Introvertendo 157 – Autismo no Ensino Superior: A Palestra – parte 1

Tiago Abreu e Willian Chimura promoveram, durante evento da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), uma palestra sobre autistas no ensino superior brasileiro. Durante mais de 2h de diálogo, os dois abordaram a atual definição que temos sobre autismo, os cursos de graduação no país, a invisibilidade dos autistas e o que pode ser feito para mudar o cenário. Este episódio é a primeira parte da palestra. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou, geralmente, um dos apresentadores do Introvertendo, e como, com certeza, alguns de vocês, ouvintes, devem saber, nós estamos em um período de férias em que o nosso podcast se mantém semiativo com o lançamento de episódios a cada duas semanas. E agora, nesse período, a gente quer trazer aqui uma palestra que ocorreu no dia 21 de outubro de 2020, promovida pela galera da Psicologia da Universidade Federal de Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, um evento online, sobre Psicologia e Processos de Resistência. Nessa ocasião, eu e Willian Chimura, dois integrantes do Introvertendo, falamos sobre autismo no ensino superior na Universidade e foi uma palestra bem longa, que a gente deu conjuntamente. Se não me falhe a memória, foi o segundo ou terceiro evento que eu e o Willian fizemos juntos. É sempre legal fazer essas coisas com o Willian, porque a gente conversa muito sobre autismo. A gente tem um ativismo muito próximo em muitas questões, e falar de ensino superior foi muito legal,  a gente pôde trazer tanto as nossas experiências, quanto também dados mais teóricos que a gente está trabalhando. Foi um evento super legal, eu já tinha uma expectativa de que seria algo muito legal, e eu Willian gravamos os nossos áudios separadamente, enquanto nós palestrávamos, e resolvemos trazer aqui no Introvertendo esse conteúdo na íntegra. É claro, se você quiser assistir no YouTube, tá disponível também, mas aqui você vai ouvir com uma qualidade de áudio melhor. A primeira parte sai esta semana e a segunda parte sai daqui a duas semanas, e vocês vão poder conferir sem cortes, uma coisa bem completa mesmo. Então, abraço pra você e até breve. 

Beatriz: Meu nome é Beatriz, eu faço parte do Centro Acadêmico de Psicologia da UFGD, e hoje a gente vai ter a terceira palestra da 10ª Semana Acadêmica e 4º Simpósio da Pós-Graduação em Psicologia. E o tema da palestra de hoje é Neurodiversos no Ensino Superior. Hoje a gente vai ter Willian Chimura, que é mestrando em Informática para Educação pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Ele tem um canal aqui no YouTube e ele é programador. Ele pesquisa como aplicativos e jogo podem contribuir pra avaliação e aprendizagem de crianças com o Transtorno do Espectro Autista. Além dele, a gente tem a presença do Tiago Abreu, que é formado em Jornalismo pela UFG e Técnico em Informática para internet pelo IFG. Atualmente, ele organiza um podcast chamado Introvertendo, que é um podcast onde autistas conversam. E é isso, pessoal. Boa palestra. E agora eu vou passar a palavra pro Tiago. 

Tiago: Olá, muito prazer de estar aqui. Nossa palestra, como o título foi anunciado, é Neurodiversos do Ensino Superior. A gente deu uma adaptada, porque quando a gente fala sobre neurodiversidade, a gente também deveria levar em consideração TDH, dislexia, outras condições, então nós reduzimos esse recorte pro autismo, porque só o autismo já dá um assunto bastante denso. Então é um prazer estar aqui, falando nesse evento da UFGD, junto com o Willian, também, que teve um processo de ensino superior, assim como eu, e a gente tem muita coisa pra contar e compartilhar aqui. 

Willian: É verdade, Tiago. Eu espero que a gente consiga explorar bem esse tema. Na verdade eu fiz questão que fosse uma palestra, assim, mais no bate-papo, porque é sempre importante a gente pensar também em quão generalizável são as nossas experiências no ensino superior. Então, é claro, obviamente, a gente está falando apenas de dois autistas aqui. Existem muitos autistas no ensino superior, nas diversas instituições do Brasil, mas tendo, pelo menos, mais do que uma experiência, eu acho que isso deixa o debate muito mais rico e muito mais interessante, mesmo porque é um tema importante, é um tema relevante que é pouco discutido, na verdade. Não sei se você concorda comigo, mas eu pelo menos entendo dessa forma. 

Tiago: Sim

Willian: E acho que vai ser uma coisa muito legal da gente trocar experiências aqui mesmo, compartilhando com o pessoal. Então, é um prazer enorme estar aqui, falar sobre esse assunto. Ainda mais com o Tiago, que é um autista, que eu sei que tem muito interesse nesse tema, né, Tiago? 

Tiago: Bastante. E a gente vai saber um pouco mais hoje. Além disso, também, a gente está fazendo parte de um movimento que está se construindo, a Autinc, que é formada por autistas que têm interesse no ativismo do autismo, e também de autistas pesquisadores pelo Brasil inteiro, alguns ainda informação, alguns que já são professores universitários. Então, a gente carrega um pouco dessa pauta, e o ensino superior é muito importante dentro dessa etapa. 

Willian: Ah, sim, com certeza. Nós somos uma organização, estamos reunindo autistas, pesquisadores, professores, como o Tiago falou, há mais ou menos um ano, né Tiago? Justamente pra elevar o nível do debate, pelos diversos aspectos do que envolve o autismo na sociedade. Mas é claro, o recorte aqui do Brasil, é o nosso interesse, mas também diversos outros temas se expandem quando a gente dialoga sobre o autismo. Mesmo quando a gente fala sobre autismo no ensino superior, ainda assim a gente tem várias vertentes dentro desse tema. Bom, por que falar então de autismo e ensino superior? 

Tiago: Certo. A gente escolheu quatro pontos pra poder falar sobre autismo e ensino superior, pra justificar a importância desse tema. Porque quando a gente fala sobre autismo e educação, a gente tem muito aquela ideia da infância, isso não é errado, porque o autismo é o transtorno do neurodesenvolvimento. Então, a gente tá falando exatamente sobre o desenvolvimento de um indivíduo, então, por isso que tem esse enfoque na infância, mas a gente precisa entender a educação como algo muito além disso. Um processo que começa pela alfabetização e que vai encaminhar esse indivíduo até o doutorado e até depois disso, se essa pessoa virar um professor, um pesquisador. E isso também está diretamente ligado à ideia de que autistas, enquanto pessoas com deficiência, precisam ser acompanhados por toda a vida. Por mais que nós, por exemplo, tanto o Willian quanto eu, sejamos pessoas que, conceitualmente, podemos nos considerar autistas bem desenvolvidos, nós temos uma vida independente, a gente tem renda, a gente tem vários aspectos que nos garantem essa autonomia, a gente precisa de um certo acompanhamento em um aspecto ou outro, porque dificuldades ainda vão existir. Além disso, existem duas grandes vertentes quando a gente fala de ensino superior, tanto em relação aquele que vai permanecer na universidade enquanto pesquisador/professor, que vai seguir a área da docência, quanto aquele que vai para o mercado de trabalho. Então, essas duas etapas, independentemente se você vai seguir uma ou outra, também é importante na formação e, além de tudo, na autonomia do indivíduo. E, por fim, também, a gente quer trazer uma coisa muito importante: existem autistas pesquisadores, não só em autismo, como também em outras áreas e eles podem contribuir pras suas áreas de interesse e pra eles contribuírem, pra eles permanecerem na universidade, eles precisam ser assistidos pra que não haja evasão. 

Willian: Bem interessantes esses tópicos. O primeiro tópico, principalmente, me lembra muito de uma questão, uma crítica, no sentido de que quando a gente fala sobre autismo, a gente geralmente pensa em uma criança. Pelo menos quando a população geral vai ter um primeiro contato com o autismo, seja pelo dia 2 de abril, capa de revista, você sempre pensa em uma criança. De fato, a minha pesquisa, também, é mais voltada  paras questões relacionadas a crianças, e a gente vê na literatura que há muitas pesquisas que são mais voltadas pra essa etapa da vida, e tem poucas, pouquíssimas, pesquisas que contemplam a questão do autismo na fase adulta. Então, também tenho iniciado pesquisas nesse sentido, por conta disso também. E o Tiago, a gente sempre tá conversando sobre esses temas. Muito bem esclarecido aqui também que, por via de regra, como o Tiago bem falou, os autistas precisam de acompanhamento ao longo da vida toda, porque se trata de um transtorno do neurodesenvolvimento, por mais que, muitas vezes, a gente possa ter sim uma capacidade cognitiva preservada ou até mesmo acima da média, há determinadas instruções, determinadas formas de expor uma informação, em uma sala de aula –  pensando em um material multimídia –  que, tipicamente, pode ser bem interpretado, pra grande maioria das pessoas, que, tipicamente, pode ser usado muito, por exemplo, alguns recursos, artifícios, com figuras de linguagem, ironia e etc. Claro, só citando exemplos estereotipados, por enquanto, daqui a pouco a gente vai falar mais sobre isso, e que se espera que a grande maioria dos alunos consiga entender aquele conteúdo ali, mas que, na verdade, nem sempre, por mais que isso seja um contraste muito grande, algo muito contra-intuitivo. Eu costumo dizer, para a maioria das pessoas que não conhecem o autismo a pensarem: “Poxa, mas o Willian e o Tiago, apresentam, palestram, fazem mestrado, é claro que eles vão entender tal coisa, é claro que eles vão entender dessa forma, é claro que eles vão entender isso aqui.” Mas não é claro, na verdade. Então, é uma coisa muito curiosa de se ver, assim como ainda existem formas, principalmente formas mais abstratas e genéricas de fornecer instruções, que a grande maioria pode até entender, mas os autistas podem ter uma certa dificuldade, tendo ali a sua avaliação prejudicada, sua atividade prejudicada. Então, realmente é algo muito importante da gente trazer isso aqui. E eu entendo, também, o ensino superior como uma via de acesso a outras etapas da vida. Pra mim, foi a vida acadêmica, eu quero seguir a área do mestrado. Antes de decidir ter seguido o mestrado, doutorado e a vida acadêmica, eu queria, na verdade, ingressar no mercado de trabalho, esse era o meu sonho. “Ah, vou, ser um bom profissional, vou ter uma carreira legal como programador e etc., e aí eh nem eu mesmo consegui prever quão difícil seria essa carreira. Então, eu acabei mudando, gosto muito mais do que eu faço, na verdade, agora. Mas, de qualquer forma, acho que esses pontos aqui realmente justificam bem por que falar sobre autismo no ensino superior. E não necessariamente somente no ensino superior, muitas outras coisas que a gente vai falar podem ser generalizáveis para o mestrado, o doutorado, né, Tiago? 

Tiago: Isso, acho que o primeiro passo é as pessoas entenderem que, independentemente de você ser um autista bem desenvolvido, existem certos pré-requisitos dentro do ambiente social que, muitas vezes, por mais que a gente tenha habilidade em algumas áreas, em outras a gente não vai ter, e a gente precisa ser acompanhado, para realmente conseguir terminar o curso. Às vezes é uma questão muito básica, de apenas terminar ou de conseguir concluir uma disciplina. 

Willian: Perfeito, vamos passar pra próxima. Quando a gente fala sobre neurodiversidade, um conceito que ainda está sendo cunhado aqui no Brasil. Tiago, não sei se você vai concordar comigo, ele ainda é um termo que engatinha nas discussões. É muito comum que haja definições um pouco diferentes. Então, é ainda um termo um pouco amplo em sua definição. Mas a gente gosta de especificar bem quando a gente está falando, sobre o nosso assunto que a gente vai abordar aqui, o Tiago falou que a gente vai fazer esse recorte do autismo, mais especificamente. E também, dentro do autismo, há outros recortes a serem feitos. A gente entende que há um pré-requisito pra basear toda a nossa discussão, da gente conseguir, pelo menos, entender um pouco do que seria o autismo. Hoje em dia, o modelo mais popular, mais atualizado, que a gente usa, é a noção de transtorno espectro. O Transtorno do Espectro Autista, ou TEA. Então quando a gente fala sobre espectro, a gente já tá, justamente, se referindo ao fato de que você encontra uma grande variabilidade nos níveis de dificuldade, nos níveis de ajuda que essa pessoa precisa e nos níveis de severidade. Ou seja, comprometimento, déficit de habilidade, que são muitas vezes esperadas no desenvolvimento típico. E esses níveis variam muito. Existem dois principais domínios do autismo, que são que são deficitários em relação ao desenvolvimento típico, que é a questão da comunicação e interação social e outro domínio é a questão dos comportamentos repetitivos e os interesses muito restritos. Então, todas as pessoas com autismo têm prejuízos nessas habilidades, desses conjuntos, só que variando de nível pra nível. Então, aqui a gente traz uma proposta de categorização, de como a gente pode entender o autismo de acordo com o CID-11, que é o Código Internacional de Doenças, apesar de o autismo não ser uma doença, mas é o nome da classificação internacional. E aqui então a gente traz pra ilustrar um pouco melhor como a gente pode compreender o autismo.

Dessa forma, a gente pode entender que as pessoas que são diagnosticadas com autismo vão ter prejuízos em, principalmente, duas variáveis. Elas podem ser categorizadas em base de duas variáveis. A primeira é se essa pessoa tem um uso da linguagem funcional com prejuízo, sem prejuízo ou ausente. A segunda é se essa pessoa tem ou não tem um transtorno de desenvolvimento intelectual também acompanhado, que pode existir nos casos de autismo. Essa aqui é uma das formas de se classificar, a gente trouxe a do CID-11 porque acaba sendo a mais atualizada de acordo com a literatura científica.

Então, a gente acaba tendo seis subcategorias.

É interessante a gente ver que, por exemplo, há casos de autismo, que serão com transtorno de deficiência intelectual presente e sem o uso da linguagem funcional. Então, são pessoas que não vão conseguir, de alguma forma, usar a linguagem funcional para se comunicar, com a função de se expressar, de ler algo, decodificar aqueles códigos pra extrair alguma informação deles. Algumas pessoas que vão conseguir fazer isso de uma forma minimamente presente, só que com algum prejuízo, ou usam da linguagem de uma forma funcional a grande maioria do tempo, só que com algum prejuízo e as pessoas que não vão ter, aparentemente, nenhum prejuízo em usar a linguagem funcional. 

Aqui é importante também dizer que usar a linguagem de uma forma funcional, como a gente está falando aqui, não necessariamente significa que nós não temos prejuízos de comunicação, porque se comunicar tem muito mais além do que apenas usar a linguagem de uma forma funcional. Tem tudo a ver com as expressões,  gesticulações, e todas as complexidades que a gente sabe. Então, eu e o Tiago nos situamos nesse código aqui, o 6A020, nesse quadrante aqui.

Enquanto, lá no outro extremo, a gente tem outro quadrante, o 6A025, que são casos de maior severidade, que requerem um apoio muito substancial, muitas vezes. Então, quando a gente vê essas subcategorias, a gente tem que pensar necessariamente em adaptações diferentes, muito provavelmente. Na verdade, a gente vai precisar de adaptações diferentes pra todos os casos, mas ainda assim você pode pensar que o nível de apoio que essas pessoas vão precisar, certamente vão ser, sim, diferentes, de uma forma bem expressiva, muitas vezes, de acordo com qual quadrante que ela está encaixada. 

É claro que isso aqui é apenas uma forma de classificar, pra gente saber exatamente como que a gente vai fazer as adaptações. Há uma necessidade de uma avaliação em base da funcionalidade dessa pessoa, ou seja, o que ela consegue, o que ela não consegue, o que ela tem ajuda, o que que ela precisa de ajuda, o que que ela não precisa de ajuda, mas é especificamente, não em base apenas de um código ou de uma classificação de um mais biomédico, vamos dizer assim, mas ainda assim é o modelo que a gente tem nesse momento, só pra dar um panorama geral aqui do que seria o autismo, pra vocês entenderem um pouco da pluralidade, da heterogeneidade que a gente encontra no autismo e os diversos déficits que a gente pode ter.

Tiago: E aí a gente chega à grande questão: porque pra gente falar de autismo no ensino superior, a gente precisa entender o que a gente tem até hoje. E o que a gente tem é o censo da educação superior, que é produzido pelo INEP, que mostra ali detalhes sobre as matrículas e as permanências dentro do ensino superior brasileiro. Se não me engano, anualmente, desde 1995. E aí, pra gente primeiro entender como é que a gente discute autismo do ensino superior, vem a grande pergunta: quantos autistas há nas instituições, tanto públicas quanto privadas brasileiras?

E a gente tem um provável número que é 1.532. Eu digo esse número provável porque o Willian acabou de falar ali sobre o CID-11, O CID-11 só vai entrar realmente em vigor no ano de 2022, e por enquanto aqui no Brasil nós usamos a edição anterior, de número 10. E essa edição número 10 compreende o autismo de uma forma um pouco diferente, em várias subcategorias que a gente chama de Transtornos Globais de Desenvolvimento. Então, as categorias são Autismo Infantil, Síndrome de Asperger, Transtorno Desintegrativo da Infância, tem a Síndrome de Rett que hoje em dia já não está mais dentro dessa concepção mais recente de autismo. Então, calculando por base, em torno dessas mudanças mais recentes, mas utilizando também os dados do censo da educação superior que utiliza o CID-10, nós chegamos ao número aí de 1.532 em relação ao Censo da Educação Superior 2018, que foi o último o ano que teve dados detalhados que estão disponíveis no site do INEP. E aí vem uma seguinte pergunta: esse número reflete a realidade? Porque a gente não tem uma prevalência de autistas no Brasil. É uma questão bastante complicada, a gente teve uma discussão em relação ao censo que se desenvolveu principalmente no ano passado, o censo foi adiado para o ano que vem, a gente ainda não sabe como é que isso vai ocorrer. Então, sem uma prevalência geral de autismo no Brasil, a gente não sabe se há um subdiagnóstico, a gente não sabe, realmente, qual que é o estado geral, mas há uma suspeita de que esse número, provavelmente, não reflete a realidade, não é, Willian? 

Willian: Perfeitamente, Tiago, inclusive você citou o censo, e eu lembro dessas discussões, na época, o nosso presidente não ia sancionar, ou ia sancionar, tinha sinalizado no Twitter que talvez ia ou não, e aí isso causou uma grande tensão na comunidade de pessoas que queriam por movimentos pra fazer pressão no Governo pra, de alguma forma, ele sancionar isso. Porque realmente a gente não tem nenhum dado e ao mesmo tempo que houve um fenômeno interessante também, por parte dos acadêmicos de epidemiologia, principalmente, que prezavam por um certo rigor. Porque eles sabiam que mesmo com o censo, o número não vai refletir ainda a realidade. Porque a gente está falando aqui de dados que vão ser coletados com as próprias famílias e, muitas vezes, as próprias famílias não sabem, muitas vezes o próprio indivíduo não sabe. Muitas vezes, num curso, no ensino superior, é bem provável que você vai ter uma pessoa ali que está no espectro autista, só que não necessariamente foi diagnosticada. 

Tiago: Ou, às vezes, foi diagnosticado, mas não se compreende como pessoa com deficiência também, que é uma questão mais complexa ainda. Então, vamos supor que a pessoa pergunte: “ Tem pessoas com deficiência na família?” A pessoa pensa “Ah, eu sou autista, mas eu não sou uma pessoa com deficiência.” Então, ele já fala que não, e essa pessoa já entra na lista dos subdiagnósticos. 

Willian: É, exatamente. Então, é muito claro, na verdade, pra quem está mais nessa discussão, que ainda o senso não vai refletir, mas que, pelo menos, é um número. O movimento existiu justamente por causa disso, porque a gente está tão deficitário, tão carente de números no Brasil, que qualquer número já é uma vitória, porque realmente isso é a base, o início pra gente pensar em políticas públicas para melhores adaptações, pra melhor efetivação, também, do que já é garantido pela Lei Brasileira de Inclusão, que muitas vezes a gente tem uma enorme dificuldade de tirar ela do papel. Mesmo quando a gente tem boa vontade, ainda assim, muitas vezes a gente não tem meios, não tem recursos pra conseguir, efetivamente, traçar uma estratégia pra incluir esse aluno no ensino superior. Então, definitivamente, a gente precisa de algum número, pelo menos. É um passo básico pra gente começar a pensar em melhores políticas públicas e melhores estratégias de inclusão. Eu, pelo menos, participei do movimento de pressão para que fosse sancionado o autismo no censo. Felizmente, conseguimos. 

Mas, realmente, a gente deve esperar que esse número não vai refletir a realidade de nenhuma forma. Então, é importante que cada vez mais a gente tenha esses dados, de uma forma mais acurada o possível. 

Tiago: E aí a gente precisa entender uma série de questões. Algumas coisas a gente já falou, e o Willian vai falar, principalmente, sobre a questão do CID-11.

Willian: É, aqui a gente compilou uma lista de alguns desafios, porque a gente também quer trazer a discussão para um campo um pouco mais pragmático. A gente deu uma justificativa, um panorama geral, as discussões, entendemos um pouco como é o autismo também, é importante que seja entendido que é um espectro amplo. E alguns desafios, então, quando a gente vai falar sobre autismo no ensino superior, é justamente essa questão do CID-11 ainda não estar em vigor. 

O CID-10, pessoal, é uma classificação do autismo muito desatualizada. Então, ali a gente vai ter códigos, por exemplo, como a Síndrome de Asperger. A Síndrome de Asperger é a condição que na versão 10 do CID, que é a que a gente usa hoje no Brasil, você vai num médico, você vai no psiquiatra, tem acompanhamento com o profissional, e o profissional te dá um código de acordo com o CID-10, e esse código não compreende o autismo de uma forma mais atualizada. 

Então, ele ainda usa vários outros códigos, uma forma um pouco rudimentar, digamos assim, de se entender o autismo, que causa confusão até nas próprias pessoas que são diagnosticadas. Então, a maior dúvida, a dúvida mais comum que eu vejo, por exemplo, são mães e pais que têm os seus filhos diagnosticados, vêm até mim e falam assim: “Ah, mas o meu filho foi diagnosticado com Síndrome de Asperger. Isso é autismo? O quê que é isso? Não entendi. Qual que é a diferença?”

Então assim, as próprias pessoas que são diagnosticadas têm essa confusão, têm essa dificuldade. É difícil de se entender mesmo, não é todo mundo que vai parar pra estudar isso, porque são áreas de atuação muito diferentes, e justamente cai naquele problema que o Tiago tinha citado, que muitas vezes a pessoa nem se entende como pessoa com deficiência, muitas vezes a pessoa nem se entende como autista, porque ela não consegue compreender o que seria o espectro do autismo, já que não está definido isso, esse termo não existe na versão 10 do CID, e a versão 10 do CID é a que a gente continua usando em o todo âmbito jurídico. Para a garantia de direitos, baseia-se na versão 10 do CID.

Tiago: E além de tudo, Willian, também, a gente precisa entender que todos esses dados do Censo de Educação Superior são gerados a partir de autodeclaração. Então, é a pessoa que se declara como pessoa com deficiência, como autista. E aí, como a gente depende da autodeclaração, afinal, a gente não pode forçar ninguém a absolutamente nada, muitas pessoas que entram na universidade e até têm o diagnóstico de autismo, não vão se declarar como autistas por uma série de razões. Por preconceito, ou por desconhecimento de que elas podem ser assistidas dentro da universidade. 

Então, é muito comum, eu conheço vários casos de autistas diagnosticados, dentro da universidade, que não sabiam, por exemplo, da existência de um Núcleo de Acessibilidade, que não saberiam dos seus direitos de adaptação, de conteúdo e etc. Então, são pessoas que não vão ser assistidas, porque a universidade as desconhecem, as unidades acadêmicas as desconhecem e, por consequência, as pessoas podem até sair da universidade e ter a sua formação incompleta, como vários casos que eu também conheço.

 Então, isso é muito complicado. Além disso, como o próprio Willian já falou, o CID-10 está desatualizado, a gente também tem um certo problema nesses dados em relação ao censo da educação superior, que quando a gente consulta algumas universidades, tem certas pessoas que se declaram como pessoas com deficiência, mas a gente não sabe qual é a deficiência dessa pessoa. E aí, essa pessoa entra numa categoria genérica chamada outras. O quê que é uma “outra deficiência”? Então, assim, a gente tem um problema muito sério, da gente realmente entender quais são as demandas dos estudantes, porque nem o básico a gente tem. 

Willian: E é o básico do básico mesmo. 

Tiago: Sim, sim. E ainda tem a questão da CIF, que o Willian vai explicar pra gente, porque a gente usa o CID como padrão, mas também tem uma nova abordagem também de se pensar a deficiência que ainda não está em vigor. 

Willian: Sim, e eu disse básico do básico, na verdade, porque é justamente isso. Pensando aqui no CID-10, mais preciso que a gente pode, a gente sabe que tem n pessoas com Síndrome de Asperger. Existem outras categorias ali, o Autismo Infantil, por exemplo, que você já pensa “O quê que seria uma pessoa diagnosticada com autismo infantil?” Você vê uma série de pessoas que têm prejuízos muito diferentes, necessidades de apoio muito diferentes entre elas. Em Síndrome de Asperger, também, é a mesma coisa. O pressuposto é que as pessoas com Síndrome de Asperger, pelo menos, vão ter uma linguagem funcional e é isso. É o que a gente sabe. Não necessariamente, novamente, “Linguagem funcional” pressupõe “nenhuma dificuldade de comunicação”, pelo contrário. E aí, o desafio começa por aí. Há muita confusão nisso. E ainda pensando que a gente tenha um cenário que tenha, sim, dados sobre essas pessoas com Síndrome de Asperger, os meus desafios no ensino superior vão ser diferentes dos desafios que o Tiago vai ter. As adaptações que o Tiago vai precisar vão ser diferentes das adaptações que eu vou precisar. Principalmente porque isso pode variar de curso pra curso. 

Tiago: Sim.

Willian: A gente pode ter cursos que são mais práticos, por exemplo, artes visuais, que muitas vezes envolve muitos materiais, tem a questão dos aspectos sensoriais do autismo: texturas, cheiros, luzes, enfim, vários estímulos que podem ter uma certa peculiaridade para aquele caso de autismo, que naquele caso há de uma adaptação em determinada matéria. Então, assim, começam a entender a complexidade? Então, uma das abordagens é, realmente, a gente ver de uma perspectiva mais biomédica, vamos dizer assim. 

Nesse sentido, uma pessoa que se categorizar neste código, de Síndrome de Asperger, nessa classificação de doenças, como no nosso caso, isso não diz muita coisa. Isso não diz sobre quais são as dificuldades daquele indivíduo. 

E aí, sabendo que havia esse desafio, a OMS propõe um modelo voltado a isso, tentando englobar uma perspectiva mais biopsicossocial de se entender os prejuízos, as dificuldades deste indivíduo, de entender quais são as funções que aquele indivíduo precisa desempenhar na sociedade e quais são as ajudas que ele precisa para continuar desempenhando suas funções. Então, nesse sentido, propõe-se a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF). Ainda não temos ela muito utilizada aqui no Brasil, alguns municípios adotam para garantias de direitos, até para a melhora de dados, mas são casos isolados, de alguns municípios apenas. Nem perto do que a gente realmente precisaria para ter dados mais estruturados. 

E essa é uma abordagem mais interessante, porque a gente passa a não pensar tipo “Ah, ele é autista, ele precisa de tal apoio.” Ou ainda “Ah, ele é autista severo, precisa de tal apoio”. A gente passa a pensar assim: “Este aqui é um indivíduo, é uma pessoa com deficiência. Essa pessoa com deficiência tem um certo desafio em realizar tal função. ” Então, para realizar tal função, a todos os indivíduos que tenham essa dificuldade, a gente vai fornecer apoio. Por exemplo, é claro que isso é muito fácil quando a gente vai pensar em questões de mobilidade, que aí a gente pensa em rampas de acesso, elevador, até mesmo o próprio recurso da cadeira de rodas, um um monitor, um assistente que possa auxiliar essa pessoa a se locomover. 

Mas é claro que a acessibilidade também tem a ver com a questão da autonomia. Não necessariamente, a gente confunde a acessibilidade com simplesmente dar recursos, mas a acessibilidade também envolve dar recursos suficientes para a pessoa ter autonomia. Mas, ao mesmo tempo, quando a gente fala sobre o autismo, é importante também que essa autonomia, muitas vezes, é privada dos autistas de uma forma muito invisível. A gente, sem querer, priva eles. Quando a gente tem um um ambiente com muitos estímulos, por exemplo, ou com um estímulo específico, que determinado autista não consegue tolerar. E pode-se pensar: “Ah, mas todo mundo tolera. Ah, poxa, é só um cheiro. Ah, poxa, é só um um um padrão luminoso, é só um ruído. Todo mundo aguenta. Ah, é um pouco chatinho, mas todo mundo aguenta. ” Por exemplo, talvez a pessoa com autismo não. Talvez essa pessoa com autismo não. 

Então, não necessariamente é ou não é uma pessoa com autismo. Na verdade, todas as pessoas que teriam uma certa dificuldade com a tolerância daquele estímulo deveriam receber um apoio. A gente consegue dar algum algum recurso pra essa pessoa, pra ela conseguir tolerar aquele ambiente? E se não, a gente consegue alterar o ambiente para que de alguma forma aquilo fique mais agradável para aquele indivíduo. Então, são sempre perguntas a se fazer para tirar a lei brasileira de inclusão do papel. E no meu entendimento, com o tempo, o Brasil e os outros países que também seguem as recomendações da OMS, certamente, passarão a adotar mais essa perspectiva biopsicossocial. 

É claro que sem desconsiderar que muitas vezes os prejuízos a nível biomédico são bem explicados, no sentido de que há uma necessidade de um desenvolvimento individual daquela pessoa, mas também em conjunto, principalmente, com a remoção de barreiras sociais daquele ambiente. Então, como a gente não tem essa categorização muito bem feita, a gente tá muito longe ainda de conseguir dar esse primeiro passo pra pensar assim. Será que a gente consegue estruturar alguma coisa? Será que a gente consegue sistematizar estratégias para isso? Será que a gente consegue distribuir recursos para conseguir atacar determinados problemas? A gente não pode, a gente não pode nem pensar nessas estratégias, porque a gente não tem nem os dados muito bem estruturados. Então, realmente, é um primeiro passo a se dar.  

E o Tiago tem sido uma pessoa que tem investigado, comunicado com outros núcleos de acessibilidade. Tiago, você topou com o próximo ponto, que é a figura do pesquisador institucional. 

Tiago: Sim, que é algo que passa muito despercebido quando as pessoas analisam esses dados do Censo da Educação Superior e é algo que chama muito a atenção. A gente não pode apontar culpados, propriamente ditos, porque a gente tá num sistema que não tá funcionando de uma forma completa, há uma série de entraves aí, mas a gente pode dizer, talvez, com uma certa tranquilidade, que o pesquisador institucional é uma parte estratégica dessa falha. 

Porque, quem é o pesquisador institucional? Imagino que as pessoas estejam se perguntando. Toda instituição tem um servidor, uma pessoa que trabalha na universidade, que faz a ponte entre a universidade a qual ele está vinculado e o Inep. E ele é responsável por juntar todos esses dados dos estudantes da universidade e repassar isso para o Inep. Mais do que tudo, ele tem uma obrigação de garantir que dados que ele está fornecendo, são dados corretos e fiáveis. Mas, infelizmente, muitas vezes, os dados repassados pelo pesquisador institucional, não batem exatamente com os números compilados por alguns órgãos ou subpastas dentro da universidade, como, por exemplo, o próprio Núcleo de Acessibilidade, outro espaço que oferece assistência em saúde mental. 

Então, se a universidade, de uma forma geral, não tem esses dados de pessoas com deficiência de forma sistematizada, esse pesquisador institucional pode passar um número que seja muito diferente da realidade, que foi algo que eu percebi em alguns dados de algumas instituições, mas isso também eu vou falar com detalhes em breve. E a gente tem um outro problema acompanhado com isso, porque se a gente quer falar como ajudar ou como atender, ou como, realmente, compreender as necessidades de autistas dentro das instituições, tanto públicas quanto privadas, a gente precisa recorrer à literatura científica. E o que a literatura nacional fala sobre isso? Muito pouco. 

Infelizmente, o primeiro trabalho, realmente, que eu tive contato de autismo no ensino superior, foi um trabalho de 2011, de duas professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mas era focado primeiro em síndrome de Asperger, que é uma parte do autismo, como a gente já falou, e em segundo lugar também era muito mais uma uma espécie de cartilha informativa sobre o autismo do que realmente algo ligado ao contexto do dia a dia dentro da universidade. 

Então, há uma complexidade na hora de se discutir autismo no ensino superior e, infelizmente, a nossa literatura nacional ainda não dá conta de discutir esse tema. Infelizmente, a gente carece de materiais de qualidade, de discussões, de pesquisas, realmente, bem conduzidas, que venham pelo menos apresentar pra gente esse panorama de como é a questão dos autistas nas universidades brasileiras e também nas instituições privadas. Então, se a gente não tem esses dados bem consolidados, bem trabalhados, a gente não tem uma bibliografia realmente que discuta isso, essas pessoas vão passar despercebidas. E aí, se essas pessoas não são computadas pela universidade, elas não geram demanda. 

Infelizmente, há uma lógica que opera em grandes instituições, que a universidade só propõe ações a partir do momento que surge uma demanda, a partir do momento que as pessoas reclamam. Se a universidade desconhece que tem autistas dentro dessa instituição, ela não vai fazer nada enquanto as pessoas não aparecerem. Então, essas pessoas vão ser sempre invisibilizadas, não vai ter demanda, nada vai ser feito e, enfim, infelizmente, a gente perde muito. E lembrando também que as cotas pra pessoas com deficiência nas universidade públicas, só foi algo, realmente, estabelecido entre 2017 e início de 2018. Então, é algo extremamente recente. As pessoas com deficiência em maior número estão chegando na universidade agora e agora que as pessoas estão começando a perceber que as pessoas com deficiência existem dentro da universidade. 

Willian: Inclusive, na verdade, existe ainda um problema bem grave. Quando a pessoa diagnosticada com autismo passa por um processo seletivo, concorre como PCD e, eventualmente, garante ali uma vaga, obtém sucesso, mas ainda assim há uma resistência por parte da da instituição – não necessariamente aqui a gente tá falando de instituições ensino, mas também quando a gente fala sobre o mercado de trabalho, quando a gente fala sobre concurso público, muitas vezes há essa resistência. Então, é um fenômeno gravíssimo pra mim. Na minha interpretação, tendo a Lei Berenice Piana, que deixa muito claro todos os direitos das pessoas com deficiência se estendem para as pessoas do Transtorno do Espectro Autista. A gente sabe disso, tá no papel, mas ainda assim vindo das instituições públicas a gente ainda tem essa resistência. Eu vejo relatos sempre, é recorrente isso, relatos de mães, de familiares, de pessoas com autismo que tentaram ingressar através do processo seletivo como PCD, e tiveram uma resistência e tiveram que ir atrás de advogado, abrir um processo, nesse sentido, para garantir, realmente, a vaga, que é do direito da pessoa. Não adianta, não tem como questionar. 

Tiago: E aí, a gente entra até num questionamento se a pessoa autista não é bem vista como pessoa com deficiência num processo como esse, como é que a gente quer que essa pessoa se reconheça como pessoa com deficiência? Como é que a gente não quer, por exemplo, que o autismo seja visto como uma categoria à parte nas discussões sobre deficiência. Então, a gente precisa repensar isso também até se a gente quer realmente pensar as deficiências de uma forma mais integrada, de uma forma que realmente essas pessoas participem e vejam seus pontos em comum, se essas pessoas não são respeitadas em sua integridade. 

Willian: E, inclusive, falando sobre esse último ponto, sem demanda, nada é feito. A demanda existe, só que ela é invisibilizada. A demanda existe, só que ela, a partir do momento que a gente não tem nem o próprio indivíduo, muitas vezes, sabe dos próprios recursos de acessibilidade que ele poderia ter, ele não vai atrás, ele não entende que ele pode ir. Ele não dá nem o passo inicial pra que a instituição pense em uma estratégia pra melhor incluí-lo. Inclusive, aqui tem um comentário muito interessante do Maicon Krause aqui, que ele fala justamente que ele é diagnosticado com autismo, tem uma lesão no cérebro e que foi atendido muito bem quando ele foi atrás de buscar ajuda no Núcleo de Apoio à Inclusão da Universidade. Muitas vezes, infelizmente, as próprias pessoas com deficiência na universidade não sabem que existe um núcleo de acessibilidade na sua instituição. 

Tiago: E que as ideias têm nomes diferentes nas instituições. Que é o maior desafio ainda. 

Willian: Sim, também. Principalmente quando a gente fala sobre autismo, a gente tá sempre pensando que os autistas podem ter uma certa dificuldade de conseguir generalizar alguns termos. Então, quando as siglas são diferentes, mas ao mesmo tempo se referem a mesma coisa, isso é um duplo desafio pra pessoa com autismo de conseguir ir atrás do núcleo de acessibilidade da sua instituição. Então, no meu entendimento, é também papel desse núcleo que fornece acessibilidade na instituição de também se fazer descoberto pra essas pessoas. É um papel muito importante sim, desse núcleo e que muitas vezes é, por mais banal que possa parecer, é a barreira que está impedindo uma pessoa com autismo de ter um maior sucesso no ensino superior. Eu identifico dessa forma. 

Tiago: E aí eu quero trazer três exemplos, é claro que esses exemplos não são representativos do cenário que a gente tem, porque quando a gente pensa em ensino superior, a gente tem que pensar primeiro que a gente mora num país de extensões continentais, em que há diferentes realidades, em diferentes regiões. Dentro dessas realidades, a gente tem uma disparidade entre as instituições públicas e privadas, dentro dessa disparidade de instituições públicas e privadas ainda existem diferentes regimes. Existe, por exemplo, formação mais próxima a licenciatura, outras de bacharelado, outras formações mais técnicas como o tecnólogo. Existe graduação presencial e a distância. Então, a gente tem diferentes formas em que a pessoa com deficiência pode se formar e pode também experienciar barreiras. Contudo, em 2019 eu trabalhei numa reportagem pra Revista Autismo, que se chamava Quantos Autistas há nas universidades públicas brasileiras? Eu quis focar, principalmente, nas universidades públicas porque, via de regra, elas têm uma estrutura maior, e uma discussão maior, também, sobre deficiência, pra dar conta dessa questão, tanto do autismo quanto da deficiência de uma forma geral. Então, eu quis procurar três universidades que fossem grandes, que fossem relevantes pra ver qual é a relação delas com essa questão dos autistas. Então, eu procurei a Universidade Federal de Goiás, que, coincidentemente, foi a universidade onde eu estudei. Então, eu conheci um pouco da realidade, procurei também a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especificamente em Porto Alegre, e procurei a Universidade Federal Pará, em Belém. Então, três universidades, em três diferentes regiões, pra gente capturar realidades distintas, pra gente começar a pensar. No caso da UFG tinha uma relação com a temática do autismo bastante interessante e isso diz respeito um pouco à minha experiência. Eu ingressei na UFG em 2015 e, imediatamente, eu procurei o Núcleo de Acessibilidade, antes que eu precisasse de ajuda, só pra poder me inteirar, pra realmente saber do contexto da instituição. E lá eles tinham alguns contatos de alguns autistas, geralmente autistas ditos leves, mas esses autistas não mantinham uma proximidade muito grande com o núcleo. Só tinha um aluno do mestrado e aí como eles só tinham uma experiência com esse único autista, então a forma deles se relacionarem com as demandas de outros estudantes que iam chegando, era em comparação a este aluno e aí a gente tem um problema também em relação a discussão sobre autismo, que são as comparações. Mas fora isso, tem a questão dos números: no estado de Goiás, de uma forma geral, nas instituições públicas, a gente tinha um número de cinco autistas, até onde eu me lembro. Cinco autistas, classificados dentro da Síndrome de Asperger, pro estado inteiro, juntando Universidade Federal e IFs. Só que só na UFG, o que a gente tinha, principalmente, aquele sque ainda não tinham se declarado, mas que tinham diagnóstico, porque eu conheci vários autistas dentro da universidade, a gente tinha uma ideia de que só nos dois campi de Goiânia – que aqui em Goiânia são dois campi da UFG – a gente tinha mais de dez autistas, entre dez a quinze autistas. Mas no Estado inteiro, somando todas as instituições federais, a gente tinha nos dados do censo cinco autistas. E aí, a própria coordenadora na época, do núcleo de acessibilidade, quando eu questionei ela em relação a isso, ela falou assim: “Olha, a gente tem um número oficial, mas eu não tenho a segurança de te passar esse número, porque eu sei que esse número está defasado. E nós, aqui na Universidade, ainda estamos pensando formas de estruturar isso.” Então, havia algumas mudanças também em relação a alguns órgãos internos da universidade, de que forma eles computavam esses números, porque antes no início os alunos se autodeclaravam, mas esses números não entravam. Então, eles tinham que fazer um processo manual. Com as cotas na universidade, isso acabou se tornando mais bem operacionalizado, porque eles tinham mais facilidade pra acompanhar diretamente os alunos, mas aqueles alunos que não faziam por cotas tinham maior dificuldade de acesso ao sistema. 

O segundo caso que eu fui atrás foi a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul tinha uma perspectiva completamente diferente da UFG. Em primeiro lugar, eu perguntei pra eles quantos autistas há na UFRGS. Eles falaram: “A gente não sabe esses números, e não é da nossa responsabilidade porque a gente tem como perspectiva o modelo social da deficiência, e isso é de responsabilidade da universidade como um todo.” Eu parei aqui e falei: “Que? Não é possível que eu estou ouvindo isso.” Assim, primeiro, uma interpretação equivocada do modelo social da deficiência. Então, você interpreta que todo mundo ali é responsável pela inclusão, mas ao mesmo tempo, você não se responsabiliza a fazer a sua própria parte. Então, eu fiquei bastante chocado com o que eu encontrei. A função do Núcleo de de Inclusão ali UFRGS era muito mais no sentido de assessoria. E eu fico pensando “Tá, mas será que todas as pessoas com deficiência vão ser contempladas apenas por uma assessoria, somente por uns eventozinhos de inclusão ali, que vão discutir deficiência? E o dia a dia da instituição? Como é que você, realmente, se pretende a dar assistência a pessoas com deficiência se você não conhece nem o público alvo dessa universidade? Então, foi algo que realmente me deixou bastante decepcionado aqui, saindo fora do do meu papel enquanto jornalista, mas também como uma pessoa com deficiência que tava atrás dessas informações. E aí eu tenho um terceiro caso, que é um caso muito mais feliz, que é o caso da Universidade Federal do Pará, especificamente o campus de Belém. Lá a situação era completamente diferente, lá eles têm uma organização que a gente poderia chamar de Núcleo de Acessibilidade, mas dentro disso existem subpastas relacionadas a alguns públicos com deficiência e também outros públicos alcançados pelas ações afirmativas. Então eles tinham uma perspectiva de quem seria alcançado pelas ações afirmativas, não seriam somente pessoas com deficiência, mas também seriam quilombolas, seriam populações indígenas. Então eles prepararam uma estrutura muito mais bem organizada pra entender os diferentes públicos que vão ser alvo dessas ações. E lá eles têm uma coordenação somente em autismo, organizada por uma professora que tem uma formação na área de autismo, que tem, inclusive, um filho autista, e um neto autista. Então, ela realmente tem uma vivência dentro da universidade e fora da universidade na questão do autismo. E a primeira coisa que eu perguntei pra ela foi: “Professora, quantos autistas existem na UFPA?”. E ela me passou os dados na hora. Sim, ela tinha os dados. Ela disse: “Nós atualmente atendemos 26 alunos, dentre esses 26 alunos, “tantos” alunos têm como comorbidade (condições coexistentes) TDAH, alguns têm Flexia, alguns têm Altas Habilidades. Ela sabia, realmente, ter um controle desse processo e muito mais além disso, a universidade oferece uma estrutura de assistência a esses estudantes dentro da vivência do seu curso. Por exemplo, eu lembro muito bem que lá na UFPA você tem monitores que vão ajudar os alunos em algumas disciplinas que eles têm dúvidas, existe toda uma discussão também com as unidades acadêmicas. Então, se o aluno ali estiver precisando de alguma intervenção mais direta em relação à coordenação de curso, essa coordenação [de acessibilidade] que vai lá resolver diretamente com os cursos. 

Mas a gente tem um outro problema sobre o censo da educação superior: quais eram os números do Censo da Educação Superior? No Estado do Pará inteiro, somando Universidades Federais, Institutos Federais, a gente tinha 2 autistas. Sendo que só no campus de Belém, a gente tinha 26 sendo atendidos pelo Núcleo. Assim a gente percebe que os dados declarados são completamente fora da realidade. Mas, por outro lado, a Universidade Federal do Pará, por isso que eu digo que ela é um exemplo, começou a dar algumas indicações que eu acho que podem servir como modelo, à medida que a gente for observando isso em outras instituições. Eles escolheram duas datas estratégicas pra se alcançar outros autistas na universidade. Por quê? A gente tem os autistas que entram pelas cotas e nós temos os autistas que entram pela concorrência regular. Esses alunos que entram pelas cotas são automaticamente mais próximos desses núcleos de inclusão, porque eles vão ser acompanhados, eles vão ter ali o processo pra ver se eles realmente se encaixam naquela vaga. E os alunos vão passar por outro processo meio que passam despercebidos. 

Então, a coordenação de autismo da Universidade Federal do Pará estruturou 2 de abril e 18 de junho como datas pra promover campanhas dentro da universidade. Pra quem não sabe, 2 de abril é o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, e dia 18 de junho é o Dia do Orgulho Autista. As campanhas enfatizam pros alunos autistas que estão na Universidade, mas que nunca procuraram ajuda, como eles devem proceder, pra onde eles devem ir, com quem eles devem entrar em contato e de que forma os professores também podem indicar, como “olha, eu tenho um aluno da minha turma que é autista.” ou “A gente suspeita que ele seja autista, vocês podem dar uma procurada na gente?” Então, eles têm um trabalho nesse sentido, que eu não vi em nenhuma outra universidade pública, pelo menos daquelas que eu estava procurando. Então, a gente tem três visões. Resumindo, você tem a UFG que sabe mais ou menos o que deve fazer e que tá lutando pra chegar nesse estado, você tem um caso como a UFRGS, que nega o seu próprio papel, e você tem o caso da UFPA que pensou isso, que estruturou isso e que está trabalhando em direção a um status que a gente pode considerar como ideal. 

Willian: Eu acho que você falou uma coisa muito importante, Tiago. Há um entendimento hoje, principalmente quando a gente fala sobre um modelo social, no sentido de que o que tem governado é um modelo mais biomédico até então, um viés de patologização do autismo, não se entender a responsabilidade como do próprio ambiente, de não enxergar as próprias barreiras do ambiente. Nesse sentido, se o adulto ou a criança não aprende, é um problema dele, é ele que tem uma condição, é ele que tem que ser resolvido, que é culpa dele. E quando a gente tem falado bastante nas discussões sobre modelo social, é justamente pra contrapor a essa visão.

O Brasil está na convenção de New York, o Brasil tem a Lei Brasileira de Inclusão, nas Diretrizes e Bases da Educação a gente vai ter, sim, a necessidade de acolher essas pessoas com necessidades educacionais especiais. Então, a gente usa o termo “modelo social” para justamente trazer mais a responsabilidade do que a gente pode organizar no ambiente, na sociedade, para também prover acessibilidade para essas pessoas com deficiência. 

Então, esse é um ponto muito interessante de como ele é usado, só que muitas vezes a gente adota isso de uma forma improdutiva, algumas instituições podem adotar essa perspectiva de uma forma improdutiva. “Todo mundo é bem aceito, todo mundo é igual, todo mundo é bacana. Não, a gente não vai estruturar de alguma forma esses dados pra pensar em outras estratégias. Não, todo mundo vai ser tratado como humano, vai ser tratado da melhor forma”, aquele discurso bonito. 

Tiago: “Somos todos iguais”, mas na verdade somos todos diferentes. 

Willian: Exatamente. Mas então eu acho que é uma coisa muito importante que você falou, porque todo mundo concorda com a inclusão. Infelizmente tem um ou outro com a visão muito limitada, que diz “não, eu prefiro que as pessoas com deficiência não estejam na universidade”, uma visão até criminosa nesse sentido. Mas a grande maioria não. 

Quando eu vou conversar com os professores, eles se fazem sempre muitas vezes preocupados no sentido de me pedir dicas de como fazer para melhorar. Então, todo mundo concorda com isso. 

Mas adotar o modelo social da deficiência não é contramão de usar também, de todos os recursos científicos que a gente pode pra estruturar melhor esses dados pra analisar, interpretar as experiências de uma forma mais qualitativa, ou até quantitativa, dessas pessoas que estão nesse cenário de inclusão e o que que a gente pode fazer sobre elas. Eu vejo, muitas vezes, que a gente confunde adotar uma perspectiva social de se entender a deficiência com a negação, por exemplo, de toda uma área que é as Ciências Humanas, que é super importante pra gente conseguir considerar e usar dos mecanismos delas pra tirar do discurso. Tirar da visão de apenas “Não, aqui tudo é inclusivo, tudo é legal, todo mundo aqui é pró diversidade. ” Poxa, todo mundo é. Mas, o ponto é o que que você faz? Quais são as etapas? Quais são os caminhos pra você operacionalizar, realmente, essa inclusão? 

É claro que não tem como ter um pacote, não existe um pacote aqui, não existe “Pra incluir autismo é o seguinte: se for leve, você faz isso, se for severo você faz isso, se for moderado, você faz isso. ” Realmente, cada caso é individual. Mas isso não significa que você não pode estruturar os dados, as informações, buscar na literatura científica o que já foi feito, talvez em outros países, também, para transpor isso pra cá. E também, se não foi feito, use dos mecanismos que a universidade tem, que a instituição tem para publicar isso na literatura, porque, como foi exposto aqui, na literatura não tem nada. Então, ao mesmo tempo que a gente vê muitas universidades adotando um discurso pró neurodiversidade, cadê isso na literatura, então? Então, onde é que está isso na literatura? A gente tem a certeza que todo mundo quer incluir. Ou a grande maioria, pelo menos. Mas quais são os meios pra gente fazer isso? A gente ainda peca nesse sentido e muitas vezes, infelizmente, pelo menos no que eu tenho interpretado, essa questão do modelo social tem sido um pouco distorcida, como você mesmo sugeriu. É uma interpretação equivocada de se entender que o modelo social da deficiência, que é isso, “a gente não vai patologizar, a gente não vai pensar no CID, laudo a gente nem quer saber, a gente vai tratar como humano.” OK, todo mundo precisa ser tratado como humano, mas as informações que a gente pode extrair dali, daquele caso, são valiosas e que podem contribuir até quando publicados na literatura científica pro cenário a nível nacional dar uma melhor inclusão. E aqui vem uma parte mais prática, né, Tiago?

Tiago: É. A gente, aqui, apresentou um cenário bem, bem triste, de uma forma geral. Existem alguns trabalhos iniciais que pretendem discutir autismo no ensino superior e a gente quis aqui coletar algumas coisas também que a gente tem acompanhado nos últimos anos em relação a colegas autistas e alguns trabalhos também têm nos sugerido. Então o que a gente tem hoje a nível de discussão sobre autismo superior são, na maioria das vezes, relatos de caso. A gente sabe que em termos de evidência é um nível baixo, mas é um primeiro passo, por onde a gente tá começando e onde a gente pode aprofundar a discussão e ser mais rigoroso em breve. 

Então, a gente tem cinco pontos, que são os pontos mais relevantes em termos de barreiras. Relacionados a autistas. E eu acho que delas, talvez, a mais relevante seja trabalho em grupo. O próprio Willian disse um pouco antes que existem diferentes cursos, então, a forma como você vai ser avaliado, por exemplo, num curso de design é diferente da forma como você vai ser avaliado no curso de física, bacharelado. E uma das principais formas dessas diferenças se estruturarem são os trabalhos em grupo. Existem cursos que demandam, por exemplo, mais trabalhos em grupo. E o que acontece? É muito frequente, muitos autistas relatarem que eles conseguem ter um domínio sobre o conteúdo da matéria, mas eles ficam repetindo porque a avaliação é em grupo. E isso é muito triste, muito complicado. E muitas vezes, os professores não querem mudar sua forma de avaliação também, que é uma outra discussão. 

Willian: Então, esses relatos aqui que a gente traz, como o Tiago falou, a questão dos autistas e as suas dificuldades no ensino, a gente acaba se inteirando mais de quais, possivelmente, são essas. Aqui, a gente traz na função de esclarecer um pouco quais são as possíveis dificuldades, barreiras sociais que a gente pode ver nesses contextos.

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