Muito se fala em representatividade e como o autismo é representado na mídia, cultura e o foco na infância das pesquisas científicas. Neste episódio, Tiago Abreu conversa com Willian Chimura, Carol Cardoso e Polyana Sá sobre as definições de representação e representatividade, as diferenças das experiências e saberes em torno do autismo, o que é ser autista e, mais do que tudo, a polêmica pergunta: autistas “leves” podem representar autistas “severos”? Arte: Vin Lima.
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Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:
- Hey, Autista
- Polyana Sá no TikTok
- Stimados Autistas – Documentário
- Bancada dos Sonhos
- Diálogos sobre o fim do mundo
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e desde que eu ingressei na comunidade do autismo, representação e representatividade são temas que estão frequentemente discutidos não só entre autistas, mas todas as pessoas que têm interesse na temática do autismo.
Polyana: Saudações ouvintes da podosfera, meu nome é Polyana Sá, tenho 19 anos, sou autista, estudante de engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia na UFPR e também criadora do perfil no Instagram denominado “Hey, Autista” e pras pessoas que usam TikTok o perfil com o nome @phadoss. Fui diagnosticada por volta dos meus 15/16 anos e no início dessa quarentena, pelo excesso de tempo livre, eu resolvi começar a produzir conteúdo informativo pra internet sobre o Transtorno do Espectro Autista.
Carol: Oi, meu nome é Carol Cardoso, eu sou estudante de arquitetura pela Universidade Federal do Amapá, eu fui diagnosticada com autismo em 2018 e atualmente eu moro em Macapá, no Amapá.
Willian: Eu sou Willian Chimura, sou youtuber, também faço mestrado em Informática na Educação, participo aqui do introvertendo há algum tempo e hoje vamos falar sobre um assunto muito legal, que é a questão da representatividade. Como o Tiago falou, é um assunto que está sempre em alta em diversas redes, não somente nesse podcast, mas também tanto no meu canal do YouTube, quanto imagino eu nas redes sociais, TikTok, Instagram e as outras esferas da internet.
Tiago: E nesse episódio, então, nós vamos falar sobre as diferenças e semelhanças entre a questão da representação e da representatividade de autistas em todos os meios e também como o autismo é representado. O introvertendo é um podcast feito por autistas, cuja produção é da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Tiago: Quando a gente discute representação e representatividade, eu imagino que é forma fundamental a gente demarcar o que é uma coisa ou outra, ou se significa a mesma coisa. Carol, você pode trazer uma definição pra gente do que é representação e o que é representatividade?
Carol: Eu vejo que representação é uma face da representatividade. Então, representatividade, pra mim, envolve uma coisa muito mais complexa, que envolve realmente quem pode representar certo grupo social e de que forma esse grupo social deseja e acha justo ser representado. Eu vejo que existem muito equívocos envolvendo esses dois conceitos no sentido de que às vezes as pessoas acabam tomando representação por representatividade e acabando por legitimar certos discursos que não vão de fato beneficiar esse grupo específico.
Tiago: Então só pra dar uma contextualizada no cenário do autismo, a gente pode dizer tranquilamente que representatividade poderia estar mais inserido no campo do ativismo, então pensar, por exemplo, a participação de autistas nas discussões sobre autismo e representação, a gente pode pensar no sentido mais macro em relação à sociedade, por exemplo, como autistas são representados em filmes, em matéria jornalísticas e etc. E aí, é importante a gente pensar também de forma histórica de como autistas foram representados ao longo da história do autismo, porque são várias fontes que o nosso imaginário bebe. Então, a gente tem as discussões científicas que amparam um pouco disso, a gente também tem o próprio ativismo, as figuras participantes desse ativismo que vão nos orientar em certa medida, a gente tem um conteúdo cultural como filmes, séries, que vão principalmente ajudar as pessoas que não tem nenhum contato com o autismo a se inserirem inicialmente com seus primeiros passos dentro desse tema. E por fim, também, a gente tem um conteúdo jornalístico que tem um peso muito grande, porque, muitas vezes, é o primeiro acesso, também, de muitas pessoas em relação ao autismo. E aí, eu queria perguntar principalmente pro Willian, que existe uma crítica muito frequente por autistas, mas também por outras pessoas, de que há uma visão do autismo focada na infância e isso tem uma série de razões. Mas dentro das discussões científicas, Willian, por que a gente discute muito mais o autismo na infância do que em outras fases da vida?
Willian: Bom, eu já pensei bastante sobre isso, na verdade, Tiago, claro que eu não vou ter uma resposta aqui que eu posso te dar a certeza de que é por este fator. Como você bem mencionou, sim, de fato, na literatura científica, nas revisões sistemáticas, fica muito claro que há diversos estudos, as evidências sugerem muito mais o que é ou não é efetivo quando se trata de crianças, quando se trata de até adolescentes, mas quando você vai pra vida adulta realmente a gente tem poucas evidências. Autismo no mercado de trabalho, por exemplo, autismo no ensino superior, nós temos pouquíssima literatura científica. Quais motivos, quais são os fatores que contribuem para isso? Eu consigo imaginar, principalmente, a questão da neuroplasticidade. Por conta das intervenções serem muito mais efetivas e comumente conseguirem melhor resultado enquanto o sujeito, o indivíduo, ele tem esse período mais “neuroplástico”, ou seja, nos seus primeiros anos de vida, quando a gente consegue aprender melhor, então suponho eu que grande parte dos pesquisadores, principalmente aqueles que estão buscando de alguma forma de desenvolver habilidades, melhoria de qualidade de vida, de uma forma, digamos assim, mais impactante possível, eles vão alvejar nessa idade. O que é claro, é uma infelicidade para aquelas pessoas que, por algum motivo, até por falha do serviço público, por exemplo não conseguem uma boa intervenção, não conseguem bons tratamentos, bons recursos para conseguir um acompanhamento mais especializado em casos de autismo e aí eles só vão ter muitas vezes até o diagnóstico somente na vida adulta, como no nosso caso. E nesse sentido, muitas vezes, a gente fica sem esse respaldo da literatura científica. Então, suponho eu que há um maior interesse dentre os pesquisadores em pesquisar mais focado na infância por conta do tamanho do impacto que as intervenções podem ter em uma magnitude maior quando se trata desse indivíduo nessa fase mais neuroplástica da vida.
Tiago: Sim, concordo. Eu, como jornalista, tenho uma preocupação muito grande sobre a forma como profissionais da área da comunicação também apresentam o autismo. Nós temos muitas influências no nosso dia a dia ali, durante o trabalho, a gente tem referenciais e formas de se trabalhar o conteúdo ou a informação que a gente quer transmitir. Quando nós, jornalistas, vamos abordar autismo, talvez o primeiro pensamento é procurar uma associação. As associações de autismo, elas são, em maior parte, formada por pais de crianças, que são pessoas ali que acabaram de entrar nesse processo, tão se construindo há poucos anos. E, portanto, toda apresentação dada ao autismo dentro dos meios midiáticos costuma ser muito na infância. E aí tem a questão do texto, o tom que a gente fala sobre autismo e também tem a questão das imagens. Então, geralmente é uma criança que tá ali brincando com dados, alguma coisa, alguns objetos, geralmente uma criança branca, tem vários elementos ali . Até se você procurar num banco de imagens por “autistic”, geralmente vai ser um tipo de pessoa que vai ser apresentada. Recentemente, saiu um documentário chamado Stimados Autistas, que, inclusive, a Polyana, nossa convidada aqui de hoje participou. E a Polyana falou uma coisa muito interessante nesse documentário que me chamou muito a atenção. Em algum certo momento a Polyana é perguntada qual é a principal característica dela que as pessoas olham e pensam imediatamente a simplesmente olhar ela ou perceber a sua personalidade e ela diz que a primeira questão é a cor. E eu fiquei pensando: “Poxa, em outros autistas pode ser simplesmente a personalidade, para outros pode ser simplesmente a questão do gênero”. Então, eu fiquei refletindo muito sobre isso. Polyana, você poderia detalhar um pouco pra gente como é isso assim, no sentido de que como as pessoas vêem você? Eu acho que isso também tem um pouco a ver com a representação, porque eu quase nunca vejo pessoas negras representadas em materiais jornalísticos.
Polyana: Quando a gente fala do Brasil, o nosso país é um país que historicamente tem essa questão da história escravocrata, que por muitos anos nós tivemos essa cultura de menosprezar as pessoas pretas e de estigmatizar elas mesmo quando foi permitido que elas convivessem no mesmo meio social que as pessoas brancas. Tudo isso acarretou no que a gente chama hoje de um racismo estrutural que consegue vigorar nos mais diversos âmbitos das nossas vidas, quando a gente vai comparar. Eu acredito que quando você cresce como uma criança preta no Brasil, você tem esse estigma, essa questão levada em consideração contigo a partir do momento em que você nasce. Então são um conjunto de regras que são ensinados desde que você é muito pequeno para que a polícia não suspeite de você e quando você vai entrar no colégio, são uma série de comentários que são passados pra ti, pra que você acredite que você é menos do que aquelas outras pessoas, além de todo estereótipo cultural que é fornecido pela própria sociedade brasileira, com a representação em filmes, séries, desenhos, que sempre são mostrados de uma maneira muito pejorativa. O maior peso que eu tenho quando eu vou me apresentar às pessoas quando adentro nos lugares, querendo ou não, é a questão de ser preta. E quando eu entrei na comunidade autista, eu também senti muito disso, sabe? Uma coisa muito peculiar, porque como você disse, há pouca representatividade de pretos, pretas, pretes, no movimento autista, porque a nossa população é uma população que tem pouco acesso às políticas públicas de saúde mental, tanto é que você não encontra muitos estudos a respeito disso. E quando você vai pros Estados Unidos, por exemplo, você tem essa mesma disparidade quando a gente vai se referir a população latina. Então, são populações muito estigmatizadas pelo Estado e que não recebem esses recursos de base quando eles são solicitados. Então, quando a gente vai analisar essas crianças autistas, quando elas poderiam ter recebido o diagnóstico na primeira infância, na segunda infância, passam a vida inteira sendo chamados de “especiais”. Não tem acesso à saúde pública, quando crescem, às vezes são encaminhados para alguma APAE, mas sempre encaminhado daquela forma de nunca ter um diagnóstico fechado, nunca ter o acesso correto, nunca ter um médico que se preocupe em sentar lá e explicar. E quando eu percebi isso, eu fiquei muito chocada, muito triste, porque você percebe que quando você entra nos lugares, às vezes tem até um pouquinho dessa relutância em ouvir as palavras do autismo (como se fosse uma religião), mas ouvir as questões relativas ao autismo por parte de uma pessoa preta ao invés de ouvir por uma pessoa branca. E eu percebia isso nos vídeos que eu fazia na internet, os tipos de comentários que eu recebia no início. Eu vi pessoas que começaram junto comigo, que faziam conteúdos exatamente iguais aos meus, e viralizaram, assim, sem sentido nenhum. E a gente vai sentindo esse peso. Mas como eu já disse, no documentário, não sei se entrou essa parte, mas eu digo de novo: uma vez que nós ocupamos os nossos lugares de fala e de representatividade, nós não deixaremos de ocupá-los. Então, por mais que incomode a primeiro momento, a gente não vai deixar de fazer, porque é tanto o nosso direito, quanto das outras pessoas.
Tiago: Sim, partindo desse pressuposto que você falou, Polyana, eu fico pensando também, qual é a forma certa de se representar autistas, principalmente focado na questão cultural. Porque, por exemplo, na história do autismo, nós tínhamos várias concepções. O autismo de Kanner, até a década de 80, era considerado muito raro, muito “incapacitante” e aí, a medida que outras pessoas também começaram a postular de que o autismo era, na verdade, muito mais comum do que se imaginava e que também variava em várias formas de manifestação do autismo, a gente começou a flexibilizar um pouco mais e tirar essa ideia do autismo como uma sentença de morte. E aí, veio Rain Man, que trouxe uma abordagem diferente. E aí, começaram a surgir as discussões em relação à Síndrome de Asperger. Eu imagino que agora, mais recentemente, também, o quanto a série Atypical deve ter criado uma nova onda que a gente vai perceber de uma forma mais consistente só daqui a alguns anos. Então o autismo vem sendo reinterpretado de tempos em tempos pelos meios midiáticos e pela própria população que vai interagindo com essas produções culturais. Quando saiu Amor no Espectro eu vi muita gente reclamar falando que a série só trouxe autista leve. Será que toda produção cultural realmente vai conseguir representar autistas em sua completude? Eu acho que isso é um pouco difícil, mas também eu queria argumentar aqui que se a gente consegue representar o autismo de alguma forma com profundidade, isso também diz respeito ao próprio formato da produção. Eu não sei quantas pessoas já trabalharam com documentário, mas até o próprio Stimados Autistas que você foi entrevistado, Polyana, ele tem um certo recorte. A fala dos entrevistados tem que se encaixar e é um desafio representar o autismo em toda a sua variabilidade no espectro.
Carol: Pegando o gancho que tu falou sobre Amor no Espectro, me marcou muito a fala da psicóloga que acompanhava muitos dos autistas do documentário, que ela fala que sempre que ela conhece um autista, ela aprende um pouco mais sobre o autismo. E representatividade não deve ser limitada às vivências pessoais das pessoas, mas é uma face disso. Então um autista leve nunca vai poder representar o grupo “autistas”. Porque ele tem uma vivência sobre o que é o autismo que é muito diferente das outras vivências e mesmo dentro do grupo “autistas leves” a gente encontra muitas variabilidades, tanto que que eu acho que o nosso grupo aqui, desse episódio específico, a gente vem de lugares diferentes, tanto lugares físicos, como sociais, muito diferentes e mesmo que a gente tenha o mesmo diagnóstico, a gente tem formas diferentes de vivenciar o autismo. Isso varia muito de acordo com a proposta dessas mídias e desses meios jornalísticos. A questão que eu acredito que deva ser sempre colocada em pauta não é exatamente que uma proposta seja para representar só autistas leves ou só autistas severos e sim que não se restringe a isso. Ou seja, é a forma como a gente às vezes se restringe e os motivos que fazem a gente se encaminhar nessa restrição. Por que que a gente opta por retratar mais de um público e não outros?
Tiago: Eu concordo e eu penso também de que existem várias formas de ser e existir dentro do espectro e existem várias formas de ser e existir no Brasil, como a própria Polyana falou. Então, acho que existem até vários sub-recortes que a gente mal discute dentro da comunidade. Por exemplo: por que que quando eu acesso o conteúdo de autistas na internet, geralmente, são autistas que vivem grandes metrópoles, que tem uma experiência profundamente urbana, com uma perspectiva centro-sul do Brasil? Porque existem várias questões sociais e econômicas que estão relacionadas ao nosso estilo de vida, que faz, muitas vezes, com que pessoas que estejam mais no Nordeste ou às vezes até no Norte do Brasil, que é geralmente a região mais sub-representada, não esteja aqui. E é exatamente por isso que eu chamei vocês três pra esse episódio, porque mesmo que eu acho que todos nós aqui temos experiência profundamente urbana sobre o autismo, a gente tem particularidades que talvez certos grupos dentro da comunidade do autismo não tenham. Então, acho que quanto mais a gente conseguir ouvir mais pessoas, mais vivências diferentes a gente tem, e também ancorado nas nossas leituras a gente consegue também desautomatizar esse olhar de ver o autismo só sobre uma perspectiva padrão como se ele estivesse distanciado de todas as questões que envolvem o nosso país.
Carol: Este teu comentário resume muito bem o que eu pretendia explicar sobre o que é representatividade. Eu sou uma pessoa que é autista e que vive na região norte. E eu não posso falar por todas as pessoas autistas da região norte. Mas o fato de que eu estou incluída dentro dessa discussão traz uma nova visão sobre o que é ser autista. Então acho que o que a gente procura com a representatividade, com essa discussão sobre representatividade, não é em si que uma pessoa esteja ali. Isso é muito importante, porque não dá pra falar de um lugar que a gente não vem. Mas o que é mais importante pra mim é trazer esse assunto para discussão, trazer essa visão que muitas vezes as pessoas que não vivenciam isso nunca vão pensar.
Polyana: Eu concordo muito com isso que a Carol falou, eu acredito que a melhor forma da gente trazer a representatividade pras pessoas que a gente quer representar é trazer nessa maior variabilidade possível de recortes que às vezes a gente tem a capacidade de imaginar num primeiro momento. Então, quando a gente tiver contato com um autista preto, um autista que seja não verbal, um autista que esteja dentro da comunidade LGBTQIA+, que a gente possa convidar essas pessoas para participar dos nossos meios e, às vezes, doar um pouquinho do nosso “privilégio” de estar ali falando para um determinado número de pessoas, por conta da nossa condição, seja ela de de cor, de região do Brasil, de apresentar um quadro com menos restrições de autismo e que a gente possa convidar essas pessoas que comumente não tenham acesso tão fácil a esses meios comunicacionais para que elas sejam inseridas e sejam mais aceitas pela comunidade que não faz parte da nossa. E também pela nossa própria comunidade, que muitas vezes acaba esquecendo de incluir essas pessoas quando vai fazer determinados eventos, quando vão pontuar determinados pontos de pauta pertinentes à comunidade autista e que acabam restringindo somente no padrão que é aquilo que a gente conhece e aquilo que é mais fácil de absorver e aquilo que vai ficar mais palpável para comunidade não-autista, quando na verdade a gente não deve fazer isso. Então, nós usemos os nossos lugares de privilégio para dar voz às pessoas que não conseguem ter acesso tão fácil a isso.
Tiago: A gente tomou uma discussão muito legal aqui nesse episódio, mas eu também quero fazer uma certa provocação pra vocês e vou jogar bomba aí.
Carol: (Risos)
Tiago: Existem muitos espaços e muitas formas de manifestação e de participação dentro da comunidade do autismo e também de representação do autismo nos meios culturais, nas discussões e etc. E eu fico pensando se é possível a gente alcançar esse status quase ideal de representatividade autista em todos os lugares, ou se a gente talvez teria que reconhecer limitações nossas nesse processo. Então, queria ouvir a opinião de vocês sobre isso.
Willian: É, realmente Tiago, inclusive em diversas palestras que eu faço, em toda a minha produção de conteúdo, eu particularmente digo que não necessariamente posso ser tomado como um caso de exemplo quando a gente está falando sobre autismo em geral, mesmo porque quando autista fala, a gente tem a nossas vidas, as nossas vivências, mas às vezes quando a gente vai falar sobre algum assunto em específico, as minhas vivências vão se relacionar com aquele assunto ou não necessariamente. No meu caso, eu posso citar aqui a questão do bullying. Na literatura científica, a gente vê que autistas leves, por exemplo, fazendo esse recorte, tomando essa liberdade de fazer esse recorte aqui, pra essa explicação, autistas leves costumam sofrer bastante com bullying no sistema educacional. Isso tá relacionado a uma série de problemas, uma série de dificuldades que envolvem as barreiras para o acesso à educação, inclusive até tenho pensado se esse combate ao bullying também não pode ser considerado como acessibilidade quando se fala de autismo leve. No meu caso, com a minha vivência de autista, por exemplo, eu também sofri bullying, mas na minha experiência em particular, eu não posso dizer que eu sofri por conta do bullying a tal ponto que isso trouxe algum prejuízo para minha vida. Porque, em particular, na vida de Willian Chimura, não necessariamente. E quando a gente fala sobre essa questão da representação dos autistas, por exemplo em obras, mesmo que essas obras midiáticas sejam baseadas na história real de alguém, por exemplo, nós ainda estamos inevitavelmente falando da manifestação do autismo para aquela pessoa. Então, uma das críticas que eu, particularmente, reservo quanto a todas essas questões de obras por exemplo, é que, muitas vezes, eles se preocupam tanto com o autismo, que, muitas vezes, acabam descaracterizando o próprio personagem e o resultado final acaba sendo o mais estereotipado possível. Quando a gente fala sobre autismo pressupõe-se um ser humano, ainda mais quando a gente fala sobre autismo, que é um um transtorno espectro com infinitas manifestações e realmente pode acabar sendo muito desafiador de se ter, se alcançar uma obra que vamos dizer: “poxa, essa representação do autismo nessa obra ficou bacana”, por exemplo. Mesmo que seja nichada para autismo leve, por exemplo, mesmo ainda que seja nichada, mesmo desconsiderando todos outros níveis de severidade, eu realmente acho que é um desafio, sim. As vezes eu entendo como é inviável de ir em uma única obra. É claro que a internet possibilita principalmente que pessoas com histórias reais e as pessoas que estão de fato na sociedade, principalmente através da internet agora e das redes sociais, a gente consiga cada vez mais elevar o patamar desse debate, dessa discussão e também do panorama da representatividade em geral, eu acho que é isso que todos nós estamos fazendo aqui.
Polyana: Eu particularmente concordo com o que o Willian falou. A princípio é impossível que você alcance representatividade plena numa obra ficcional sobre autismo. Eu acredito que seja humanamente impossível a gente criar essa representatividade plena, mas um caminho pra gente seguir em busca de chegar próximo disso, como eu havia falado anteriormente, a gente se preocupar em procurar esses autistas que se encontram em recortes mais “aprofundados” do que os nossos e que às vezes não tem uma acessibilidade tão grande aos meios que nós já temos mais facilidade. Então, por mais que não consiga, em totalidade, representar todos os autistas, que a gente procure ao máximo falar com maior número de autistas possíveis, nos diversos recortes possíveis que a gente consiga diversificar o nosso leque de referências quando a gente vai falar sobre o TEA. E que a gente possa ter sempre isso muito fresco nas nossas mentes. Que a gente possa sempre estar buscando, pesquisando sobre isso, tendo contato com todas essas pessoas para que o nosso discurso não se torne em algum ponto também segregacionista, ou que a gente represente só a bolha a qual nós fazemos parte dentro da comunidade autista. Pra mim é isso, que a gente procure o máximo possível estar abrangendo os recortes e por mais que seja impossível a gente englobar todos numa representação só, que a gente tenha pelo menos essa tentativa de inseri-los nos nossos diversos meios e participações que venhamos a fazer nas questões midiáticas e sociais.