Interagir socialmente é um desafio de toda uma vida quando se é autista, ainda mais quando sua literalidade, sinceridade, dificuldade de entender contextos e emoções te coloca em situações constrangedoras. Neste episódio, trazemos histórias relacionadas a festas, rotina do dia a dia, interações românticas e sexuais em que gafes sociais marcaram momentos passados. Participam: Carol Cardoso, Luca Nolasco, Michael Ulian e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.
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Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:
- Teoria da Mente – The Complete Guide to Asperger’s Syndrome
- A (des)construção social do diagnóstico de autismo no contexto das políticas de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho
- Marca da Promessa – Wikipédia, a enciclopédia livre
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Transcrição do episódio
Luca: Sejam bem-vindos ao Introvertendo, eu sou Luca Nolasco, e dessa vez sou eu que apresento o programa. Hoje vamos falar sobre as gafes sociais da vida autista e conosco temos aqui o Tiago Abreu.
Tiago: E aí pessoal, provavelmente a gente vai rir bastante ou chorar bastante, dependendo do contexto.
Carol: (Risos)
Luca: (Risos) A Carol Cardoso.
Carol: Eita. Porque tu já disse meu nome, agora, o que que eu faço?
Luca: OK (risos). E temos aqui também o Michael Ulian.
Michael: Olá, aqui é o Gaivota, eu não faço a menor ideia como me comportar como um adulto.
Luca: O Introvertendo é um podcast feito por autistas e produzido pela Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Luca: O podcast é sobre gafes sociais da vida autista. Nós aqui vamos trazer e comentar sobre as situações mais constrangedoras e estranhas e engraçadas que a gente teve, que podem ter sido ocasionados por sermos autistas ou não, mas que a gente depois ficou bem constrangido.
Tiago: Primeiro é importante a gente delimitar o que a gente quer dizer quando nós falamos aqui em gafes sociais. E eu quis usar, principalmente, o conceito de gafes sociais apresentado no livro do Tony Attwood, que é um dos principais autores da história do autismo. Ele publicou na década de 1990 e revisitou na década de 2000 um livro sobre Síndrome de Asperger. A gente sabe que Síndrome de Asperger é um diagnóstico que está entrando em desuso, mas aqui no contexto o trabalho dele é bastante relevante, e aí ele fala um pouco de gafes no contexto do autismo dentro de um tópico que é bastante discutido quando a gente fala sobre autismo, que é Teoria da Mente. E lá, ele define gafe social como “uma ação ou comentário indiscreto”, que geralmente coloca pessoas em situação de constrangimento. Gafes sociais tem tudo a ver um dos principais critérios diagnósticos do autismo de acordo com o DSM-5, que é aquele manual que a gente já falou várias vezes em muitos episódios aqui, que diz respeito à dificuldade de interação social do autismo. Num desses tópicos, diz que o autista tem “déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos”. Isso tem tudo a ver com algo que a gente chama de Teoria da Mente. Não vou explicar aqui exatamente o que é Teoria da Mente, nós vamos fazer um episódio depois sobre isso. Nós temos até um episódio antigo, episódio 10, chamado Empatia, que nós vamos revisitar este ano pra explicar o que é Teoria da Mente, o que isso tem a ver com autismo e porque isso faz muito sentido com a vida social. Gafes sociais podem parecer um assunto não muito relevante quando a gente fala sobre autismo, mas na verdade é muito relevante sim. E eu quero trazer três motivos aqui. O primeiro é que sociais são extremamente comuns dentro da vida social de autistas. É muito comum, eu acho muito difícil conhecer autistas que não passam ou que não passaram por situações de gatos sociais, apesar de muitos talvez não terem uma compreensão muito aprofundada de quais situações de gafes passaram. Ela envolve todos os aspectos da vida, então envolve trabalho, envolve relação com a família, envolve relacionamentos amorosos e sexuais, envolve todos os tipos de relações na prática. E é algo que pode ser engraçado, mas também pode ser muito perigoso e estigmatizante, porque as pessoas podem relacionar isso como algo relacionado ao caráter dessa pessoa e pode trazer prejuízos para vida dessa pessoa que ela nem imagina, uma demissão, um relacionamento que se termina, problemas com a família, problemas com os pares, de uma forma geral. Então, a gente traz esse assunto aqui pra descontrair, mas também para servir de alerta, porque é parte dessas nuances do autismo, essas coisas bem pequenas ou talvez não tão pequenas assim, que as pessoas necessariamente não prestam muita atenção.
Luca: Com essa definição do Tiago, agora eu tenho uma pergunta um pouco mais besta. Qual foi ou, se foi, vocês tiveram alguma gafe pequena, coisas tosquinhas e pequenas assim, mas que vocês depois pararam pra pensar e ficaram remoendo por anos e anos? Com certeza, vocês devem ter alguma.
Michael: Eu provavelmente vou ter nenhuma história específica pra contar, porque tenho uma capacidade tão ruim de entender o que os outros estão sentindo em relação ao que eu faço, que é bem provável que eu realmente cometido muitas gafes, mas eu simplesmente não consigo compreender que eu fiz porque eu sou completamente dependente da pessoa falar: “olha, tu fez uma merda do caralho aí, hein?”.
Tiago: (Risos)
Michael: Então, assim, como geralmente nesses casos é algo mais sutil, geralmente, a pessoa não vai falar que tu fez algo e vai deixar pra você entender. Não consigo lembrar de nada que tenha acontecido, porque provavelmente aconteceu, provavelmente aconteceu muito, inclusive, porém a minha capacidade de perceber essas coisas acontecendo é basicamente nula. Deve ter acontecido várias vezes que eu tava fazendo algo muito estúpido e… (risos). Eu continuei fazendo, talvez, por horas, talvez por dias, talvez eu continue fazendo sem nem perceber, porque é isso, eu não percebo.
Luca: As minhas gafes que me incomodam mesmo, são coisas que eu fiz, ou que eu falei, que, geralmente, nem incomodam as pessoas à minha volta, mas eu passo dias pensando, dias, dias. Um exemplo pequeno foi de uma vez que uma amiga minha ia fazer um aniversário de 15 anos dela e era um aniversário todo chique. Ela me chamou, mostrou convite e tava falando assim: “traje a rigor”, alguma coisa assim. E eu não sabia o que era isso. Então eu só respondi: “puxa, eu odeio essa banda”. Ela me olhou por isso. Então, é uma coisa que não incomoda as pessoas, mas eu mesmo fico atordoado com as coisas que eu faço.
Carol: Eu tenho uma memória muito boa, então eu não esqueço as coisas de muitos anos atrás. E às vezes eu fico reproduzindo isso pras pessoas e as pessoas ficam: “pra que tu lembra isso, sabe?”. De coisas que elas disseram e às vezes elas ficam constrangidas com isso, assim, eu acho, eu não sei. Mas a questão que acontece comigo é: eu percebi que eu fiz alguma coisa errada, mas eu não sabia exatamente o que, e aí eu reproduzia essa conversa integralmente para minha irmã pra saber o que eu falei de errado e porque que é falta de educação falar isso que eu falei. Minha irmã é minha guia pra isso, assim, eu adoro, porque de vez em quando mando pra ela assim: “essa frase é falta de educação?”. Aí, ela: “sim, é muita falta de educação”, ela responde. E aí eu fico: “mas por que é falta de educação?”. Aí ela me explica. Tipo, quando eu era mais nova, eu não lembro se foi ela que me explicou, mas alguém me explicou. Talvez tenha sido a minha psicóloga da época. Que quando as pessoas elogiavam, elogiava minha roupa, as pessoas ficavam esperando eu dizer “obrigada”, mas eu não dizia porque pra mim eu não tinha que agradecer por uma roupa que não fui eu que fiz. Porque o elogio eu não deveria ser pra mim, deveria ser pra pessoa que fez a roupa. E aí ficavam me achando mal educada e arrogante, por eu não agradecer o elogio, mas era simplesmente de não entender mesmo, sabe? Até que alguém me explicou que quando a pessoa elogia a nossa roupa, ela elogia o nosso bom gosto. Aí isso fez sentido, a pessoa tá elogiando que você teve bom gosto ao escolher roupa. E aí sim faz algum sentido, mas assim, dificilmente as pessoas param pra explicar. E quando a gente não tem essa percepção de que a gente falou alguma coisa errada ou que a gente não sabe exatamente o que que a gente falou, mas não entende o porquê, ninguém vai chegar e vai explicar, a não ser que a gente se mostre realmente confuso, as pessoas geralmente assumem que a gente falou isso porque a gente é babaca, né?
Tiago: Eu me relaciono muito com isso que a Carol disse porque ao longo da vida eu fui juntando várias gafes e em várias situações sociais. À medida que eu também fui crescendo, comecei a ter uma maior percepção sobre isso. E eu tenho uma autocrítica extremamente exacerbada, a ponto de que às vezes parece que ela supera a quantidade de erros que eu realmente cometi na vida. Mas, enfim, isso é outro assunto. E isso, como consequência, fez com que, hoje em dia, parece que eu estou sempre pisando em ovos (usando uma metáfora aqui) nas situações sociais. Então, eu sempre estou reavaliando, pensando se eu estou fazendo uma besteira, às vezes um detalhe mínimo que eu não deveria me importar, eu tô com aquilo na cabeça. Eu também tenho a questão da memória, que a minha memória é muito vívida, então eu fico pensando nas coisas que aconteceram há anos e me sentindo culpado. E eu tive algumas situações sociais que foram realmente bem bizarras, então isso me traz sofrimento até hoje. E eu queria compartilhar minha primeira história. E essa é um pouco mais divertida porque eu não sofro por ela. Porque, enfim, ela também tinha uma informação extra que eu não tinha obrigação de saber. Eu fui passar uns dias na casa do meu tio. E a família do meu tio é toda adventista. E no adventismo você tem várias regras, né? Inclusive uma das coisas bem comuns entre pessoas que são adventistas é não comer carne de porco, por exemplo. E minha mãe me deu dinheiro nesse dia para que eu fosse pra lá pra comprar uma pizza, mas a minha mãe avisou: “não compre pizza que tem carne de porco”. E aí minha prima que tinha mais ou menos a minha idade, chegou pra mim e falou assim: “não vamos comprar de presunto”, e eu já tava consciente sobre isso. Eu fui pra uma loja junto com a minha prima e eu nem esperei ela dizer que sabor ela queria, talvez pelas regras sociais, considerando a restrição, poderia ter esperado, né? E eu não sabia que calabresa tinha carne de porco também eu pedi. E aí quando eu cheguei, eu ofereci e ninguém quis. E aí, qual foi a minha reação? Eu olhei pra pizza e falei: “tá, bom que sobra mais pra mim”. Eu comi tudo sozinho. E aí minha mãe ficou muito brava comigo quando ficou sabendo da história, mas eu não sabia que calabresa realmente tinha carne de porco.
Luca: Ah, Tiago, mas é aquilo que você tinha dito da autocrítica forte demais, cê não tinha como saber. Já a minha outra situação que eu tive, onde tinha uns 13, 14 anos, eu tinha acabado de sair do banho e uma amiga da minha mãe tinha acabado de chegar em casa, de visita. Eu saí do banho com a toalha enrolada na cintura e encontrei com a minha amiga, amiga da minha mãe, no corredor. E eu adorava ela e falei: “Lúcia! Como é que tá?”. E ela ficou com a cara fechada, eu não entendi. Depois de algumas horas, eu parei pra pensar: o nome dela não é Lúcia, é Sônia.
Carol: (Risos)
Luca: Eu sabia disso, eu falei errado mesmo. Além de tudo, eu tava pelado com uma toalha, né? Isso não ajuda muito.
Tiago: Peraí, você tava com a rola de fora?
Michael: (Risos)
Carol: Eita, menino (risos).
Luca: Não, eu estava com a toalha enrolada.
Tiago: Então, você não tava pelado, você estava com a toalha. É diferente.
Luca: Pra mim é a mesma coisa (risos). É tão constrangedor quanto.
Tiago: No ensino fundamental, eu tinha muita dificuldade de interação social típica do autismo. No horário do recreio, eu ficava com as tias da limpeza, conversando sobre assuntos, porque eu não conseguia me entrosar com a escola inteira e era bem difícil ter grupos, etc. Além disso, a minha forma de entrar nas relações sociais era um pouco bizarra. Não que eu evitava as pessoas, porque tem esse estereótipo de que o autista evita as pessoas, que o autista não quer interagir. Eu queria muito interagir, tinha gente na escola que eu realmente gostava, mas as pessoas não gostavam de mim por uma série de motivos, uma delas é que eu não sabia conversar. Lembro que mais ou menos na 6ª ou 7ª série, eu tinha um colega de sala que eu ia bastante com a cara dele, ele tinha o grupinho dele, eu não tinha grupo nenhum e aí eu pensei em formas de puxar uma conversa. Aí eu percebi que toda segunda-feira, pelo menos nas últimas três, quatro semanas, ele ia pra escola com a mesma roupa, era mais ou menos tipo um suéter, sabe? E eu achei aquela coisa interessante. Pensei: “poxa, curioso isso, né? Será que isso é planejado ou isso é coincidência?”. E aí, um dia eu cheguei pra ele, numa manhã de segunda-feira, falei assim: “ah, curioso que toda segunda-feira você está com essa roupa especificamente”. E aí, na minha leitura social, eu não sabia que isso poderia soar ofensivo, né? E aí ele começou a me xingar e falar uma série de coisas e eu estava esperando que aquela informação, aquela interação ia, na verdade, ser interessante. E aí ele ficou com mais raiva de mim e, enfim, era esse que era o meu padrão de socialização na escola.
Carol: Poxa, eu não entendi porque isso seria ofensivo.
Tiago: Eu entendi, tempos depois, que isso daria a entender que eu estava de alguma forma criticando a vestimenta dele, o fato de repetir as roupas, sabe? Essas coisas assim.
Luca: Poxa, eu acharia super legal, porque eu separava roupa por dia da semana.
Carol: Eu também faço isso, mas é porque eu tenho roupa, tipo assim, eu tenho, sei lá, sete camisas. E aí, a camisa acaba durante a semana. Então, tem, tipo, a ordem de lavagem é da roupa da semana, então basicamente toda quarta tô com a mesma roupa.
Tiago: É, mas isso é funcional o bastante pra um autista, porque pra neurotípico não devem ter esses padrões. Então no caso dele era ofensivo.
Luca: Eu tinha a camiseta da segunda, da terça, da quarta.
Carol: Eu queria falar uma história que é sobre comida também, porque tu falou a história da pizza e eu me lembrei dessa história. Essa história envolve uma confusão, que é mais ou menos sobre uma coisa que a gente não sabia uma informação prévia que a gente não tinha e que gerou uma situação meio desconfortável. Teve um ano que eu fui passar as férias no Rio de Janeiro com a minha família. E aí um desses dias a gente foi passar a noite na casa de uma amiga da minha avó. Ela perguntou o que a gente queria jantar, se a gente queria hambúrguer. E aí, claro que eu quis, né, porque a outra opção era arroz com lentilha. E aí, eu não sabia que no Rio de Janeiro, não sei se é assim em todo lugar, mas nessa casa que eu fui, as pessoas chamam de hambúrguer só carne. Não é aquele sanduíche que tem pão, salada, queijo, batata palha e um monte de coisa. E na minha cabeça, pelo menos aqui, as pessoas não chamam hambúrguer só a carne, elas chamam o hambúrguer aquele sanduíche imenso que tem. E aí, eu disse que eu queria hambúrguer. E aí, ela, depois que ela já tava fazendo, ela me perguntou, você quer seu hambúrguer com pão ou com queijo? E aí, eu fiquei meio “mas como assim? O hambúrguer tem pão e tem queijo, não tem isso de ter que escolher”. Mas aí eu falei que eu queria pão. E aí quando ela trouxe, era tipo um pão de forma, uma carne de hambúrguer e só. E aí, eu olhei pro hambúrguer e falei: “só isso?”. Minha mãe ficou com muita vergonha, ela brigou depois. No fim eu fiquei com fome ainda e comi arroz com lentilha.
Tiago: Ou seja, não precisava ter apresentado as duas informações, você comeria as duas coisas.
Carol: Exatamente (risos). Ai, meu Deus do céu.
Michael: Tava lembrando agora, acho que foi a primeira história que o Luca contou do evento do traje a rigor. Isso me lembrou de uma coisa. Várias regras ou etiquetas sociais assim, não faz o menor sentido pra mim. Então, por exemplo, quando eu era mais novo, acho que tinha uns 10 anos, alguma coisa assim, teve casamento de um tio meu. “Tu tem que ir lá, vai ser numa igreja e tal e tu tem que ir, tu tem que fazer parte, tem que se vestir de assim, assim, assado e beleza?”. Não! Eu fui porque tinha que ir, mas eu não vou me vestir diferente do que eu me visto, porque eu não tenho, eu não vejo sentido prático ou lógico pra eu ter que usar uma roupa que eu não me sinto confortável usando. Não vou entrar num lugar cheio de gente, porque eu não me sinto confortável, então vou ficar aqui umas 3, 4 horas seguidas do lado de fora e é isso aí. Literalmente isso não me afetou no sentido de: “puta merda! que merda que eu tô fazendo?” até hoje, porque felizmente eu não vejo nenhum sentido em comemorações gerais, assim, de aniversário, festa de casamento, literalmente qualquer tipo de festa. Não entendo. O conceito de comemorar X coisa não cabe na minha cabeça e eu não entendo porque mesmo que você queira fazer isso você tenha que ter uma etiqueta diferente do que você faz normalmente ou simplesmente não sei porque, então eu não vou fazer, pronto!
Carol: Eu acho muito estranho esse tipo de coisa porque as pessoas, geralmente, dizem que são os autistas que são muito rígidos de pensamento, que são pessoas inflexíveis e têm uma coisa fixa e não mudam, mas quando a gente pensa em regras sociais, as pessoas são extremamente inflexíveis. Então existe uma coisa que é socialmente aceita e uma coisa que não é socialmente aceita e ninguém questiona o porquê disso, quando a gente questiona as pessoas ficam: “ué, mas é assim, tipo, por que que tu tá questionando isso?”. E isso não faz sentido porque se a gente que é rígido, por que que nem elas perguntam ou porque que nem se abrem pra se perguntar sobre o porquê daquilo que elas estão acostumadas a fazer, sabe?
Luca: Emendando na história do Michael que ele tinha trazido antes de casamento, eu tinha lembrado de uma minha em casamento também, que eu nem lembrava, ficou assim, incrustada na parte funda do meu cérebro, que era que é um casamento de uma tia, sei lá quem, prima de terceiro grau, não tenho ideia de quem foi. E eu tinha 12 anos, 2012, na época, todo mundo vestido, obviamente, com traje bonito, às vezes de terno, às vezes, vestido, só roupas bonitas. Foram tirar fotos, coisas lindas. E eu fico pensando, hoje em dia, cara, eu tava vestido com blusa dos memes, na época, a coisa mais feia do mundo e o casamento de alguém eternamente marcado porque eu tava com blusa dos memes. Eu fico pensando nisso. Na época, eu não via problema nenhum, hoje em dia é péssimo, eu não consegui me perdoar por isso.
Michael: (Risos) Cara, pensa bem, você devia estar extremamente confortável enquanto tá todo mundo naquelas roupas apertadas, cara, que provavelmente vão usar uma só vez na vida.
Luca: Pô, eu tava achando maravilhoso usar aquela blusa. Eu não vou negar, não.
Carol: Pois é, tem essas coisas, assim, que eu não entendo e que me custa muito, sabe? Antigamente eu até ia porque eu achava que eu tinha que fazer essas coisas, mas tipo, fazer maquiagem, fazer unha, usar salto alto e coisas desse tipo, era uma coisa muito desgastante pra mim e continua sendo. Só que agora eu decidi que eu não vou mais fazer esse tipo de coisa e é isso. Se a pessoa gostar de mim, eu sei que, às vezes, as pessoas veem isso, como a gente tivesse que fazer esse sacrifício pelas pessoas que a gente gosta, mas tem certas coisas que não vale a pena. Porque, tipo, do que vale eu ir para uma festa de uma pessoa que eu gosto e odiar a festa porque eu tô extremamente desconfortável, sabe? Eu acho que nessas situações até sorrir é desconfortável porque é tanto desconforto e ninguém gosta de uma pessoa que tá com a cara fechada sempre. Só que a gente não estaria assim se não fosse tanto desgaste e tanta pressão pra performar de um jeito, sabe?
Tiago: É como diria aquela canção: parece cocaína, mas é só tristeza.
Michael: (Risos)
Carol: (Risos)
Luca: Vai se foder, Tiago (risos).
Tiago: Essa questão de regras sociais está muito relacionada às gafes. Porque se a gente não tivesse grande parte das regras que temos em sociedade, talvez muitos mal-entendidos não ocorreriam. Eu tenho uma história nesse sentido que veio até da época que eu tive o diagnóstico. Eu já contei aqui no Introvertendo, em alguns episódios, especialmente o episódio 69, que eu tive uma época que eu trabalhei nos Correios. Foi uma época muito importante na minha vida, porque eu fiz algumas amizades que eu tenho até hoje e também foi por meio do meu trabalho que eu consegui ir atrás do diagnóstico. E aí, quando eu estava terminando o contrato dos Correios, o nosso chefe lá da unidade que eu e o Fábio, um amigo meu, trabalhávamos, ele chegou pra gente e propôs de fazer a festinha de despedida. E pra mim, isso não fazia sentido por conta do tempo. Eu fiquei agradecido, obviamente, assim, mentalmente, por isso, mas não tinha como, porque eu já estava na universidade, eu ficava lá até meio dia, uma hora da tarde, na universidade, já vinha correndo pra unidade dos Correios, eu trabalhava e ia embora. E aí eu cheguei pra ele e disse assim: “olha, não vai dar porque eu tenho aula até meio-dia”, ele pensou em várias alternativas e nenhuma alternativa fazia sentido. E aí eu vi que ele ficou irritado e falou assim: “ah, então também não vou fazer nada não”. E aí, depois o Fábio chegou pra mim e disse assim: “você não devia ter falado a quantidade de problemas, essa comemoração não ia acontecer de qualquer forma, ele falou pra ser educado com você”. E aí ele disse assim: “agora ele provavelmente deve ter ficado com raiva, achando que você não tá se importando com ninguém, que você não gosta de ninguém aqui”. E isso não fazia sentido pra mim. E aí, eu me senti mal depois, porque eu entendi que era uma gafe social.
Luca: Uma parte desse tema acabou sendo, a gente, às vezes, fica extremamente confortável, mas isso pode ser que venha ao custo do conforto dos outros. Nessa linha, minha última história é o aniversário de um amigo meu, um amigo da escola. O aniversário dele era numa pizzaria bem chique, onde tinha videogame, tinha rodízio de pizza, tinha tudo. E a mãe do menino ia pagar por cada cabeça de amigo.
Tiago: Toda situação social da sua vida é um local chique, né?
Michael: (Risos)
Carol: (Risos) Esse menino é muito vip, meu Deus!
Luca: É um local chique dos meus 11 aos 12 anos.
Tiago: Ah, tá, vou fingir que você não mora na classe média alta de Goiânia, Luca (risos).
Luca: (Risos). A mãe do menino iria pagar por cada cabeça de amigo que iria comparecer à festa. Bom, eu fui, estava me divertindo, jogando videogame e tudo mais, aí chegou a hora do jantar, fomos comer a pizza. Tava todo mundo servindo e eu não tava pegando nada. Ela perguntou: “por que que cê não tá pegando? Cê tá bem?”. “Eu não, eu tenho intolerância à lactose, eu não vou comer nada não. Vim aqui só pra me divertir mesmo”. Pagou uma grana pra eu entrar e não comer nada. Depois, hoje em dia, eu penso que eu me sinto um pouco mal pela senhora.
Carol: Eu acho que na minha vida toda, as maiores gafes que eu já tive foram relacionadas a relacionamentos amorosos, porque, meu Deus do céu, eu acho que esse setor não avança na minha vida porque eu só falo besteira. Eu acho que é muito difícil as pessoas ultrapassarem a barreira da pessoa estranha que não sabe se comportar nessa situação, pra realmente me conhecer. Porque tem duas histórias especialmente marcantes em que uma foi uma clássica em que a pessoa me chamou pra eu ir na casa dela pra assistir filme e eu achava que era pra assistir filme mesmo. E depois eu fiquei sabendo que existem várias regras em relação a isso e que geralmente quando a pessoa chama pra ver filme não é pra ver filme.
Tiago: (Risos)
Michael: (Risos)
Luca: (Risos)
Carol: E que se a pessoa e se a pessoa curte quatro fotos nossas no Instagram significa que ela tá interessada. Então é esquisito isso, mas enfim, aí eu cheguei lá e a menina ficava enrolando demais pra colocar o filme e eu ficava: “tipo, mas qual é o filme que a gente vai ver?”. E aí ela não escolhia o filme. E aí eu fiquei: “não tô entendendo”. E uma hora ela chegou e disse que gostava muito de mim. E aí eu não entendi, porque eu pensei que a gente ia assistir o filme. E aí eu fiquei: “a gente não ia assistir o filme?” e aí ficou um pouco estranho. Aí eu fui no banheiro, liguei pra minha irmã e pedi pra ela me buscar. E eu fui embora. E foi isso. Eu não sei, eu acho que foi muito confuso pra minha cabeça esse lance de ir pra um lugar pra fazer uma coisa e chegar pra fazer outra coisa. E teve outra história que foi muito bizarra, que eu falei com uma amiga que eu tava fazia um tempo sem ficar com ninguém, que eu estava sentindo falta. E aí, ela chegou pra amiga dela dizendo que eu tava afim de ficar com alguém e perguntou se ela queria ficar comigo. E aí depois ela voltou pra mim e falou assim: “olha, eu falei com a fulana, ela disse que quer ficar contigo”, aí eu fiquei: “não foi isso que eu falei pra ti, como assim?”. E aí, quando eu vi, levaram a gente pra um lugar e a gente começou a conversar e ficou só nós duas conversando. E aí, uma hora, eu entrei em pânico, aí eu falei assim: “desculpa, eu não sou assim”. E aí eu fui embora e fui pra parada de ônibus e fui embora da universidade. E foi isso, e aí, depois, tanto a minha amiga, essa menina e o amigo dessa menina, ficaram com raiva de mim. Só depois que que eu expliquei que não tinha entendido a situação é que eu acho que as coisas ficaram mais esfriadas e as pessoas esqueceram isso. Mas foi uma situação muito constrangedora e eu até hoje fico remoendo isso. Acho que só depois que eu fui diagnosticada que eu consegui superar, porque eu entendi que é como eu funciono mesmo, sabe?
Tiago: Essa primeira história é bem curiosa, porque é bem típico. As pessoas querem transar, mas elas têm vergonha de dizer que querem transar. Então, elas usam eufemismos, tipo, “bora assistir um filme”, etc. Mas, pra mim, eu consegui entender isso. Pra mim era meio óbvio porque tem até piadinhas, memes na internet relacionados a isso, que a pessoa te chama pra assistir filme e aí você chega na casa da pessoa e não tem nem televisão.
Carol: É, mas é que eu demorei muito pra entender esse tipo de coisa. Eu, eu não entendia, por exemplo, quando a pessoa estava interessada em mim, porque eu não entendia o porquê, sabe? “Mas ela nem me conhece, como assim tá interessada?”. Eu não entendia que as pessoas ficam interessadas do nada, começavam a agir estranho e eu não entendia esse comportamento estranho e as pessoas também não entendiam o meu comportamento estranho e dava errado toda vez.
Tiago: Eu queria encerrar este episódio contando a história mais bizarra de todas relacionadas ao tema, que é uma coisa que me traz sofrimento até hoje. Só que antes, eu quero contextualizar bem pra todo mundo que tá ouvindo, inclusive vocês, conseguirem sentir o constrangimento no nível máximo, beleza? Quem ouviu o episódio 131 do Introvertendo, Autistas Ex-evangélicos, vai lembrar lá que eu falo que a maior parte da família do meu pai é adventista. E quando a gente fala sobre religião, a gente envolve um conjunto de regras sociais que pertencem aquele contexto específico. E por exemplo, quando você fala sobre evangélicos, você não está falando sobre uma massa homogênea, você tá falando sobre um público muito diverso, que não necessariamente é consensual em suas práticas e em seus gostos. O adventismo, por exemplo, tem uma coisa muito específica com alguns costumes. Frequentar a igreja no sábado, não comer carne de porco, ter um repertório musical específico… Por exemplo, adventista geralmente só ouve músicas de músicos da Igreja Adventista. Beleza. Um dia eu estava na casa do meu tio, no final de semana e aí a minha prima mesma lá da pizza disse pra mim que ia ter um mini evento dentro da igreja dela, no sábado, no fim de tarde, que, geralmente, as pessoas demonstravam seus talentos, tocando música ou fazendo alguma coisa assim. Nessa época da pré-adolescência, eu era muito fã de uma banda chamada Trazendo a Arca. Tinha toda a discografia, comprava os discos, assistia shows na internet, acompanhava fóruns no Orkut e etc. E nessa época aí, mais ou menos 2008, eles estavam no auge do sucesso, principalmente devido a um álbum chamado Marca da Promessa, que foi um álbum muito famoso. Nesse dia, eu falei: “eu vou cantar uma música dessa banda”. Só que essa banda não é adventista. E esteticamente, musicalmente, tem nada a ver com adventismo. É uma banda pop rock, em certa medida, e o adventismo tem uma coisa mais clássica, mais refinada musicalmente.
Michael: (Risos)
Tiago: E eles olham com muita desconfiança qualquer manifestação musical ou religiosa mesmo, evangélica, de outros meios. Beleza, já estava fora desse contexto totalmente. Então, eu entro naquele templo totalmente organizado, totalmente ordenado, o adventismo é muito cheio dessas coisas estritas. Falo que eu quero fazer uma participação, eles conseguem me dar um espaço, eu levo o CDzinho ali do Trazendo Arca com a música “Marca da Promessa”. E eu venho nessa época de um contexto de um tipo de igreja totalmente diferente, que tudo é muito alegre, tudo é muito explosivo. Então, vocês já conseguem imaginar o nível de contraste entre o adventismo e o que eu estava acostumado. Beleza, eu pego o microfone e aí primeiro que eu começo a falar coisas antes da música tocar propriamente dita. Isso já tá fora da liturgia adventista. Isso já causa um estranhamento nas pessoas. Era tolerável porque, sei lá, eu tinha 11, 12 anos nessa época. Beleza. Antes da música começar, eu peço pra todo mundo ficar de pé.
Carol: Hum.
Tiago: Os adventistas não ficam de pé em uma situação como essa. Todo ficou de pé, desconfortável. A música começa a tocar, ninguém está acompanhando a música junto. E eu estou lá naquela situação, sabendo que eu estou fazendo uma merda gigantesca.
Michael: (Risos)
Carol: (Risos)
Tiago: Mas eu não tinha como pegar o microfone e jogar no chão e sair correndo. Mas a minha vontade era. Chegou no final da música, eu pedi pra fazer uma coisa que ocorre em algumas instituições religiosas e tal, mas que não cabe no adventismo, bater palma no final, mas não era pra mim. Dentro do contexto religioso tem uma lógica. Eu falei, ninguém se mexeu, todo mundo continuou com cara de tacho. Aí, eu saí e basicamente a minha vontade era de sair correndo daquele lugar.
Michael: (Risos)
Tiago: Obviamente o constrangimento foi tão grande que ninguém esqueceu disso anos depois. Porque tem gente dessa igreja que continua frequentando a casa do meu tio. E o meu medo era que toda vez que eu visitasse a casa do meu tio tinha alguma visita e as pessoas me reconheciam. E eu imagino que talvez tem gente que ainda lembra. Isso me faz mal até hoje. Era isso que eu queria contar.
Michael: Fica aqui a dica do dia: você sai pra algum lugar, que seja a esquina no seu vizinho, faça pesquisa, se intere. Às vezes a diferença entre levar um chute na bunda ou não, é saber onde cê tá se metendo.
Luca: (Risos)
(Após o fim do episódio)
Tiago: E aí, eu vi os sabores e falei: “calabresa”, eu não sabia que calabresa envolvia carne… Que desgraça de cachorro do inferno!
Michael: (Risos)
Tiago: Desculpa, pessoal. Começar de novo, aqui, ó.
Luca: (Risos)
Carol: (Risos) Eu tenho que avisar que eu tô rindo junto também, porque tava desligado o microfone.
Tiago: Ah, sim. Mas foi mal, mas é que esses cachorros tão me irritando às vezes.
Carol: Tudo bem.
Tiago: O Willian foi gravar vídeo aqui ontem, tava uma desgraça.