O termo capacitismo chegou até a comunidade do autismo há pouco tempo e ainda há muita gente que não sabe, de fato, o que essa expressão significa. Neste episódio, em referência ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, Tiago Abreu recebeu o pesquisador nos estudos sobre deficiência Marco Antônio Gavério, a ativista Lau Patrón e a também ativista e autista portuguesa Sara Rocha para pensar o conceito de capacitismo e suas ramificações no contexto do autismo. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015, e eu acho que há muito tempo estávamos esperando por um episódio sobre esse tema tão importante, que é o capacitismo.
Sara: Eu sou Sara Rocha, tenho 30 anos, sou portuguesa, mas vivo no Reino Unido, fui diagnosticada com autismo há cerca de um ano e comecei numa jornada de tentar resolver a minha própria identidade, e comecei a escrever sobre ser autista.
Lau: Bom, eu sou a Lau Patrón, eu sou mãe de um menino que tem deficiência, não é autista, ele tem paralisia cerebral, mas essa vivência acabou me trazendo pro ativismo. Inicialmente, um ativismo muito junto com as mães, que a gente chama de atípicas hoje, mas não é bem uma palavra ideal, a gente vai ter que chegar em outros lugares, em algum momento. Eu comecei esse ativismo muito perto das mães e acabei me aprofundando muito no tema capacitismo, iniciei uma pesquisa há dois anos, mais ou menos, e hoje faço as duas coisas, sou ativista, pensando a pessoa com deficiência em algumas frentes de trabalho, principalmente, com mães nas regiões periféricas do Brasil, e sou profissional também, trabalho diretamente com empresas, enfim, em um ciclo mais corporativo, pensando em soluções que sejam inclusivas e anticapacistas.
Tiago: E como nossas convidadas já adiantaram, o tema de hoje é capacitismo, então nós vamos entender o que é e como ele opera no contexto da deficiência, e também dentro do recorte do autismo. Para este episódio, eu vou trazer aqui também uma fala do Marco Gaverio que falou com a gente um pouco sobre capacitismo do ponto de vista conceitual. O Marco é um dos principais estudiosos sobre deficiência Brasil, estuda o tema capacitismo já tem alguns anos e foi um prazer que ele disponibilizasse um pouco do tempo dele, que é bastante escasso, pra poder falar um pouco sobre capacitismo. Então, vamos ouvir.
Marco: Bom, atualmente a gente tem visto muitas discussões sobre o capacitismo, e uma das definições mais básicas e mais corrente que nós vemos hoje em muitos debates é a noção de que o capacitismo se resumiria à discriminação contra as pessoas com deficiência. Entretanto, é necessário a gente pensar em uma definição um pouco mais ampla. Primeiramente, porque a discriminação, o preconceito, a estigmatização que vem historicamente atrelada à noção de deficiência, ela é mais um efeito de uma série de estruturas e de conjunturas de relações sociais. Ou seja, o preconceito, a discriminação, a injúria, a violência em que enquadram determinados indivíduos em algumas categorias, pejorativas, inclusive, elas não emergem do nada, elas emergem como formas de relações sociais que se cristalizam ao longo do tempo em determinadas estruturas culturais, em determinadas formas de interação, determinadas formas de ver determinados indivíduos e de considerar determinadas práticas. Então, o preconceito contra a pessoa com deficiência, o estigma contra a pessoa com deficiência, pode ser considerado muito mais um efeito do capacitismo do que a sua própria causa. Segundo ponto, se a discriminação é o efeito do capacitismo ou ela tem uma correlação com o capacitismo, é porque o capacitismo também é uma série de relações, ele é uma estrutura, ele é uma rede de relações socioculturais que de certa maneira produz e depende de determinadas definições e de determinadas considerações do que é deficiência, principalmente a partir da dicotomia entre aquele que é naturalmente capaz e daquele que seria naturalmente incapaz. Ou seja, há uma consideração, dentro dessa dicotomia mais ampla, de que se nasce normal e de que se nasce anormal. Mas, na verdade, a gente tem que pensar que a ideia do que é o normal, seja um indivíduo normal, ou seja, uma sociedade normalizada, ou indivíduos anormais de uma sociedade anormalizada, essas duas construções são fruto de uma relação. Uma não existe sem a outra. Não há a naturalização da capacidade sem a naturalização da incapacidade, não há o enquadramento de que determinados indivíduos são mais capazes sem a comparação com indivíduos que seriam menos capazes. A ideia do capacitismo também precisa ser vista como uma matriz ou uma rede de relações, que ao mesmo tempo produz essas definições e esses conceitos de que o capaz é algo normal e o incapaz é algo anormal, e dentro desse jogo produzem um tipo de noção de deficiência e também um sujeito deficiente e específico, um sujeito com deficiência que vai ter uma determinada substitutividade e, com isso, também, produz determinadas práticas sociais que vão, objetivamente, produzi-lo enquanto sujeito, inclusive fisicamente falando, né? Então, o capacitismo também é essa estrutura de interações sociais, múltiplas interações sociais, muitas vezes, contraditórias, que estão produzindo, subjetivamente e objetivamente os sujeitos com deficiência. Ou seja, dentro dessa possibilidade analítica nós teríamos tanto a representação cultural, da pessoa com deficiência como uma total dependente, uma total incapaz e vulnerável, relembrando até mesmo as dimensões históricas do termo “inválido” aqui no Brasil. E, por outro lado, até mesmo nos discursos mais progressivos e mais humanitários, nós teríamos a ideia de que as pessoas com deficiência, na verdade, são completamente normais, ou tão normais quanto as outras pessoas, que já são, naturalmente, consideradas normais e, por isso, a normalidade das pessoas com deficiência está na sua capacidade, na sua falta de limitação, na sua possibilidade de independência e de autonomia. Ou seja, constrói-se o deficiente completamente capaz, o deficiente que consegue fazer tudo sozinho, o deficiente que não precisa de políticas públicas, o deficiente que pode ter toda a iniciativa privada de sua própria vontade. Então, essas duas figurações da deficiência são produzidas dentro do mesmo esquema capacitista. Aquele indivíduo que é totalmente dependente e aquele indivíduo que é totalmente independente, e que tem condição de superar todas as dificuldades sociais a partir da sua própria força de vontade. E aí a gente já amplia bastante a discussão sobre o capacitismo e matiza muito mais e de uma maneira muito mais crítica a ideia de que o capacitismo é simplesmente a injúria com relação a um corpo com deficiência, né? Até porque a própria noção de deficiência tá em constante mutação histórica e cultural, mas só que isso é um papo pra uma outra hora. Espero ter contribuído com o debate vocês, galera. Um abraço.
Tiago: Muito obrigado, Marco, pelo áudio. Inclusive, ele fala uma coisa muito interessante, que eu acho que se encaixa muito com uma coisa que a Lau costuma falar também em alguns espaços, que é sobre as diferentes formas que o capacitismo se manifesta. Porque quando as pessoas pensam que o capacete é só uma ofensa à pessoa com deficiência, e aí a gente, por exemplo, critica o discurso da superação, a pessoa fala assim: “Nossa, mas nós estamos valorizando a pessoa com deficiência, né? Nós estamos levantando ela.” Mas na verdade sempre esse discurso da autonomia, também, pode atrapalhar, e atrapalha, em muitas das vezes, as pessoas com deficiência que vão precisar ser dependentes e, portanto, isso não necessariamente é um problema. Então, eu queria que você, Lau, falasse um pouco sobre essas diferentes faces do capacitismo, porque eu sei que é algo que você costuma falar bastante, né? Até pras pessoas entenderem quais são as diferentes formas que isso pode se manifestar.
Lau: Sim, eu costumo dizer que o capacitismo é uma violência bastante refinada, porque ele se apresenta de diferentes formas, ele fala em diferentes tons e ele se veste com roupagens diferentes e as pessoas não entendem que a gente tá falando da mesma coisa e muito menos que essa coisa é violenta com a existência de várias pessoas. Então, eu tenho gostado muito de cruzar no meu estudo do capacitismo com o estudo de outras populações, outros movimentos sociais. E o feminismo negro tem construído o ferramental, algumas lentes, algumas ferramentas que eu tô achando muito incrível, pra se pensar em opressões em geral. E a gente tem a Patrícia Hill Collins, que é uma autora do feminismo negro, maravilhosa, e ela fala muito do conceito de imagens de controle. E esse é um conceito que, claro, ela estudou e pensou nele partindo de mulheres negras, da experiência de mulheres negras, mas ela mesmo diz que todo grupo social tem essas imagens de controle. E as imagens de controle da pessoa com deficiência, obviamente todas do capacitismo, são muito variadas, mas eu costumo falar muito de quatro principais, assim, que é a imagem do Coitadinho, que é esse coitadinho incapaz, que as pessoas falam muito na rua, ainda verbalizam, me choca um pouco como as pessoas ainda verbalizam essa coisa do “ai, que coitadinho dele”, numa visão de que aquela pessoa, a pessoa com deficiência vida ruim, de que ela é incapaz. A gente tem também uma imagem de controle que é muito preocupante pra mim, que é a imagem do Doente, que é a confusão entre doença e deficiência, né? Que, na verdade, deficiência é uma característica, não é uma doença. E como qualquer característica, ela pode mudar, pode se desenvolver, mudar ao longo da vida, mas ela não é nunca sobre cura. E a gente tem também uma imagem de controle muito comum, que usam muito pra contar nossas histórias, que é a imagem do Herói da superação, a inspiração pra todos nós, uma inspiração de vida, que eu acho que é a que as pessoas menos entendem, exatamente por isso que se disse que parece um elogio, mas não é. Então, a mesma sociedade que impõe uma série de barreiras na vida da pessoa com deficiência e que não faz questão nenhuma de tirar essas barreiras, é a sociedade que vai entregar uma medalha para aqueles raros casos, né? E aí fica aquela coisa meritocracia, do mérito. Os raros casos que conseguem ultrapassar essas barreiras, muitas vezes com muito sofrimento. No movimento de romantização desse sofrimento. E, por último, é mais do que de controle que eu gosto de de citar, porque eu acho que as pessoas se reconhecem nessas falas e nessas crenças, é a imagem de controle do anjo, né? Então, o anjo, o ser que só veio para fazer o bem na terra, é um ser que veio para ensinar sobre o amor, livre de maldade, é um ser puro, assexuado, que não fala palavrão. Então, tem toda uma imagem que desumaniza de novo a pessoa com deficiência. É bom entender que todas essas imagens de controle, desumanizam a pessoa com deficiência, não importa o quanto elas pareçam o elogio, porque elas tiram a pessoa desse lugar que deveria ser de direito essencial, que é só ser uma pessoa. Eu falo muito isso sobre o João, João é só um menino de oito anos, mas ele nunca é um menino de oito anos. Ele é sempre o coitadinho, ou o doente, ou o anjinho, ou o herói que inspira a vida de todo mundo. Como se ele estivesse a serviço dos outros. Então, acho sempre bem interessante pensar nas imagens, porque as pessoas as reconhecem nas suas crenças, e talvez ajude a partir pra uma conversa um pouco mais profunda.
Tiago: É, essa do anjo realmente é complicada, aqui na comunidade do autismo nós que somos adultos temos que lidar com isso e muitos outros adultos têm um ódio extremo quando ouvem “Ah meu anjo azul!” e etc. É um debate bastante complicado, né? Porque as pessoas levam muito pro lado pessoal. Você, Sara, que é autista, adulta também, assim como eu, eu eu tenho muita curiosidade de saber como é que você observa a forma que o capacitismo se manifesta em relação aos autistas, agora dentro desse recorte.
Sara: Eu concordo plenamente com o que a Lau disse. Também se aplica aos autistas, aliás, aplica-se a grande parte das pessoas com deficiência. Uma coisa do anjo realmente é algo que que me incomoda bastante. Principalmente por não só partir da da inspiração e da desumanização, como a Lau estava a dizer, mas também de infantilização. E algo que nós temos, principalmente na área do autismo ou mesmo doenças mentais, ou outras situações mais crônicas, o que acontece é que as pessoas infantilizam o adulto, ou seja, eles falam com o adulto como se fosse uma criança, ou então falam com uma criança como se ela fosse, se ela não fosse inteligente, apenas por ser não-verbal, por exemplo. Falam conosco como se não tivéssemos a capacidade que supostamente nós temos, porque eles não podem assumir que nós não temos essa capacidade. E é algo que me incomoda bastante, porque só por ser não-verbal não significa que não é inteligente. Só por ser adulto autista não significa que não temos capacidades cognitivas de um adulto. E portanto, realmente, a parte do anjo azul, eu compreendo como que as pessoas continuarão a apoiar essa definição. Mas é para mim, o que eu sinto com isso, é que estão apenas a dizer que nós somos algo que veio à Terra e que não tem personalidade própria. Ou seja, é basicamente algo vazio, um anjo vazio, como se tivesse ali, e isso eu acho que temos que mudar com o tempo, a nossa ideia do que realmente adultos autistas devem ser tratados como adultos autistas, e crianças não podem ser assumidas que não têm a inteligência suficiente.
Lau: Essa infantilização faz todo o sentido pensando em imagens de controle, porque é bom a gente pensar que imagem de controle é bem mais do que estereótipos, né? São ferramentas pra manutenção de relações de poder. Então, quando a gente infantiliza uma pessoa, a gente tá colocando ela no lugar onde é confortável pra estrutura que ela esteja. Então, é sobre isso, né? Eu vejo muita coisa da infantilização também, não só na comunidade autista, tem histórias assim que eu eu não acredito, eu ouço de adultos que são cadeirantes ou que são deficientes visuais e são inacreditáveis assim, então tem muito isso, né? As pessoas chegam a mudar o tom de voz pra falar. E é isso, que a gente entenda que isso faz parte de uma estrutura que tá fazendo essa manutenção essas relações de poder e que quer que as coisas fiquem nesse lugar, porque esse lugar é mais confortável, do que ter que lidar com esse desconforto que é pensar na pessoa com deficiência como uma pessoa que precisa ser a sua existência e vivência, precisa ser normalizada como qualquer outra… é mais fácil manter as coisas assim, né?
Sara: É, e também, por acaso, na parte do autismo, também, por exemplo, aconteceu há pouco tempo, a J.K. Rowling, autora de Harry Potter, vir a público escrever um texto sobre o problema das pessoas transgênero. E e uma das situações que ela coloca lá é que mais mulheres autistas estão a passar a transição como transgênero. Mas ela fala como se nós não tivéssemos a capacidade cognitiva de reconhecer o nosso gênero, por exemplo. Portanto, não é apenas no Brasil ou em Portugal, é no mundo todo, ver situações em que que infantilizam e retiram a nossa capacidade de fazer decisões.
Tiago: E, infelizmente, isso ocorre até dentro do movimento de pessoas com deficiência, que historicamente, pelo menos, em alguns segmentos como o autismo, começou muito a partir de pais, do ativismo de pais. Eles tiveram um pioneirismo que é importante e que deve ser valorizado, em certa medida, mas quando as pessoas com deficiência, quando as pessoas autistas começam a adentrar certos espaços, eu começo a perceber como é que o capacitismo opera. Então, por exemplo, uma coisa que eu gosto muito de falar aqui no Introvertendo, é que pelo menos até cinco anos atrás, praticamente não tinha autista em eventos de autismo. O quê que tá acontecendo de cinco anos pra cá? Finalmente, tá tendo autistas em eventos de autismo, às vezes até em uma quantidade significativa, umas cinco pessoas por evento, mas você já entra no evento sendo direcionado àquilo que querem que você fale, né? Que você se centre na sua experiência, que você explore o passado da sua vida, ou seja, é realmente algo extremamente complicado. E a questão da infantilização da pessoa com deficiência é muito complexa, porque, por outro lado, também, existe uma curiosidade sobre a vida pessoal da pessoa com deficiência, principalmente na questão da sexualidade, que muitas das vezes é predatória também. Então, sempre a gente trabalha com alguns polos, algumas características que são muito complicadas, assim. Então, ou a pessoa com deficiência, muitas vezes, ela é vista como uma pessoa que não vai ter relacionamentos, por exemplo, que não vai ter uma vida amorosa ou as pessoas têm uma curiosidade desmedida sobre a vida pessoal dessa pessoa e fazem perguntas completamente fora do escopo. E você, Sara, falou um pouco sobre a questão do capacitismo no contexto mundial e pra você que mora no Reino Unido e é de Portugal, eu tenho muita curiosidade de saber: como é que é o capacitismo na Europa? Existem algumas particularidades em relação ao ambiente que você vive na temática do capacitismo?
Sara: É um bocadinho diferente, eu penso. Em Portugal ainda está muito no começo o movimento na área dos autistas. E mesmo em termos de pessoas com deficiências, não está muito pronto a nível de mídia e expostos de certa forma. E, portanto, o que aconteceu é que nós autistas começar a falar antes dos pais, ou seja, os pais já falavam, obviamente, já havia um pequeno movimento, mas sinto que aceitam mais facilmente as vozes autistas adultas em Portugal, do que no Brasil, e eu penso que como os pais começaram o ativismo bem mais cedo, acaba por ser um bocadinho o território dos pais e é difícil alguns autistas adultos entrarem no ativismo. Em termos de vida no Reino Unido, pra ser sincera, é muito melhor. Sinto menos capacitismo. Claro que existe. Como disse, a questão da J.K. Rowling e muitos mais. Mas existem infraestruturas para ter a certeza que garantem específicos acessos e facilidades que não vejo em outros países. De qualquer forma, infantilização, tratar a pessoa com deficiência como uma inspiração quando está apenas fazer a sua própria vida, assumir falsas capacidades, ou sentir pena, isso existe em todo lado, infelizmente.
Tiago: Quando a gente discute deficiência e até alguns temas como capacitismo, a gente também precisa pensar também no contexto da rede de pessoas em torno da pessoa com deficiência. Lá no início do episódio, Lau, você disse que o termo mais atípicas é um termo muito usado, principalmente no campo do autismo, mas que é um termo que você disse que não é totalmente adequado, eu queria que você comentasse um pouco disso, até mesmo a nível de informação aqui pra gente, porque eu costumo falar muito em maternidade atípica.
Lau: Então, essa é uma discussão, né? É uma discussão que está acontecendo. Eu costumo dizer que discussões estão acontecendo são coisas boas, assim. Eu acho que a gente tem que questionar tudo que vem muito pronto, porque esse é um lugar de construção, questionar, né? Então, tem muita gente que não gosta do termo atípica, que acha que atípica puxa pra um lugar de anormal. Eu entendo, assim, também, mas eu entendo que a minha maternidade atípica é um lugar social que eu ocupo por ser mãe de um menino que tem deficiência e, por isso, sistematicamente atravessado pelo capacitismo. Então, eu entendo a maternidade atípica como um lugar social. Então, pra mim, ela é o termo é tranquilo, mas tem mães que entendem que o que a gente tá dizendo com maternidade atípica, é que os nossos filhos são atípicos, é que os nossos filhos são “anormais”. Então, aí cabe uma discussão longa, porque a gente tá falando de muitos tipos de deficiência, a gente tá falando de muitas percepções diferentes, como tu disse, no meio do autismo, esse termo atípico é mais comum. Em outros mundinhos, dessas caixinhas, já não é tão comum. Então, tem percepções muito diferentes. Eu acho que a gente não vai chegar exatamente num consenso, mas o que eu entendo por maternidade atípica é isso, a gente precisa dar um nome pra existir, né? Dizer que eu sou só mãe, não dá conta do que eu vivo enquanto mãe, não dá conta porque não tem políticas públicas que me respeitem, não dá conta que as escolas negam vaga pro meu filho ainda, não dá conta, porque existe uma estrutura social que faz de tudo pra me deixar a margem e deixar o João à margem, né? Eu tô nessa experiência, obviamente, por tabela. Então, dar um nome pra essa maternidade é importante pra que essa maternidade exista, pra que ela seja falada, pra que ela seja discutida e pra que a gente tenha espaço de luta, principalmente por direitos. Então, eu entendo maternidade atípica como um lugar social ocupado nesse momento por mim, mas eu torço muito pra um dia que eu possa ser só mãe. Eu brinco muito com isso, né? Porque o dia que eu puder ser só mãe, o dia que eu não precisar de sobrenome, o dia que eu só puder falar sobre a minha maternidade de uma forma normalizada, significa que a gente já mudou muitas coisas da estrutura e que o João já não precisa ser sinalizado a todo momento como um ser diferente em todos os espaços que ele ocupa.
Tiago: É interessante isso, até porque você falou, né? São diferentes olhares e vivências conforme a deficiência, né? O universo das pessoas com deficiência é muito complexo. E eu sempre fiquei pensando e até dialogando com outros autistas de como que o movimento do autismo, que é um movimento que tem as suas especificidades, ele tem uma história que, às vezes, até caminha de forma paralela a outras deficiências, pode dialogar melhor com o movimento das pessoas com deficiência e não só isso, de também encontrar características em comum, porque parece, às vezes, que dentro do autismo, eu não sei qual é a opinião da Sara e a sua, Lau, mas parece que, às vezes, dentro do campo do autismo, as pessoas sentem uma certa exclusividade, sabe? “Ah, o autismo é diferente, o autismo é uma categoria especial.” E eu acho que tem muitas coisas são parecidas, na verdade, e a gente não percebe.
Lau: Eu acho que tem muitas coisas, eu acho que a estrutura é a mesma, né? A estrutura que a gente precisa combater e questionar é a mesma. E por isso que eu acredito muito em conversas que se cruzam. Obviamente, aquilo que a gente falou no começo também, a gente tem essa necessidade das conversas específicas, porque existe uma necessidade das pessoas entenderem a sua própria vivência, debaterem com pessoas que têm vivências parecidas, existe essa necessidade. Mas existe uma necessidade que eu sinto e torço muito pra que a gente caminhe pra isso em algum momento, que é de entender qual é a parte da conversa que nos une, que nos coloca todos em lugares parecidos. E me parece que é esse lugar frente a essa estrutura capacitista. A estrutura é a mesma. E quando a gente encontrar esse diálogo maior, eu acredito que o movimento todo ganha muito mais força.
Sara: Pessoalmente, da minha parte, eu penso que há uma questão muito grande na parte do autismo: “É o autismo uma deficiência ou é uma área social, uma diversidade social?”. Pessoalmente, eu penso que é uma deficiência, devido a como a sociedade nos coloca na própria sociedade, às dificuldades que nos impõe. Eu, pessoalmente, sou autista, mas também sou pessoa com deficiência, porque tenho deficiências auditivas tenho uma autoimune. E portanto, a questão é: até que ponto o autismo, se não houvesse qualquer dificuldade social, realmente era uma deficiência? Agora o problema é que com qualquer tipo de deficiência isso iria acontecer, porque se tivéssemos acessibilidade, se não houvesse capacitismo, todo tipo de deficiência já não iria ser deficiência, estariam integradas, teriam facilidade em trabalhar, não todas, obviamente, com diferentes níveis, mas teriam muito mais acesso à sociedade. E penso que é uma uma grande questão que começa a surgir agora, principalmente na área do autismo, muitas pessoas dizem que não são deficientes. Eu acho que também é um capacitismo internalizado, ou seja, acharmos que ser deficiente é, em sua parte, ser inferior. Pessoalmente, eu penso que é um bocadinho assim. Se é ou não, teríamos ver nos próximos tempos e discutir e falar mais sobre o assunto.
Lau: É, eu concordo muito com a Sara, porque é isso, a deficiência acontece no encontro desse corpo que tem a sua especificidade com um mundo absolutamente excludente, não acessível em diversas camadas. Então, a gente estuda muito isso quando a gente vai olhar as teorias, feitas ao longo do tempo, pensando na pessoa com deficiência e nessa vivência. E é isso, onde a deficiência está localizada? Se o mundo fosse todo acessível, bem o que a Sara disse, será que a gente estaria aqui falando de deficiência? Será que a gente colocaria as pessoas nessas categorias? Será que a gente precisaria desses termos? Então, penso muito sobre isso também. E acho que sim, Sara, todos nós fomos educados para sermos capacitistas. Todos nós fomos educados nessa estrutura, que é essencialmente capacitista. Então, todos nós temos reflexos disso em maior ou menor nível. E acho que tem uma força muito grande de tirar a deficiência desse lugar, de ser uma coisa ruim, uma coisa inferior. E acho que a gente só consegue fazer isso realmente com com diálogos mais coletivos e que talvez esse seja o ponto de entender que nesse ponto estamos no mesmo lugar, embora como vocês dois já falaram, o mundo das deficiências seja muito vasto, muito diverso, muito plural.
Tiago: Sim, no caso do autismo também tem uma questão histórica, né? Eu acho que o diagnóstico de Síndrome de Asperger ajudou bastante as pessoas se confundirem nesse sentido. Existe uma relutância das pessoas que foram diagnosticadas com Síndrome de Asperger em se aceitarem como pessoas com deficiência, de entenderem a relação da chamada Síndrome de Asperger com o Transtorno do Espectro do Autismo, que é a definição atual que a gente usa. Então, também tem essa particularidade, mas ao mesmo tempo tem essa contradição, em certa medida, de que autistas que passaram a vida inteira desassistidos, que conseguiram ter uma certa autonomia, às vezes, a trancos e barrancos, tendo outros problemas com ansiedade, depressão e etc., mas ao mesmo tempo eles não aceitam a sua existência enquanto pessoa com deficiência, sem entender de todo o processo que eles passaram. Então, isso também é uma questão de tempo e a gente tem que respeitar, do ponto de vista individual.
Sara: É outra forma de capacitismo, que é assumir que não temos incapacidade,ou que não temos deficiências, por externamente, como mascaramos tanto, muitas pessoas apenas assumem que nós não temos qualquer deficiência ou dificuldade, ou que não somos autistas por não ter essa dificuldade. É outra forma de capacitismo.
Tiago: Com certeza, né. E tem uma questão, também, do diagnóstico, o profissional que se nega a entregar um laudo, achando que você tá correndo atrás de privilégios, que na verdade são direitos, é uma longa discussão, é um negócio, realmente, muito complexo, que, infelizmente, não dizem respeito somente ao autismo. Eu já vi outras pessoas com deficiência também relatarem coisas parecidas. Sara e Lau, muito obrigado pela participação de vocês aqui no Introvertendo. Infelizmente, o papo é curto, mas foi muito legal. Eu queria que vocês dessem o recado final, alguma coisa que vocês acharam que ficou faltando e também indicações de leitura. Quem quiser saber mais sobre capacitismo, sobre deficiência, alguma coisa interessante aí, fiquem à vontade.
Sara: Eu tenho no Instagram e no Facebook o Autismo em Português, eu tento falar um bocadinho sobre o capacitismo, mas em geral sobre a experiência autista.
Lau: Bom, já que a gente começou conversando um pouquinho, eu e tu, dos efeitos do capacitismo na vida adulta das pessoas e eu acho que eu queria encerrar falando alguns dados assustadores do Brasil: 1% das pessoas com deficiência estão no mercado de trabalho formal, 61% das pessoas com deficiência no Brasil sequer terminam o ensino fundamental, e só 6% chegam num ensino superior, numa faculdade. Esses são números que não falam sobre a capacidade das pessoas, mas são números que falam diretamente sobre essa estrutura capacitista e nesses números a gente não consegue diferenciar quem é autista, de quem tem paralisia cerebral, de quem tem surdez simplesmente tá falando de um grupo de pessoas que é sistematicamente excluído por ser quem é, por ser as características que tem. E eu fico com essa coisa pra gente pensar nessa provocação. Qual é a importância de falar do capacitismo? Ainda tem gente dizendo que é mimimi, que é só mais um nome, só mais uma um nome pra gente reclamar um pouco, mas na verdade é uma violência mesmo, é uma violência que tá deixando muita gente de fora.
Sara: Em termos de autismo, só 15% trabalham, segundo dados do Reino Unido, e que temos uma probabilidade 9 vezes superior de tentar ou cometer suicidio. Isso mostra também nossa dificuldade em integrar à sociedade, e o quanto precisamos de um espaço nela.