele pode passar”. Morreu ali o laudo, desse ponto em diante, aquele olha pra mim, olha pro papel, olha pra mim, olha pro papel. O jeito de falar mudou, o jeito de falar todo sério mudou pra: “olha, o senhor aqui, ó, tá vendo? O senhor vai tomar hoje, aí o senhor vai tomar dia vinte e pouco de novo, tá bom? Aí o senhor pede pra alguém ligar aqui”. Pede pra alguém ligar aqui? Então eu não sei pegar o telefone e ligar? Então, mudou de figura agora? Quase que eu perguntei: cadê meu pirulito? Cadê minha bexiga? Quero saber! Incrível! Aí eu fui tomar a vacina, estava chorando já nessa hora porque ia ser vacinado, mas também porque eu nunca tinha vivido essa parte do preconceito, do capacitismo, tão de perto, sabe, ao longo desses anos. Aí eu fui meio que feliz por um lado e revoltado por outro. Aí tomei a vacina, a enfermeira aplicou, tava até assustado. Ela achou que eu estava com medo dela não vacinar. Ela falou: “olha, tá aqui, ó, tá aqui, ó, toda a dose, vou aplicar, tá bom?”. Meio com medo. E eu voltei, aí, até pra casa, fui direto pro trabalho, já estava livre por estar vacinado, finalmente. Poder ir trabalhar sem risco nenhum, nem pra mim e nem pra minha família, pra esposa e pros dois filhos.

Tiago: É interessante o relato, porque ele revela principalmente essa questão de ser invalidado, que tá muito frequente nas falas dos autistas que foram vacinados ou tiveram recusa de vacinação no Brasil e também essa questão de lidar com o capacitismo pela primeira vez ou até de uma forma muito mais escancarada do que em outros contextos. Eu quero contar a história da vacinação minha e do Willian. A gente foi tomar a vacina junto aqui em Porto Alegre. Desde antes, na verdade, eu acompanhava três, quatro, vezes por dia, o andamento das filas. Então, no domingo à noite, eu já sabia que no dia seguinte ia ter vacina e já tava pronto. Nós nos preparamos, assim, com um monte de documentos esperando que ia dar treta, sabe? Esperando que a gente teria que se impor e fazer um barraco, mas a verdade é que quando nós chegamos lá na porta a gente tava em silêncio, só mostrou o papel, a mulher olhou, falou pra gente entrar. A gente entrou, sentou, esperou um pouco, chegou o momento da vacinação. Quando eu fui pra vacinação, a mulher olhou pra mim e perguntou: “qual a comorbidade?”. Eu falei: “deficiência permanente”. Ela só olhou o papel e tal, explicou ali a data da vacina, tomei a vacina tranquilamente. Willian também tomou a vacina tranquilamente. A gente saiu muito surpreso porque a gente não esperava que fosse tão tranquilo assim, mas a história mais legal da vacinação foi logo depois, porque tem as fotos que a gente divulgou nas redes do Introvertendo, também lá no meu Twitter, da vacinação, que a gente tirou logo após ali. E foi no momento que a gente chamou um Uber e aí o Uber foi chegando e a gente tinha acabado de tirar as fotos. Entramos dentro do carro e aí ele falou: “ah, vocês estavam se vacinando?”. A gente falou: “Sim!”. Ele perguntou: “Vocês são profissionais da saúde?”. Aí a gente falou: “Não”. Aí ele: “uai, o que que o que que vocês têm? Eu não consegui identificar”. Mas ele não falou assim da maldade, sabe? Ele tava falando naturalmente, assim. Tranquilamente. Aí a gente explicou: “não, a gente tem deficiência permanente”. Aí ele: “Sério? Caramba, o que é que vocês têm que eu não consigo identificar ainda?”. Aí, eu falei: “Estamos no espectro do autismo”. Aí ele, assim, parece que foi uma cena de sitcom, aquelas cenas que o personagem tá lidando com o desconhecimento das pessoas sobre autismo, pareceu que era roteirizado. “Mas vocês não parecem autistas” e várias coisas assim. E aí a gente foi explicando sobre o autismo. Ao invés da gente reagir negativamente ou punindo ele, a gente explicou muito bem e aí ele ficou bastante satisfeito, ficou até surpreso, a gente conseguiu ali dar uma explicação sobre autismo. Mas foi um cenário, assim, muito, muito curioso mesmo. Mas o que foi um pouco diferente de alguns relatos de outros autistas que a gente começou a receber, um pouco depois, que a gente publicou nas redes sociais e o Willian pode até contar isso, como é que foi.

Willian: Inclusive, o que aconteceu em alguns casos aqui em Porto Alegre também, nas mesmas unidades de saúde que eu e o Tiago fomos vacinados e também faço muita relação com o que aconteceu ali com a experiência do Paulo no sentido de que quando ele mostrou a CIPTEA e daí OK, foi esclarecido. Isso porque a gente sabe que até mesmo dos profissionais, infelizmente, aqui no Brasil, o Transtorno do Espectro Autista não é, realmente, o transtorno mais fácil de se entender, entender as nuances, da lei, como ela é entendida na lei. Também, por exemplo, no Plano Nacional, é descrito tipos de deficiência e aí tem um tipo de deficiência que é descrito como o grupo de prioridade, que seria os grupos das pessoas com deficiência de natureza intelectual, o que dá a entender naquele texto, pelo menos, em minha interpretação, que é pra mim, é muito claro, que o que eles querem dizer por deficiência intelectual ali não é o transtorno chamado deficiência intelectual como descrito no manual de diagnóstico do DSM-V, mas sim deficiências de natureza intelectual, que afetam o cognitivo da pessoa, de alguma forma, como autismo, alguma que lembra que ou é semelhante ao autismo também ou até mesmo propriamente dito a deficiência intelectual. Então neste sentido eu vejo que há muitas nuances e que só quem vai entender isso é uma pessoa que entende de manual de diagnóstico, uma pessoa que sabe qual que é diferenças entre DSM e CID, uma pessoa que entende o que costuma acontecer quando se trata de Síndrome de Asperger, uma pessoa que entende transtornos do neurodesenvolvimento e como o espectro do autismo se relaciona com isso. Enfim, são muitas nuances para se entender. Então, realmente, quando se trata de interpretar um laudo, infelizmente não vão ser todos profissionais que vão entender isso. E aqui, Porto Alegre, é um município que não teve nenhuma alteração significativa em relação à sugestão do Plano Nacional de Vacinação. Então, há muitas brechas no sentido de que autistas ordem ou não ter outro transtorno associado que é a deficiência intelectual como descrito no DSM-V, mas ao mesmo tempo se então, é especificado no laudo do autista segundo os critérios do DSM-V que aquele autista não possui nenhum prejuízo nesse sentido alguém pode facilmente pensar: “Ah, não, então, este autista aqui não se encaixa, porque lá no Plano Nacional está falando que, necessariamente, o grupo de pessoas com deficiência teria que ser de natureza intelectual e, por consequência, por não ter esse transtorno, chamado deficiência intelectual, ele não está encaixado”. Mas enfim, é uma complexidade aqui que realmente teria que ser desambiguada por meio de nota técnica, preferencialmente, por meio de uma ação coletiva, por exemplo. Então, realmente é custoso, é trabalhoso e eu acho essa situação acaba evidenciando também a utilidade, querendo ou não, de um documento legal, como a CIPTEA, por exemplo, que daí deixa essa avaliação de uma forma mais tecnológica, mais assertiva. Ou seja, não é de responsabilidade ali do técnico, do voluntário, que não estudou sobre autismo, que está ali pra fazer acontecer a vacina, pra ajudar a sociedade, mas que também não vai ter toda a bagagem do mundo e que sim, ele corre o risco de ser capacitista mesmo sem querer, agir contra a lei, mesmo sem querer. E também evidencia muito como é importante não ter essa falsa sensação de que um pedaço de papel que a gente vai chamar de laudo, por exemplo, vai ser a chave para todos os nossos problemas ao longo da vida. Na verdade, idealmente, como pessoas com deficiência, eu entendo, principalmente, autistas, que precisamos ter um acompanhamento profissional, um médico, um psicólogo, enfim, assim como mais ou menos você tenha um advogado de família, sabe? Seria mais ou menos esse mesmo conceito, porque daí este profissional pode emitir laudos, pode entrar em contato, pode ajudar a resolver situações como essa ao longo do dia a dia. E acho que isso é pouco difundido ainda. E também até pouco compreendido na comunidade do autismo. Mesmo porque eu vejo autistas, por exemplo, quando solicitam laudos para o seu médico e o médico pergunta assim: “tá, mas por que que eu vou te emitir um laudo?”, pensando que talvez seria uma resistência por parte do médico, mas na verdade não. Na verdade, muitas vezes, o que acontece é que o médico vai emitir documentos nas demandas que forem surgindo ao longo da sua vida. Então, eu, por exemplo, tenho N atestados e cada atestado é escrito e emitido de acordo especificamente para uma situação determinada. Então, eu fui me vacinar e tinha um atestado para essa situação. E que, inclusive, dizia claramente que a pessoa poderia entrar em contato com a minha profissional que me acompanhava caso necessário. Então, este tipo de coisa pode trazer muita segurança para o autista, pode trazer muita segurança para a pessoa com deficiência. Eu acho que isso tá muito claro e esse episódio das vacinas deixa um pouco mais claro. Agora o que acontece, infelizmente, é que alguns autistas aqui por Porto Alegre e outros municípios, suponho eu, estão passando por situações que estão sendo recusados de serem vacinados indevidamente. E nesse sentido, eu tenho me mobilizado até para falar com nas redes ali do prefeito daqui de Porto Alegre e tentado entender caso a caso o que aconteceu e de alguma forma prestar esse auxílio e pressionar para que de alguma forma possa difundir mais essas informações, como, por exemplo, por meio desse episódio de podcast, eu também pretendo fazer uma manifestação nas minhas redes sociais, para deixar claro o que é do nosso direito, porque a gente não pode relativizar o que é do nosso direito. Se vai vacinar pessoas com deficiência, temos que vacinar autistas. Por mais que, ah, no seu critério não, não mereceriam. “Ah, mas aí ele trabalha. Ai, mas ele estuda. Ah, mas ele tem uma vida independente”. Não importa. A gente não pode flexibilizar garantias de direito. Porque na medida que a gente começa a fazer isso, nenhuma lei, nenhuma política faz mais sentido de existir na sociedade. Então é extremamente importante a comunidade se mobilizar para que garanta sim o direito de vacinação, não importa o nível de prejuízo, comprometimento, grau, se tem ou não tem deficiência intelectual. O que importa é: se é autista e a oferta é para pessoas com deficiência, a Lei Berenice Piana é clara, autistas precisam ser vacinados sim nessa condição e não pode haver nenhum tipo de flexibilização ou relativização da condição nesse sentido.

Tiago: Muito bom. Depois desse episódio com relatos e também com essa reflexão, que eu acho que é muito importante até pros autistas se munirem e compreenderem melhor quais são seus direitos, eu queria agradecer principalmente ao Paulo aqui, nosso convidado deste episódio, falar pra ele falar das suas redes sociais, falar sobre o seu podcast, hora do jabá, fica à vontade.

Paulo: Opa, eu abri o meu canal, o @el_clandestine, na época o nome bem difícil, mas o objetivo era ficar difícil mesmo. Porque na época, por não saber ainda que era autista e mais por buscar informações pra começar a contar a minha jornada, o objetivo era ele ficar meio difícil mesmo das pessoas localizarem. A gente tem um podcast que eu fiz um projeto antes da pandemia, que é o ClandCast. Aí eu acabei deixando por lá. No comecinho desse ano, um outro autista adulto chegou em mim: “vai ficar demorando muito, é? Vai esperar vencer o prazo do programa? Vê se grava outro de uma vez!”. Aí eu falei: “tá certo. Ele está com toda razão. Eu vou recomeçar”. Eu ia gravar o terceiro essa semana, mas como eu disse pro meu filho, quando eu recebi o convite de vocês, eu falei assim pro meu filho: “filho, você é gamer, não é filho?”. Ele: “sou, pai”. “Então, você imagina se o AuthenticGames te convida pra participar do programa? Cê não ia querer?”. Ele: “nossa, eu ia aceitar na hora”. Falei: “Então, exatamente. O papai, essa semana, não vai gravar o podcast porque ele foi convidado pelo pessoal do Introvertendo, você tem noção? Pra gravar junto com eles!”. Aí, ficou com um atraso de uma semana o segundo episódio do ClandCast.

Tiago: Mas é pra você continuar e cuidar desse seu projeto. Então, acessem o podcast aí na sua plataforma favorita. E o Introvertendo volta em breve com um novo episódio. Um abraço pra você e até mais.

(Assinatura da Superplayer & Co)

Luca: Eu vou só falar um negocinho antes. Eu tava com muito receio quando eu tomei a minha vacina, que foi a AstraZeneca, eu tava com muito receio de falar que eu estava sentindo sintomas adversos, porque no meu caso parecia até que eu fui atropelado. Porque eu tinha muito medo de incentivar uma galera que já não queria tomar a vacina e precisava de alguma desculpa e tava com medo de incentivar esse tipo de pensamento. Então, assim, eu acho que compensa deixar alguma mensagem do tipo: poxa, independente do tipo de reação que você tiver, é sempre aconselhado você tomar a vacina. Eu tive febre, foi bem ruim. A Mariana só teve uma coriza. Mas ainda sim, independente do grau de reação que você tem, é sempre aconselhável tomar a vacina.

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