Introvertendo 141 – Saudade (ou não sentir Saudade)

A saudade é fruto de memórias. A infância, o contato com os pais, amigos da escola, o primeiro beijo, a primeira transa, namoros, as festas e badalações da universidade… mas e quem não teve a oportunidade de viver nem metade dessas coisas, como é não sentir saudade? É possível ter uma relação saudável com a memória e com a ausência de saudade quando se é um autista frustrado com o seu passado?

Participam: Michael Ulian e Tiago Abreu.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, geralmente apresento os episódios e eu acho que hoje a gente vai descer um pouco o clima aqui da discussão.

Michael: Olá, eu sou o Michael, o Gaivota, e eu vivo de passado.

Tiago: As pessoas viram o tema do episódio e talvez ficaram pensando: “Hum, que que eles vão falar? Eles vão falar do passado, de infância, etc?”. Não é muito bem assim, tá? Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas, cuja produção é da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Falar sobre saudade é algo um pouco difícil porque até o conceito de saudade é discutível. Eu costumo dizer que saudade é um sentimento triste que é causado pela falta de algo que já existiu ou já ocorreu um dia na vida de alguém. Então as pessoas sentem saudades de momentos marcantes da vida. A infância, o contato com a família, os primeiros amigos da escola, o primeiro beijo, a primeira transa, o primeiro namoro, as badalações das universidades, mas aí eu fico pensando numa coisa muito importante: pra quem não teve oportunidade de viver nem metade dessas coisas, como alguns autistas, como é que é sentir saudade ou não sentir saudade? E aí, Michael, eu lanço essa pra você, porque algumas vezes que a gente já conversou, você disse que tem muitos momentos da sua vida que você sequer lembra, como é que é isso?

Michael: Cara, acho isso bastante engraçado. De fato, eu não tenho memórias da maior parte da minha infância. As minhas memórias começam a ficar mais ou menos sólidas só pra faixa dos 14, 15 anos, ao ponto que eu literalmente consigo contar nas mãos as recordações que eu tenho antes dessa faixa etária. Eu sempre tenho impressão que essa fase da minha infância foi um momento relativamente bom da minha vida, só que eu provavelmente esquecendo disso porque em compensação o resto foi tão ruim, mas tão ruim, que (risos)… Eu acho que se eu tivesse a memória da parte que foi boa pra lembrar ia ser complicado, beirando o impossível de lidar com as situações piores que eu tenho passado ultimamente.

Tiago: E eu também fico pensando que desde que a gente se conhece, desde 2016, você não teve grandes momentos bons na sua vida, pelo menos de lá pra cá (risos). E é muito curioso isso, porque quando eu penso na questão da saudade, a primeira coisa que eu quis fazer foi pesquisar outros conteúdos em podcast sobre saudade. E aí os temas sempre se dividiram em duas abordagens: sobre “momentos da vida que eu sinto saudade” ou “como eu posso sentir saudade de uma época que eu não vivi?”. E sempre fiquei pensando: “Tá, mas e quem não sente saudade? Quem não teve a possibilidade disso?”. E aí eu comecei a pensar sobre a minha própria infância, sobre a minha própria vida. E uma coisa me chamou muita atenção é que tem muitos desenhos infantis que sempre reforçam aquela ideia da amizade, do companheirismo.

Michael: Uhum.

Tiago: Por exemplo, Pokémon. Toda vez que o Ash termina uma temporada ou outra, ele tá se despedindo dos amigos, porque ele vai pra outra temporada e sempre tem aquele momento de emoção, aquele momento de desencontros. Isso sempre me despertou uma tristeza, sabe? Eu via esses desenhos, essas situações assim, sempre que tinham alguma referência a amizade, ao companheirismo, eu ficava triste porque eu não tinha isso na escola, eu não tinha isso nos ambientes sociais que eu frequentava. Então, eu fico pensando: e autistas que nunca tiveram a oportunidade de ter relacionamentos? Que vivenciaram situações de bullying durante a escola? Você envelhece e parece que o passado não importa muito pra você, não tem nada assim pra você nem sentir dor, sabe? Poxa, sentir dor da saudade, da nostalgia, é algo importante pra vida, em certo momento, e a gente nem sente isso.

Michael: Tu tem um ponto interessante, que no meu caso, praticamente todas as relações que eu tive com outras pessoas, elas sempre tendem a acabar de uma maneira ruim, ou se elas continuam, não é mais a mesma coisa, porque assim, aconteceu tanta merda no meio do caminho que por mais que atualmente com essas pessoas que eu ainda mantenho contato eu não esteja nesse estado negativo com elas, ainda assim também não é mais aquela coisa depois de tudo que aconteceu. Você tem o seu caso em que a maior parte das suas relações durante a infância até a adolescência e o começo da fase adulta foram relações que já começaram negativas, como a questão do bullying e da dificuldade social, e no meu caso é igualmente ruim, só que geralmente eu comecei com relações positivas, só pra ver em questão de meses ou no máximo anos para elas se tornarem relações extremamente desgastadas, extremamente complicadas e geralmente dá muita merda.

Tiago: E não tem perspectiva de futuro também.

Michael: É isso. Porque depois que você entra nesse mundo de relacionamentos sociais que é algo padrão humano, mas no meu caso mesmo eu só fui aprender a conversar, interagir com outras pessoas fora do círculo familiar nessa faixa também de 13 e com 14 anos que eu demorei bastante, mas ainda assim você tem principalmente esse processo de repetição, você vai lá e começa estruturar um relacionamento, esse relacionamento falha, vai dando errado, faz de novo, de novo, e de novo (risos). Honestamente, você não precisa ser um cientista para saber que se o seu experimento tá repetindo, tá dando o mesmo resultado sempre, é porque é isso aí mesmo cara, não tem muita chance de ser diferente disso aí não. Você vai criando uma certa perspectiva de: “pera, até agora todas as interações sociais que eu tive se desenvolveram dessa forma. Pra que que eu vou me dar o esforço de tentar uma próxima sabendo que vai ser exatamente a mesma coisa?”.

Tiago: Isso me faz pensar duas coisas, a primeira é o episódio O Problema das Interações Sociais, episódio 74, que nós gravamos na época com Marcos, que ele traz alguma coisa bem parecida com isso que você tá falando também e a Táhcita no episódio sobre Amor no Espectro, 122, ela também falou de um conceito que a gente chama de fracasso, que é quando a pessoa tem vários traumas na sua vida, já tem esse histórico e é muito difícil pro profissional lidar com uma pessoa que tá num contexto como esse, porque precisa ter sensibilidade. E como a gente fala muito sobre autismo, eu fico pensando: o diagnóstico para muitas pessoas é libertação. É redescobrimento, é mudança de vida, eu sei que você já disse várias vezes que não mudou nada na sua vida, mas eu fico pensando assim, mesmo que você tenha um diagnóstico, como, por exemplo, eu tive com 19 anos. A partir desse diagnóstico eu tive uma outra trajetória de vida, foi muito bom pra minha saúde, foi bom pra convivência, foi bom pro desenvolvimento pessoal, só que toda vez que eu me choco com o meu passado, e ele se constitui em um processo que as pessoas podem chamar de saudade, ou de memórias, é sempre algo doído e não vejo que há muita coisa que possa ser feita em relação a isso, porque as pessoas estão sempre em volta lembrando de grandes momentos da vida, da infância, de como uma época foi intensa pra eles, e eu não tenho história pra contar. Eu não tenho história pra contar legal do meu ensino médio, não tenho história legal pra contar do ensino fundamental, eu não tenho histórias muito divertidas pra contar dos lugares onde eu morei ou as coisas que eu compartilhei. A minha vida foi monótona, vazia e sem graça até esse período. E aí eu fico numa situação muito desagradável quando eu estou em um contexto, Michael, que acho que você nunca esteve na verdade, mas eu e o Willian Chimura aqui do podcast já estivemos, que são os eventos sobre autismo. Nós vamos fazer ainda um episódio sobre isso, mas é muito comum quando eu tô em eventos ou quando eu tô dando entrevista ou às vezes até mesmo uma live, o pessoal pergunta assim: “Ah, mas como é que era o seu tempo na escola? Como é que era isso pra você? A convivência?”. E é sempre algo que dói, entendeu? Não é algo legal de ficar relembrando. Eu me sinto como um objeto de estudo de caso que não passou pela comissão científica.

Michael: (Risos)

Tiago: (Risos). Beleza, eu entendo que isso tem um fim didático, eu sei que as pessoas querem entender, sejam eles profissionais, mães, mas é algo que dói, não é algo legal, eu não tenho saudade e eu não tenho prazer nisso. E eu já conversei com algumas outras pessoas dentro do espectro. Isso é muito comum entre elas.

Michael: Cara, isso entra naquilo que eu falei. Acho que no fim das contas, eu acabei me forçando a esquecer da maior parte da minha infância, porque é simplesmente melhor não lembrar, porque chega nesses momentos, alguém me pergunta: “Ah, e nessa época, como que era as coisas?”. Eu respondo: “Não sei. Não lembro (risos)”.

Tiago: (Risos). Isso parece a Thaís, a Thaís já falou uma época que ela teve depressão na graduação e ela disse que teve épocas da graduação que ela não lembra mais do que ela viveu, que era época tão ruim que ela apagou da mente de alguma forma. Eu não tenho esse mesmo prazer, porque eu tenho uma memória muito boa, de uma forma geral. Então eu lembro de coisas que eu não gostaria de lembrar, mas enfim, elas ficam martelando na cabeça (risos).

Michael: No meu caso é meio que o contrário. Eu esqueço das coisas boas, mas as coisas ruins (risos)… É, puta que pariu.

Tiago: As pessoas sentem saudade das coisas, das pessoas, geralmente fazendo uma referência com o presente: “olha, no meu tempo era melhor” e tal, só que se a gente não sente saudade do nosso passado, o presente é uma droga e a gente tem medo do futuro (pelo menos eu tenho medo do que nos espera enquanto humanidade, enquanto vida social mesmo, de autonomia), como que a gente tem esperança na vida? Você também tem essa sensação assim com o futuro? Pensando assim: “ah, o passado não é importante, o presente não é muito legal, o futuro parece que não é muito bom”, ou você pensa diferente?

Michael: Agora eu vou colocar aqui a maior vantagem de você não lembrar das coisas boas, porque esse período que eu passei de 2018 e 2019 foi tão ruim, mas tão ruim, mas tão ruim que mesmo eu estar passando numa situação atualmente que eu poderia dizer que é pior e com certeza piorou de lá pra cá, comparando com as coisas como eram há dois anos atrás com agora não consigo me sentir tão deprimido assim ou desesperançoso do futuro. Por pior que as coisas tem sido, é nem de perto o pior que eu já passei. Só que também tem a coisa ao contrário. Mesmo tendo isso em perspectiva, eu ainda continuo ciente que a situação tá bem ruim. Quando você percebe você, você compara isso, você olha pro futuro, você vê que não tem nenhuma chance de uma melhora da situação num prazo curto e até ultimamente num médio pra longo prazo, tava ruim, piorou, pareceu que melhorou só que daí ficou pior e agora continuou muito ruim (risos).

Tiago: Uma coisa que me chamou muita atenção nos últimos dias é que eu encontrei um texto da jornalista Eliane Brum, de 2014, quando o ex-candidato à presidência Eduardo Campos morreu, que foi uma morte que chamou muita atenção das pessoas. Foi algo muito inesperado. O cara no auge da sua carreira política se lançando a presidente, pensando em 2018 (porque ele não ganharia em 2014) e aí do nada o cara pega um avião e morre. E ela fez a seguinte reflexão: Em 100 anos, todas as pessoas que nós convivemos, todas as pessoas que nós conhecemos, esse mundo que a gente tá aqui não vai existir mais, porque todos nós estaremos mortos. Mas, ao mesmo tempo, esse mundo que a gente conhece vai morrendo aos poucos, ele morre junto com a gente. Ela fez uma reflexão assim no seguinte sentido: tudo aquilo que a gente consome enquanto material cultural, musical, literatura, tecnologia, tudo isso se transforma e o que resta são míseras memórias que não são tão concretas e um passado que a gente não pode voltar.

Michael: Só queria acrescentar nessa reflexão que essa moça fez, que daqui a 100 anos tudo vai ter mudado, todas as pessoas que você conhece vão estar mortas, menos aquele filho da puta, o filho da puta mais desgraçado que você conhece, aquele que fudeu sua vida, ele vai tá com 157 anos ainda enchendo o saco dos outros.

Tiago: (Risos). E dando trabalho, porque esse é o sentido da vida humana. As pessoas mais legais partem cedo e ficam alguns pra reclamar (risos), é muito curioso isso. E aí ela fez essa reflexão e era num sentido diferente. No sentido de pensar a morte, de pensar o quanto que as coisas mudam, mas eu quis transportar isso um pouco pra saudade, sabe? Sentir saudade nesse sentido é ficar preso em alguma coisa que nunca vai voltar. E por isso que o saudosismo também não faz tanto sentido. “Ah, no meu tempo era melhor!”. Será que era melhor mesmo? Era melhor você viver uma hiperinflação nos anos 80? Era melhor mesmo você não conseguir resolver nada com rapidez nos anos 70? Era realmente bom você ter que esperar duas horas pra baixar um arquivo de áudio de 50MB nos anos 2000? (risos). Então apesar de a gente não estar num período legal, a gente tá no meio de uma pandemia, mas eu não sei se realmente o presente é pior do que o passado.

Michael: Eu de fato concordo com você, mesmo na questão de que o XP continua sendo melhor Windows. E se não fosse pela questão da atualização de drivers que a Microsoft é uma pau no cu e não deixa essa merda atualizar… É um OS superior, não tem como discutir isso.

Tiago: (Risos). Eu concordo, concordo totalmente. O meu computador, se ele rodasse o Windows XP, eu não precisaria trocar de computador por uns 10 anos, não com a porcaria desse Windows 10 que transforma meu computador em uma lentidão completa.

Michael: Lixo. Toda vez que eu abro meu computador eu vejo que depois de todo esforço herculino que eu fiz pra limpar o bootware do Windows 10, essa merda continua usando dois 2,5GB de memória, liso, do nada, a partir do momento que ligou… é, saudades XP. Saudades XP!

Tiago: (Risos). Aí a gente realmente tem uma saudade fixa. É engraçada essa fixação, eu não diria que é uma fixação, mas esse interesse nosso mais por coisas do que por pessoas, porque as coisas não nos decepcionam tanto. Exceto se for um Windows Vista, aí decepciona…

Michael: Ah, mas não era culpa do Windows Vista, a culpa era dos hardwares da época que não aguentavam.

Tiago: (Risos)

Michael: Mas isso volta lá da primeira frase que eu falei hoje. Eu vivo de passado. Porque por mais que eu seja completamente anêmico quanto a minha própria experiência de vida e minhas memórias com as outras pessoas, não ironicamente minha vida inteira é focada em relembrar o passado, no caso um passado bem distante por causa da questão da paleontologia. Mas até fora do âmbito profissional, meus hobbies quase sempre envolvem coisas ou relacionadas a própria paleontologia, ou relacionados à história. Então, assim, eu tô a todo momento nesse processo de relembrar um passado, aquela questão de um passado que nem eu mesmo vivi ele. Só que daí eu também vejo uma diferença, porque não existe tanto um saudosismo, uma saudade propriamente dita nessa questão quanto existe de curiosidade. Essas coisas me trazem bastante interesse. Talvez até pela minha própria experiência, as coisas atuais não me trazem tanta animação assim. Eu sei o que que são as coisas que tão acontecendo aqui, eu sei do que que as pessoas fizeram e elas são feitas, e isso não me dá muito interesse aqui não. Que tal ir atrás de coisas quando não existiam pessoas? (risos).

Tiago: (Risos).

Michael: No final das contas é mais esta questão, acaba que nem nesse ponto existe tanto uma saudade, um saudosismo, é muito mais interesse mesmo, a curiosidade de descobrir. Tem outro ponto que também talvez ajude nessa questão pra gente tentar entender o porquê é tão difícil sentir saudade. Talvez não só porque as experiências são ruins, mas no meu caso tem essa questão de que eu tô sempre atrás de alguma coisa nova… Não diria que é um espírito explorador, porque eu sou preguiçoso pra caralho, como um cientista nato eu não tô contente só com isso, tem que sempre tá indo atrás do horizonte, sempre tenho que ver o final do arco-íris, sempre tenho que ir atrás da coisa nova, então, pra mim é muito mais fácil simplesmente olhar pro meu passado como algo que já passou literalmente e me focar no que tem a frente mesmo em situações tão ruins porque literalmente é melhor e mais interessante saber qual que vai ser a próxima merda que vai acontecer, do que ter que ficar relembrando todas as merdas que já aconteceram. Talvez a próxima merda vai ser uma merda diferente, quem sabe? Talvez?

Tiago: É, eu diria que, com base no seu relato, eu tenho certeza que eu preciso de psicoterapia, porque eu tenho uma vida hoje muito melhor do que eu tinha no passado, eu tenho amigos, eu tenho relacionamento, eu tenho estabilidade econômica no meio de uma pandemia, eu tenho perspectiva de atuação profissional, eu tenho perspectiva enquanto pessoa que quer estudar autismo, mas mesmo assim quando eu lembro de coisas do passado, de coisas da minha convivência ou quando as pessoas começam a conversar sobre isso perto de mim, eu me sinto frustrado e aí eu sinto dor. E pesando bem o assunto bad vibe, eu acho que que eu vou carregar isso pelo resto da vida e que eu vou aprender a lidar com isso. E é isso. Mas aí eu fico pensando: beleza, eu sou uma pessoa realizada hoje, certo? Eu tenho um presente bom. Mas e os autistas que nem presente bom tem? Aqueles que estão chegando perto dos 40 anos, nunca tiveram um relacionamento na vida e se sentem muito mal com isso, ou aqueles que não tem amigos, que não conseguem um trabalho. É algo muito complicado, as pessoas só pensam do ponto de vista de funcionalidade. Mas existem tantas questões relacionadas aos sentimentos que é complicado.

Michael: Meu caso, acredito que pra mim eu ainda consiga ter essa perspectiva neutra e até esperançosa do futuro porque no meu caso em termos psicológicos eu já passei pelo mais baixo do que eu conseguiria aguentar. Não vou dar detalhes aqui, porque começo a entrar numa situação que me dá um pouco de gatilho, mas tecnicamente eu tô numa situação ainda pior do que eu tava há 2 anos atrás, eu tô literalmente expulso de casa, sem perspectiva de trabalho, eu já praticamente desisti de voltar pra universidade porque não tenho chance e o mundo tá acabando (risos).

Tiago: (Risos).

Michael: Então, assim, obviamente eu tô numa situação pior do que eu tava há 2 anos atrás. Porém, eu já passei num ponto tão baixo psicológico que simplesmente eu não consigo ir mais baixo do que isso e também não consigo ir mais alto. Beleza. Mais uma coisa, mais uma coisa, grande novidade. Isso por um outro lado tem suas questões negativas também, porque você acaba se metendo em merda justamente porque você acaba ficando desesperado por sentir alguma coisa e literalmente ter esse tico de esperança que: “não é possível que eu que eu vivi literalmente pior do que eu tô vivendo e tô vivo”. Então assim, você acaba fazendo muita merda por causa disso. Olha (risos), eu tô conversando aqui literalmente sem nenhum impacto psicológico nisso e acho que é até estranho, porque geralmente quando se trabalha com mídia, você já tá assumindo que as pessoas que estão ali produzindo aquele conteúdo estão mentindo.

Tiago: Sim.

Michael: Basicamente todo mundo que trabalha com mídia é um ator. E o Introvertendo normalmente é o contrário, a gente tá falando literalmente a merda que a gente tá pensando. A minha função aqui é literalmente falar o que eu tô pensando.

Tiago: A maioria, pelo menos. Mas olha que as pessoas ainda avaliam que a nossa situação é boa, porque talvez a gente não mostre quão mal a gente está às vezes. As pessoas já falaram assim: “Nossa, vocês são tão desenvoltos”. Eu falo assim: “Vocês não sabem que aqui é porque a gente já desenvolveu skills suficientes pra gravar, porque às vezes é só juntar os cacos, assim, de cada um.

Michael: É. E aí vem a mágica do Tiago na edição também. Que faz as repetições de oito vezes, exatamente, com a frase travando no mesmo lugar serem só uma pro seu deleite.

Tiago: Eu fico pensando nessa questão que me entristece e de uma forma é até vergonhosa e eu não vejo muita solução pra isso, pelo menos a perspectiva que eu tenho nesse momento é admitir: OK, eu tive um passado péssimo, eu não aproveitei as coisas que eu poderia ter aproveitado, eu não tive grandes amizades na escola, eu não fiz coisas legais na universidade do ponto de vista social. Eu não desfrutei da maioria das memórias que as pessoas vão ter, mas eu tô vivo aqui ainda. E se o meu presente é bom, vou tentar fazer alguma coisa com isso. O que você diria pra alguém que tá num contexto como esse?

Michael: Eu olho pra isso, eu tenho esses pensamentos e who gives! Tudo já passou, tanto as coisas ruins quanto as coisas boas, é não é algo que eu posso alterar. É realmente difícil você explicar isso pras pessoas. Na sua situação é bem comum, é algo que você esperaria de uma pessoa normal falar, o clássico conselho de tiozão: cê tem que aproveitar a vida agora que tá boa então!

Tiago: O problema é que se eu aproveitar a minha vida agora, eu morro de Covid (risos).

Michael: (Risos). Nem falo nesse sentido. Você vê que, pra você, sua vida tá objetivamente melhor agora do que tava atrás e ainda assim você se sente triste. Normalmente o primeiro passo que o cérebro humano pensa é: uai, se tá melhor por que você vai ficar triste? Porém, pra uma pessoa que está ouvindo isso e tá buscando um conselho, você não explicou bosta nenhuma. O que ela quer saber é “como eu cheguei?”. É isso que ela quer, olhar pro passado e não se arrepender. Porém ela não quer ouvir que outra pessoa já chegou nessa estratégia, ela quer saber como caralhos a pessoa conseguiu chegar nesse ponto. Percebo que eu poderia ter feito coisas diferentes, percebo que eu poderia ter aproveitado essa oportunidade, mas não sentir arrependimento disso. Fez sentido que eu falei? (risos).

Tiago: (Risos) Acho que fez. O tempo passou, não tem muito o que fazer sobre isso e é isso. A gente continua seguindo aí nessa nessa esteira que vai nos levar a sepultura. E você que ouve o Introvertendo, você tem essa dificuldade em sentir saudade? Gostaria de sentir pelo menos essa melancolia, essa tristeza da nostalgia? Escreva pra gente, compartilhe com a gente suas alegrias e tristezas, se você não quiser se identificar tudo bem, que nós leremos aqui na nossa sessão de leituras de emails. Um abraço pra você e até o nosso episódio.

Michael: Inclusive é uma pena que a gente não possa colocar músicas com copyright no podcast porque a música de encerramento deste podcast tinha que ser “Mad World”, a versão do Gary Jules.

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