Gabriela Guedes e Luciana Viegas são mulheres negras e mães de autistas. Na segunda parte da reportagem Raça, abordamos as particularidades da maternidade atípica em torno da identidade negra, ativismo, racismo na classe médica e muito mais. Locução: Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Este é o segundo episódio da série Raça. Se você não ouviu o nosso primeiro episódio, dá um pause rápido aqui e ouça ele antes, porque a discussão vai continuar de onde paramos lá.
(Abertura Introvertendo)
Tiago: A comunidade do autismo é formada por muita gente que se interessa pelo tema do autismo. Além disso, uma família que tem autistas negros muitas vezes também tem mães dentro dos recortes de raça. Então, decidimos contar a história de duas mulheres pretas, ativistas e mães de autistas, para dividir suas experiências. Meu nome é Tiago Abreu, e esta é a segunda parte da reportagem Raça.
Gabriela: Na verdade, assim, a minha família é do interior da Bahia, bem do interior mesmo, né, então, é descendente direta de escravos e índios.
Tiago: Esta voz que você ouve é da jornalista Gabriela Guedes, nascida em São Paulo e mãe de Gael, autista de 4 anos. Ela traz, em seu blog “Mãe Atípica Preta”, um recorte do autismo voltado para a questão social e racial das pessoas pretas. Ela conta que a luta das mães e das crianças pretas é diferente.
Gabriela: Primeiro assim, eu quero dizer: a nossa maternidade, tanto a maternidade tradicional quanto a maternidade atípica, ela se encontram. A maternidade atípica e a maternidade atípica preta, elas se encontram em determinado aspecto, que é fazer o tratamento, as consultas, os acompanhamentos, enfim, só que a maternidade típica preta tem a interseccionalidade, que é o cruzamento, que é onde outros fatores vão também inferir diretamente no nosso acesso, no nosso tratamento. E aí são os fatores sociais, são os fatores econômicos, são fatores raciais, todos esses fatores eles vão interferir diretamente no acesso, tanto das crianças ao tratamento, ao diagnóstico, a permanência no tratamento, principalmente. E, principalmente, na saúde mental das mães negras. Por exemplo, meu filho é uma criança preta, que eu também tenho que fazer acompanhamento pelo CAPS, porque eu tenho atendimento pelo convênio. E uma hora o convênio pode cortar esse tratamento. Na maternidade típica, eu poderia simplesmente chegar com meu filho e conseguir um tratamento e a permanência desse tratamento, isso não acontece, isso acontece pelo fator financeiro, pelo fator racial, pelo fator de classe. A gente tem aí uma demanda que um tratamento convencional por semana deve ser mil e pouco, dois mil, um tratamento convencional pra uma criança autista. E eu não tenho essas condições…
Tiago: Para dar visibilidade ao autismo em pessoas pretas, ela se reuniu com outra mãe, a Luciana Viegas, e formaram um coletivo para diminuir ou mesmo, eliminar esse abismo entre o autismo de crianças pretas e brancas.
Gabriela: E a gente descobriu outras mães também no Instagram. E aí a gente se uniu e fez um coletivo. Porque assim, a gente falava que não tem como a gente viver nesse silêncio, só a gente saber as coisas e as pessoas vão saberem, não conhecerem. Quando o Gael foi diagnosticado, e eu fui buscar referência sobre autismo, todo autismo que eu vi era branco, era como se meu filho, por ser negro, ele não pudesse ter o título. Então, toda referência que eu tinha do autismo era branco, era classe média alta, eram crianças que tinham acesso a tratamento E aí a primeira vez que eu fui procurar o laudo, o médico me falou: “olha, você vai precisar de uma análise neuropsicológica e essa análise é quase dois mil reais”. Então, que mãe preta, periférica, vai ter esse dinheiro, vai dispor desse financeiro pra conseguir?
Tiago: Gabriela é enfática ao afirmar qual é a sua visão sobre o autismo – sobretudo quando a família não tem todos os recursos econômicos para ter acesso aos contextos sociais mais avantajados.
Gabriela: Pra gente, a questão do autismo não é o problema. Isso eu falo porque a gente conversa muito entre a gente. E a questão não só do autismo, mas de outras deficiências, a preocupação não é o transtorno. É a questão social. Porque é a luta até o diagnóstico, a luta até o laudo, é a luta até o tratamento, é a luta da manutenção do tratamento e a luta para se manter em meio ao tratamento.
Tiago: E também conversamos com a Luciana Viegas, que é professora, tem um filho autista e recentemente diagnosticada. A Luciana também é um dos motivos pelos quais fizemos esta reportagem. Não só ela, mas vários autistas já nos procuraram perguntando quando íamos falar da questão negra. Achei que apenas um episódio seria muito pouco e esta reportagem seria uma ótima oportunidade para aprofundar a discussão.
Tiago: Ela faz parte da comunidade há pouco tempo, mas já chamou muito a atenção. Luciana foi alvo de matérias no UOL, Estadão, R7, BBC Brasil, Carta Capital e outros grandes veículos. E, na edição anterior da Revista Autismo, ela escreveu um texto sobre os atravessamentos do racismo e do capacitismo em sua maternidade atípica.
Tiago: Um exemplo claro disso é que tanto ela quanto seu filho foram alvos de comentários racistas de profissionais.
Luciana: Uma pessoa negra dentro de um consultório a sua palavra é totalmente desvalidada. Isso é fato, não sou eu que tô falando, eu não tirei isso da minha cabeça, existem estudos, a população negra está adoecendo dentro da saúde mental, a gente é desconsiderado. Por exemplo, o médico fez um relatoriozinho contando o que eu contei pra ele, levando em consideração, ela só precisava ouvir ou ler, mas ela desconsiderou imediatamente o meu relatório.
Tiago: Luciana reside em São Paulo, mas já morou por um período em Jundiaí, no interior do estado, e herdou do pai o orgulho de sua ancestralidade. E foi assim que ela, Gabriela e outros ativistas, inspirados no Black Lives Matter, decidiram constituir um movimento de pessoas pretas com deficiência, o Vidas Negras com Deficiência Importam.
Luciana: E aí eu comecei atrás dos Estados Unidos, obviamente, como referência, porque eu conheço o movimento, eu queria ver que que as pessoas com deficiência estavam pensando por lá. E aí eu conheci a galera do do Black Disabled Lives Matter, que é o pessoal do movimento PCD dos Estados Unidos, que se aliaram e se uniram na luta das pessoas com deficiência. E aí a luta é mútua. Ela é a luta de pessoas negras com deficiência, mas as pessoas brancas com deficiência também se aliarem a essa luta por se reconhecer dentro dessa luta, porque é o que eu falo sempre. Eu acredito que a luta anticapacitista e a luta antirracista são uma das lutas mais próximas. Aí eu fui atrás desse movimento, falei dessas minhas questões pras meninas, a menina ficou feliz da vida de saber que o símbolo que ela tinha criado chegou até o Brasil. E aí, o legal do movimento é que não é só autistas. A galera preta PCD tem começado a se reconhecer, tem começado a se empoderar e tem começado a se unir para poder pautar essas questões.
Tiago: Ela afirma que, ao longo de sua trajetória na comunidade do autismo, percebeu dissonâncias relativas a cor.
Luciana: A comunidade autista brasileira é uma comunidade embranquecida, não temos representatividade de autistas negros. Isso é um fato. Não tô falando que não existem autistas negros, eu estou falando que não temos visibilidade.
Tiago: Amanhã, vamos refletir sobre a riqueza de um passeio pela negritude de nossa gente, dos brasileiros. Até lá.