Introvertendo 133 – Autismo e Atividades Físicas

As aulas de Educação Física podem ser momentos ruins ou bons na vida escolar de autistas, e a experiência nessas atividades podem fazer com que estas pessoas sejam mais ou menos fãs de exercícios na vida adulta. Estas reflexões são desenvolvidas por Thaís Mösken e Tiago Abreu que, com a participação de Carol Cardoso, relembram os tempos de escola, as questões do autismo e o que gostam de fazer para se exercitar.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts | Podcast Addict e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

*

Transcrição do episódio

Thaís: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, este podcast feito por autistas pra toda comunidade (não apenas pra comunidade neurodiversa). Hoje nós vamos falar sobre autismo e atividades físicas. E é um tema que provavelmente traz lembranças ruins pra muitos de vocês, pelo menos pra mim, traz muitas lembranças ruins. Hoje nós vamos conversar aqui com o Tiago, que todo mundo já conhece e com a Carol, que já participou de um episódio também com a gente e hoje ela tá de volta pra falar um pouquinho mais. Então, eu sou a Thaís daqui de Florianópolis. Meu diagnóstico foi há dois anos e eu gostaria que vocês se apresentassem também.

Tiago: Meu nome é Tiago, sou jornalista, um dos apresentadores do Introvertendo, hoje eu estou fora dessa função e eu tenho certeza de que eu sou a pessoa com a pior coordenação motora de toda a equipe do Introvertendo. Vou falar muita coisa aqui hoje.

Carol: Oi, eu sou a Carol, tenho 23 anos e eu fui diagnosticada com autismo em 2018. Eu moro em Macapá, no estado do Amapá e no momento eu tô fazendo uma graduação em Arquitetura e Urbanismo. Eu pretendo me formar este ano se as atividades retornarem.

Thaís: Lembrando que esse podcast é feito com a assinatura da Superplayer & Co e agora vamos lá pro nosso episódio.

Bloco geral de discussão

Thaís: Pra começar a falar sobre essa esse tema de atividades físicas, eu queria que vocês comentassem um pouquinho a respeito da percepção que vocês têm sobre como atividade física afeta o dia a dia das pessoas, ainda sem falar sobre as nossas experiências mesmo, porque a gente sempre costuma contar bastante história nessas horas de falar sobre experiência.

Carol: Boa parte da minha vida, eu vi atividades físicas de uma forma muito negativa, tanto pelas minhas experiências que eu tive na escola com atividades que envolviam uma bola, então, sempre a minha cabeça não funcionava para identificar o lugar das bolas. Mas, depois que eu superei esse tipo de situação, eu sinto que as atividades físicas mudaram consideravelmente a minha qualidade de vida e hoje eu sinto muita falta quando eu não pratico nada, eu percebo que eu durmo melhor e que eu consigo gerenciar bem melhor a minha ansiedade quando eu tô praticando uma atividade física em relação às vezes em que eu não estou praticando atividade física.

Tiago: Eu tenho um histórico parecido com a Carol. Durante grande parte da minha infância eu via a atividade física como algo desnecessário ou como algo sem muita importância e a medida que eu fui crescendo e o corpo começa a sofrer um pouco mais à medida que você vai envelhecendo, eu fui percebendo a importância pra minha saúde, principalmente pro meu sono e também pra fazer outras atividades. Ou seja, eu percebi que não dava pra ficar 24 horas fazendo coisas do meu interesse, forçando o meu corpo de uma forma não saudável.

Thaís: É, assim como vocês, eu também tenho um histórico de que quando eu era criança, eu odiava atividades físicas, tentava o máximo possível fugir delas, evitá-las por muito tempo. Inclusive eu fazia críticas não muito inteligentes, achava que sedentarismo era uma coisa muito boa, inclusive. E com o passar do tempo também fui encontrando atividades que me interessavam mais, que se encaixam mais no meu dia a dia, que não envolviam bolas, porque bolas realmente são problema muito grande, bolas e pessoas, principalmente pra todos os lados, gritando (risos)…

Carol: (Risos)

Thaís: (Risos) e com o tempo eu percebi como tinha um efeito positivo a prática de atividades no meu dia a dia, como eu realmente durmo melhor, controle de ansiedade é uma coisa bem presente também quando eu consigo praticar atividades físicas. E agora na época de quarentena eu percebo como que tá fazendo falta.

Tiago: E ao pensar sobre a importância das atividades físicas, eu tenho um exemplo muito curioso. Eu só fui ouvir falar da palavra psicomotricidade quando eu ingressei na comunidade do autismo. E como eu queria ter sabido o que era isso quando eu era criança. E talvez alguém que esteja ouvindo a gente nunca ouviu falar em psicomotricidade e eu vou tentar explicar aqui de uma forma bastante simples, tá? Psicomotricidade é uma ciência que tenta entender todos os aspectos que são cognitivos, emocionais e motores de atividades, considerando as diferentes fases de vida do ser humano. E essa forma de compreensão se estrutura como uma ciência. E quando a gente tem um contato, então, com essa definição, a gente pensa muito no desenvolvimento do ser humano. E o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento. Então, dentro da comunidade do autismo, existem profissionais de psicomotricidade, porque autistas têm uma tendência a terem uma coordenação motora desajeitada. Eu lembro que em 2019, quando foi gravado o episódio 45, Roda de Conversa Sobre Autismo, uma das profissionais que estavam lá com a gente naquele momento era uma psicomotricista e ela foi falando de algumas coisas que ela trabalhava com os alunos dela, que eu pensava assim: “Gente, eu queria muito ter tido isso durante a infância”. Porque eu sempre fui uma criança completamente desajeitada, até excluída dos espaços sociais por causa disso e até hoje eu colho consequências disso.

Thaís: Eu já tropecei em muitas calçadas planas também, me machucando muito, e eu não entendia porque eu tropeçava de forma tão estúpida de vez em quando. Isso realmente me me faz pensar nessa questão de como falta coordenação pra gente em algumas situações ou na maior parte das situações, se isso tá relacionado até mesmo a parte de sobrecarga sensorial. Porque às vezes tem um ruído um pouco mais forte ou uma luz um pouco mais forte e isso afeta muito claramente a minha movimentação.

Carol: Ao longo da minha infância e adolescência, uma das coisas que dificultava bastante a minha participação em atividades físicas na escola era justamente essa sobrecarga sensorial, porque eu não conseguia lidar com muitas pessoas, geralmente a minha turma tinha quase mais de quarenta alunos, então juntavam duas turmas nas aulas de educação física, seria mais ou menos, sei lá, quase noventa alunos e isso sempre me desorganizou de uma forma que eu acabava levando muitas boladas na cabeça e eu não tô brincando (risos). Eu cheguei a levar muitas boladas na minha cabeça e teve um dia que eu levei uma bolada, as pessoas não entenderam que eu queria sair do jogo e eu levei outra bolada em seguida, aí eu desmaiei e esse dia me marcou muito profundamente. E a partir daí eu tive bastante dificuldade de me engajar em qualquer tipo de atividade física por boa parte da minha vida escolar. Uma coisa que eu tive um certo hiperfoco quando eu tinha aproximadamente dez anos foi basquete, mas eu só consegui levar adiante na parte em que eu fazia lances livres com a bola sozinha, porque na única vez em que eu tentei entrar em um jogo de basquete eu simplesmente não consegui agir, porque eram muitas pessoas, muitos gritos e isso me fez desistir completamente de jogar basquete. Depois dessa experiência, eu fiz natação durante boa parte da minha infância e adolescência e eu acho que talvez seja a atividade que eu mais tenha afinidade depois do taekwondo, que eu comecei a fazer já com mais ou menos 18 anos. E desde então taekwondo tem sido a minha atividade física preferida, eu gosto de pensar que a natação serve como um suporte hoje pro meu taekwondo, porque assim como basquete, taekwondo acabou sendo uma espécie de hiperfoco por um tempo. Eu até tinha um caderno do taekwondo em que eu anotava. Eu ainda tenho esse caderno, na verdade. Eu anoto todos os movimentos do taekwondo que eu aprendo, eu gosto de pensar que o que me deixou tão à vontade de praticar essa arte marcial foi o fato de que existem regras bem definidas, existem movimentos coordenados e não é uma loucura, não é uma coisa assim, totalmente fora de controle como as outras atividades físicas. Os movimentos todos têm nome, todas as bases tem nome, então se um professor me dá um comando eu consigo entender com facilidade, diferente das outras atividades que geralmente são muito desordenadas e eu não consigo compreender.

Thaís: Eu recentemente tive também uma experiência com artes marciais, eu comecei a fazer aikido. Eu percebi que era mais simples do que eu achava que seria no aspecto de que eu conseguia me concentrar muito no movimento especificamente que a gente tava fazendo sem ter que pensar tanto que tinham outras pessoas em volta, que eu tinha que encostar em uma pessoa, aquela pessoa encostar em mim, coisas do tipo, que eram características dessa atividade em específico que eu achei que ia me incomodar mais. E a parte que mais me incomodava nas aulas era o final, quando a gente tinha que se abraçar. Todas as pessoas se abraçavam e eu realmente detestava aquilo, eu evitava ao máximo, mas não tinha como evitar abraçar o sensei, ele fazia muita questão disso e também tanto no início quanto no final a gente fazia um pequeno “ritual”, que seria uma prática de trazer um pouco mais a tradição mesmo do aikido em que a gente bate palmas e eu detesto aquele som também. Então, pra mim, esses eram os dois momentos mais difíceis, na hora que a gente tinha que realmente executar as coisas, mesmo que executasse mal, tivesse dificuldade em fazer direito algo, mas eu não me sentia mal em fazer. A minha maior dificuldade tava nos momentos que teoricamente a gente devia relaxar ou que estaria tudo mais tranquilo. A atividade que eu mais gosto de fazer hoje em dia são caminhadas, eu faço caminhadas que eu pelo menos considero longas, de três horas, algo assim. Hoje em dia morando aqui em Florianópolis, que é um local muito bonito, tem praias, tem morros, então eu consigo fazer caminhadas bem longas e ver lugares diferentes. Então, a minha preferência hoje em dia é essa. E teve uma época também que eu ficava andando na esteira em casa também por muitas horas lendo. Então eu colocava o celular na frente da da esteira, até montei um suporte pro celular ficar ali, e eu ficava lendo por horas e horas. Eu também cheguei a fazer natação por um tempo, eu gostava muito de água, mas pra ser sincera eu não gostava da natação, porque as professoras sempre gritavam muito e o local ecoava com tudo, tanto a voz delas, a voz das pessoas, as pessoas caindo na água. Então, eu acabava não gostando também nesse aspecto, era tudo muito úmido em termos do ar, a gente pisava naquele chão molhado, eu demorei muito pra descobrir que tipo de atividade física ia ser agradável pra mim.

Tiago: No meu caso, eu fiz várias atividades, vários tipos de esportes ao longo da vida e eu fui um desastre em todos, literalmente todos. Até hoje eu não sei muito bem descrever qual que é a minha dificuldade motora, até porque eu sou uma pessoa que tem uma certa dificuldade de fazer uma análise dos meus próprios comportamentos, mas eu nunca me saí bem em nenhum esporte sequer. Se queimada for considerado um esporte, talvez seria uma exceção, mas ainda assim existe um elemento de sorte muito grande pra você se dar bem naquele tipo de jogo. Então, durante o período escolar eu fiz futebol, handebol, basquete, principalmente essas atividades que eu consigo lembrar com maior frequência e, em todas elas, eu tinha muita dificuldade pra poder fazer as pontuações ou os gols. Tinha dificuldade de segurar, tinha dificuldade de manejar a bola e manter o controle sobre ela, tinha uma dificuldade pra lidar com a pessoa que estava no time adversário e tinha dificuldade de relacionamento com os colegas. A minha última atividade física estruturada como esporte foi natação, que eu fiz na época do meu TCC e bem no início do Introvertendo, inclusive. Eu levantava 6 horas da madrugada, ia pra universidade e lá eu fazia aula na piscina gelada às 7 horas da manhã. Isso me ajudava a despertar, mas me deixava cansado depois e aí quando eu tive o TCC pra fazer, acabei saindo da natação. E a natação me foi sugerida para melhorar a coordenação motora e para diminuir a ansiedade, porque eu tinha feito academia várias vezes na universidade e eu tive crises alérgicas durante o processo da academia. Não sabia exatamente o que que me causava isso, se era alergia ao meu próprio suor, se era alergia ao movimento, eu sei que eu ficava todo vermelho e tinha que ir correndo pro posto de saúde tomar injeção. A primeira vez que isso aconteceu foi uma situação bem ruim, eu tava voltando da universidade, era fim de tarde, peguei o ônibus pra chegar em casa e a distância entre a minha casa e a universidade de ônibus dá no máximo 10 minutos. É um trecho bem pequeno. Só que entre a universidade e a minha casa, tem uma rodovia estadual, o tráfego estava parado. Eu sei que o trecho que demoraria no máximo 10 minutos pra ser feito, levou 40, 50 minutos. E aí eu comecei a sentir uma coceira muito estranha dentro do ônibus, eu não sabia muito bem o que que tava acontecendo com meu corpo e quando eu cheguei em casa e corri pro banheiro, porque eu achei que tomar um banho ia resolver, mas meu corpo tava todo vermelho. E aí, desde então, eu tentei voltar pra academia várias vezes e tive várias crises alérgicas. Então, entrei na natação pra isso e na natação a atividade era mais individual, eu me saía melhor nisso. O problema é que, mesmo assim, a minha coordenação motora era muito ruim. Eu demorei muito mais pra desenvolver em relação aos meus colegas, eu ficava muito desconfortável com isso, porque a turma inteira era prejudicada por minha causa e isso me deixava um pouco desconfortável. Até hoje em dia, eu não tenho uma relação muito agradável com o esporte. Durante essa pandemia, eu tenho feito muita caminhada. No quintal, eu coloco um episódio de podcast de uma hora pra andar. E todo dia eu fico num compromisso de ouvir um episódio de qualquer podcast e também faço exercício de andar. Só que a minha mãe já até comentou que eu tenho uma forma de pisar com os pés errada. Eu piso meio torto com o pé direito e os meus chinelos quebram com dois meses de uso. Eu tinha três chinelos novíssimos, eles já quebraram durante essa pandemia só andando dentro de casa. Então, eu tenho realmente alguma coisa na forma de andar e na forma de me movimentar que realmente me complica bastante. Sem falar que durante a pandemia eu desenvolvi tendinite. Então, assim, eu imagino que, na minha vida, provavelmente eu vou ser aquele tipo de idoso que vai morrer levando uma queda dentro do banheiro, porque é a minha cara isso.

Carol: (Risos)

Thaís: Você comentando as coisas, eu fui me lembrando de muitas situações minhas também. Agora essa de cair na rua, eu achava muito estranho, sabe? Porque eram muitas vezes que eu caía na rua e depois que eu vim pra Florianópolis, eu não caí nenhuma vez. Eu eu fico impressionada com isso, sabe? Porque não é só falar: “Ah, você cresceu”. Cara, eu vim pra cá com 26/27 anos, se eu não me engano, e até essa idade eu ainda caía em São Paulo. Então, eu tenho impressão de que eram os ruídos, sabe? Por todo lugar ser barulhento, eu acho que é por isso que aqui eu não fico caindo, me destroçando por aí.

Carol: Falando sobre natação, eu acho que a minha facilidade vem justamente do fato de que eu nasci e cresci na Amazônia. Então, aqui a gente tem uma relação muito forte com os rios e igarapés e eu cresci cercada de rios, então a gente aprende desde criança a nadar. Eu acho que é até uma vergonha uma pessoa daqui dizer que não sabe nadar, apesar de que eu conheço muitas que não sabem, mas enfim, eu sempre me senti muito feliz estando na água e essa coisa dos estímulos sensoriais externos pra mim na água meio que neutralizam. Então por mais que eu tenha tido um dia muito, muito estressante, quando eu entro em contato com a água é como se a água absorvesse todo esse meu estresse. A minha única dificuldade atual é na socialização desses ambientes, porque muitas vezes as pessoas ou querem puxar conversas que eu não entendo ou às vezes professores dão instruções que eu não consigo seguir porque eu não entendo muito bem, porque as instruções da natação não são tão específicas quanto as instruções das artes marciais.

Tiago: Nossa, demais, eu tinha muita dificuldade na natação, porque o professor explicava algo e eu demorava pra poder pegar. É muito curioso que em todo o contexto em que tem um conhecimento especializado, se a pessoa não souber usar as palavras corretamente, você não pega e nós autistas ainda, que somos muito literais, isso realmente é bastante complicado.

Thaís: Eu tinha bastante dificuldade de também entender exatamente o que a professora queria que eu fizesse, as professoras, né, eu tive mais de uma. Só acrescentando que eu não tinha comentado especificamente isso, que a minha dificuldade também com a natação, de ter muitos estímulos, é porque era um ambiente fechado, então tinha muito eco e etc, mas nadar no rio, nadar no mar são coisas de que eu gosto muito até hoje e eu também tenho essa sensação de que o meu stress diminui muito quando eu estou na água. Falando em socialização, eu me lembro também de um episódio da minha vida que não sei se eu já falei aqui, que foi quando eu tava ainda no ensino fundamental e o professor tinha pedido pra gente correr em volta da quadra e e eu comecei a andar rápido, porque eu não queria correr, eu não gostava de correr. Eu tinha vários problemas com isso, tanto a parte de eu não ser muito boa em controlar minha respiração enquanto eu tô ocorrendo (até hoje eu tenho essa dificuldade), não gostava de ficar suando também. Eu geralmente tava com blusas grandes e largas, porque eu tinha vergonha dos meus seios ficarem balançando. Eles cresceram muito cedo, então eu tinha bastante vergonha naquela época. E aí eu ficava com mais calor ainda, porque eu tava com aqueles moletons enormes e aí eu comecei só a andar rápido e o professor começou a gritar falando pra eu correr e eu falei que eu tava correndo e ele falou: “Ah, correr é tirar os pés do chão”. Aí eu comecei a meio que pular pra frente sem correr mas tirando os pés do chão. E conforme ele dava as instruções eu fazia exatamente o que ele falava só que sem correr (risos). Até que ele ficou muito irritado comigo e aí ele falou pra turma que enquanto eu não corresse de verdade, a turma toda ia continuar correndo. Então, eu já tinha dificuldade de socialização ali, especialmente nas aulas de educação física, eu já era aquela pessoa que nunca era chamada e o professor ainda vinha me fazer umas coisas dessas? Então, quando ele falou isso, que a turma toda ia ficar correndo e aí o pessoal começou a gritar: “Corre logo Thaís, corre logo!”, eu sentei e falei: “Tá bom. Então, a turma toda vai ficar correndo”. Fiquei esperando ali. Então, eu tinha muito também esse lado de que eu só ia me esforçar naquela disciplina ali até um ponto muito mínimo pra fazer realmente o mínimo necessário. Porque tudo nas aulas de educação física, que eu me lembre, com certeza não era tudo, mas todas as minhas memórias são ruins e tudo aquilo me parecia muito desagradável. A forma como isso era imposto é algo que até hoje me traz algumas dificuldades para lembrar com tranquilidade.

Tiago: É engraçado o quanto que o perfil do professor de educação física parece ser variável em duas, que é ou o professor que é meio escroto, que fica pegando muito no pé, ou é aquele professor que todo mundo ama e que é exatamente a exceção da exceção. Eu tive esses dois perfis de professores. E sobre professores legais, eu lembro de uma situação que foi um professor que deu aula pra mim durante três anos consecutivos, eu acho, chamado Adão. Que que ele fazia? A nossa turma era diferente da maioria das turmas da escola porque conseguíamos montar dois times de futebol, de tanta gente que a nossa turma era. Então, nos jogos interclasse, a turma tinha dois times. Tinha um time dos melhores jogadores e tinha um time que era do pessoal perna de pau, que inclusive eu fazia parte, eu era zagueiro. Mas nas aulas em comum, que que ele fazia? Ele pegava os melhores alunos e colocavam num time e o outro time era os piores alunos com ele jogando junto. E a gente jogava junto com o professor. E aí geralmente dava empate, porque o jogo ficava bastante nivelado, era bastante divertido. Só que a atividade física estimula muito a competição. E aí nesse sentido, a socialização fica bastante complicada e bastante conflituosa. Imagino, nesse caso, Thaís, que você deve ter passado uma imagem de uma pessoa do contra e o pessoal da sua turma deve ter te odiado profundamente. É o tipo de coisa que eu faria também, mas eu acho que o pessoal partiria pra agressão física no meu caso.

Thaís: As pessoas não costumavam partir pra agressão física no meu caso, porque acho que a gente já comentou em algum episódio de bullying que eu sempre fui uma pessoa muito tranquila, até alguém mexer comigo. Aí eu me torno uma pessoa extremamente agressiva, porque não admito que alguém seja agressivo comigo. Então, as crianças da minha escola sabiam bem isso e as que não sabiam aprenderam bem rápido também.

Carol: Eu tive sérios problemas com bullying e tanto na natação quanto no taekwondo, em que me desmotivaram bastante de continuar participando, tanto que eu já praticava taekwondo mais em casa porque eu tinha receio de entrar em um ambiente em que existia esse tipo de conflitos. 

Thaís: Interessante que eu também tenho esse costume de tentar trazer pra casa ou tentar criar uma forma alternativa de prática isolada pra poder fazer sozinho, porque essa parte de socialização sempre foi bem difícil, sempre me cansou muito, além de levar essas situações de conflito, muitas vezes. Então, eu acho que é o tipo de coisa que é bem interessante, a gente buscar mesmo formas de adaptar aquilo que interessa pra gente pra nossa realidade, dentro do possível.

Tiago: Eu tinha uma relação bastante tempestuosa com os meus colegas e eu acho que as aulas de educação física eram o momento em que isso ficava mais exacerbado. A Carol foi falando isso e eu fui lembrando de muitos momentos da minha vida em que começaram as ofensas, começaram as brigas de uma forma mais frequente. E eu era muito inflexível neste sentido, muito inflexível mesmo, a ponto de às vezes ficar chateado com as pessoas ou de simplesmente ficar com raiva ou tentar atrapalhar o jogo das pessoas, eu tinha esse comportamento bastante desagradável. E eu acho que a gente pode falar aqui que talvez um dos momentos mais importantes dentro do processo escolar, até pra se avaliar uma hipótese de autismo em crianças, com certeza é a aula de educação física, porque ali tá tudo posto sobre a mesa, falando de uma forma bastante figurada. É ali que grande parte das tensões podem ocorrer, além da coordenação motora, que já é uma questão bastante complicada em pessoas dentro do espectro.

Thaís: Eu sempre tenho medo de fazer generalizações, mas até hoje eu não conheci nenhum autista que tenha falado bem do seu tempo de aulas de educação física e de coisas do gênero. Então, inclusive ouvintes, por favor, que um de vocês amava as aulas de educação física ou ama, dependendo da sua idade, por favor, no aí, nos conte, mande por email, porque eu tô bem interessada em conhecer alguém que fuja dessa regra dos 100% do que eu já conhecia até agora (risos). Um comentário que a Carol tinha feito aqui, era justamente das questões de gênero e aí eu queria puxar isso, aproveitando que justamente na minha faculdade a gente tinha uma disparidade muito grande entre homens e mulheres, porque era uma faculdade de engenharia. Então, tinha muito mais homens do que mulheres. Hoje em dia, a gente já tá com isso bem mais balanceado, mas nem sempre a gente encontra esse equilíbrio e realmente tem alguns esportes em que é bem raro encontrar um time feminino ou mesmo se uma mulher pratica determinada esporte, algumas pessoas ainda falam de um jeito com tanto preconceituoso.

Carol: Bom, eu acho que a partir do momento em que a gente passou pra fase da adolescência, essas questões de gênero na educação física ficaram muito mais evidentes e até existia uma grande preferência dos professores de ensinar os alunos homens a praticar esportes como futebol e basquete e eu acho que as meninas ficavam mais com vôlei, que pra mim foi a pior atividade porque a bola vem de cima e aí eu não vejo. Então, é como que as mulheres devessem só jogar vôlei e isso era muito desconcertante, tanto que a partir de um certo momento da minha adolescência, eu simplesmente parei de participar da educação física, porque as atividades eram muito voltadas pros homens e pras mulheres só restava jogar vôlei, que foi a pior experiência que eu tive em atividades esportivas. Então isso eu tenho certeza que me prejudicou, porque por boa parte da minha adolescência eu fui muito sedentária e eu também perdia essas oportunidades de socialização. Eu acredito que isso não seja exclusivo do autismo, porque muitas outras meninas da minha turma não participavam justamente porque elas não tinham essa oportunidade, existia, sei lá, uma vez no mês em que os professores liberavam a quadra de futebol pra gente usar, porque em todos os outros momentos a quadra era um espaço exclusivo dos alunos homens. Então acontecia de boa parte do período da atividade física as meninas ficarem na arquibancada ou no banco olhando os meninos jogarem futebol. E mesmo quando os professores destinavam esse espaço pra gente uma vez no mês (isso sendo muito otimista), os meninos faziam confusão, reclamavam, diziam que a quadra era deles. Então, a gente teve muito tipo de conflito e quando a gente fala sobre autismo e gênero, é uma coisa que tá muito relacionada.

Tiago: A sua análise é muito boa, Carol, porque isso me fez pensar no meu período do ensino fundamental. Eu vi muito estereótipo de gênero e também vi ele sempre entrelaçado com sexualidade. Então, por exemplo, já existia no vocabulário dos meus colegas de 10, 11 anos, a homofobia, principalmente direcionada a homens. Eu, por exemplo, era uma criança bastante delicada, então eu fui alvo fácil desse tipo de coisa no ensino fundamental. Mas eu lembro que eu tinha uma colega de turma que ela era um pouco mais forte e gostava de futebol e o pessoal ficava olhando ela de um jeito estranho. Com certeza eles só não a rotulavam de lésbica ou alguma coisa assim porque essa palavra não existia no vocabulário da turma de uma forma geral, mas eu lembro que o pessoal tratava ela como se ela fosse menos mulher por gostar de futebol. Ao mesmo tempo os homens que não se interessavam por jogar esses esportes como futebol, ou eles eram completamente excluídos ou eles eram rotulados. Então, uma das coisas que realmente me fez não gostar de educação física em grande parte da vida, é porque as aulas de educação física eram um ambiente muito propício para esses estereótipos e pra ofensas homofóbicas.

Thaís: Eu felizmente tive um ambiente acho que um pouco melhor pelo menos no aspecto de tanto as meninas quanto os meninos na minha escola tinham a mesma possibilidade de praticar os mesmos esportes na aula de educação física em si. Teve uma época em que tinha o bimestre do basquete, então eram dois meses de todo mundo jogando basquete, tinha aproximadamente o mesmo tempo pros dois times, às vezes com uma pequena variação, mas nada tão crítico, tão drástico quanto o que a Carol contou. Então, pelo menos isso na minha escola não acontecia. Agora, a gente também tinha outras opções de atividades físicas, quando eu era pequena tinha o balé e o Kung Fu. Era muito mais comum ter meninos no Kung Fu e meninas no balé, eu não lembro de nenhum menino no balé, mas sempre tinha aquela piadinha de que: “Ah, você devia fazer balé”, tipo falando pro menino como uma ofensa. Como se um homem não pudesse fazer balé e temos muitos bailarinos por aí, né? Na ginástica rítmica também eram só meninas e os meninos iam para outros esportes. Então, apesar de não ser algo que era exclusivo em termos de regra, não tinha uma proibição de que as pessoas fizessem, mas existia sim um viés cultural aí com bastante preconceito por trás das escolhas que o pessoal fazia. Então, agora que a gente já comentou sobre várias das nossas experiências com práticas esportivas e já falamos inclusive que qualquer pessoa, de qualquer gênero, não importa suas outras opções na vida, você pode gostar do esporte que você quiser e dane-se com os outros pensam sobre isso, tomara que você tenha realmente a possibilidade de praticar o que você quer. Então, eu queria, Tiago e Carol, que vocês dissessem quais esportes vocês recomendam, claro, que dependendo da situação e da possibilidade de cada um.

Carol: Eu acho que eu não tenho um esporte específico, mas é mais uma dica que eu tenho, é que se houver uma dificuldade da pessoa com autismo em engajar em atividades físicas, eu acho que uma boa estratégia seria fazer alguma relação dessa atividade nova com algum hiperfoco. Por exemplo, no meu caso, eu gostei muito de artes marciais porque eu sou fã de Avatar, que é um desenho. Uma coisa que me fazia sempre ficar motivada nas atividades é inventar os movimentos do Avatar com o taekwondo e isso foi só um exemplo pra dizer que atividade física não necessariamente envolve um esporte em si, inclusive existe um certo debate no meio da educação física sobre a esportivização da atividade física. Então, ela pode ser simplesmente uma atividade lúdica que envolva talvez o hiperfoco dessa pessoa. Isso pode ser uma boa estratégia para que a pessoa desenvolva o gosto por isso e posteriormente se beneficie do que tem de positivo nessas atividades. Outra dica importante sobre como inserir uma atividade física é estipular um horário específico, caso uma pessoa tenha a sua rigidez da rotina. Então, pra mim, de certa forma, é difícil introduzir uma atividade nova, porque eu tenho uma certa inflexibilidade muito grande da minha rotina. Então, eu acho que uma dica para contornar esse problema seria introduzir atividades físicas aos poucos, assim, se de acordo com o ritmo da pessoa, porque eu sei que às vezes quando a gente começa uma atividade acaba tendo essa certa pressão pela regularidade, mas quando a gente fala do autismo, introduzir um elemento novo pode ser muito estressante e acabar anulando os possíveis benefícios dessa atividade. E inserir entre atividades específicas, por exemplo, eu vou praticar o exercício depois do estudo e antes do jantar, por exemplo.

Tiago: A dica da Carol é valiosíssima e eu me valho dela pra dar o meu exemplo de que eu faço caminhada ouvindo podcast porque eu quero conhecer outros podcasts e isso me engaja a fazer caminhada. Agora centrando somente na questão do esporte, o que eu mais recomendo é natação, porque até conversando com psicomotricista, é geralmente uma atividade indicada para autistas porque ajuda bastante a reduzir a ansiedade, pode ser feita de forma individual e que, no meu caso, não vai me fazer ter uma crise alérgica com meu próprio suor. Então, eu recomendo bastante natação pra quem pode fazer.

Thaís: Bom, começando que realmente Avatar é uma série muito boa, eu acabei conhecendo a partir do aikido, então foi meio que o caminho oposto do que aconteceu com a Carol. Mas voltando a falar sobre esportes, depende claro de qual é o intuito de quem tá procurando esporte, mas de forma geral eu recomendaria buscar opções que possam ser feitas em casa e de forma individual. Eu tenho impressão de que justamente por esportes motivarem um pouco mais as pessoas a competitividade, se torna uma prática social mais cansativa. Se você está buscando um pouco mais socialização, eu recomendaria que tentasse formas menos competitivas para que elas sejam mais fáceis. Outra coisa que eu cheguei a fazer bastante tempo e eu deveria voltar, inclusive, foi o ioga, acho que é uma prática que também auxilia no controle da ansiedade, além de ajudar bastante a questão da postura, então, evitando outras dores no corpo. Mas quase qualquer prática que você tem interesse mesmo que seja não necessariamente o hiperfoco, mas que seja o seu interesse, você provavelmente consegue trazer para um nível um pouco mais individual dentro das suas possibilidades. Ou então fazer o que o Tiago disse mesmo, fazer uma caminhada enquanto você ouve um podcast sobre aquele assunto que te interessa ou então colocar na frente da esteira o seu celular, um iPhone e o que quer que você possua com um livro pra ler a respeito ou assistir um vídeo enquanto você anda, corre. Então, às vezes você consegue fazer com que essa prática física auxilia o seu corpo e enquanto você está focado em algum outro tema que seja mais de seu interesse. E de preferência também se você tem muitas dificuldades de locomoção, busque esportes que sejam mais lentos, porque a chance de você se machucar muito passa a ser reduzida. E se você quiser comentar um pouco sobre esse tema, sobre aquilo falamos de escolas e socialização, como foi a sua experiência com esportes, manda um e-mail pra gente, a gente vai muito provavelmente responder aí nos próximos episódios, se você não quiser que a gente leia o seu email também, avisa pra gente que a gente não vale. Espero que vocês consigam aí encontrar uma vida tão saudável quanto possível.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk