Nossos podcasters estão de volta, depois de uma semana inteira de reportagem. E, desta vez, o papo foi quente e polêmico: como é a experiência direta de autistas que cresceram em lares evangélicos e que decidiram dar as costas para os preceitos bíblicos? Falamos sobre rigidez de pensamento, rotina, interações sociais com membros de igrejas e, claro, as diferentes correntes teológicas evangélicas.
Participam: Marcos Carnielo Neto e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.
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Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:
- G12
- A falsa doutrina da maldição hereditária
- Teologia da Missão Integral
- Davi Sacer e Trazendo a Arca – O Encontro
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo e talvez tenha uma relação conflituosa com a religião. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015 e hoje eu vou abrir um pouco do meu coração aqui juntamente com o Marcos.
Marcos: Eu sou o Marcos e eu vou começar falando da minha experiência subjetiva com a religião (no nosso caso, as igrejas evangélicas), e como a religião moldou e me afetou durante o meu crescimento durante a vida.
Tiago: Durante esta semana nós publicamos uma reportagem sobre religião dividida em quatro episódios e hoje, sexta-feira, nós publicamos este episódio que, na verdade, é uma espécie de complemento, mas não está dentro da reportagem. Nós vamos falar a nossa experiência como autistas fora do segmento evangélico. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com a assinatura da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Marcos: Eu e o Tiago temos experiências bem parecidas, ele também já tem um histórico parecido de crescer em em igrejas evangélicas, eu acho que a gente tem essa experiência em comum que a gente se identifica com esse pessoal que é o desviado da igreja.
Tiago: É, você tem razão. Minha família materna hoje é um pouco mesclada a questão da religião, tem uns que são evangélicos e tem alguns que são católicos não praticantes e tem alguns que são meio sem religião. Já a família do meu pai é quase toda adventista, então você já imagina os problemas que eu tinha em alguns sábados. A minha família tanto materna quanto paterna vem do Vale do São Francisco, eu nasci em São Paulo e com mais ou menos 1 ano nós nos mudamos pra Minas na região metropolitana de BH, na cidade de Contagem. Pouco tempo ali, minha mãe acabou se convertendo ao cristianismo. Ela frequentava a igreja Assembleia de Deus Ministério Missão e uma coisa muito característica da minha mãe, quando ela fez parte da igreja Assembleia, foi a mudança de costumes. Ela começou a usar saia, deixou o cabelo crescer, já não usava muitos adereços. Foi toda uma questão de costume e comportamento que começou a mudar e isso começou a gerar um certo incômodo nela. Quando nós nos mudamos pra Goiás, ocorreu uma situação um dia que ela estava andando numa rua, levou um escorregão numa praça muito movimentada e ela caiu de pernas abertas, foi um constrangimento muito grande. Depois desse dia, ela decidiu que nunca mais ia usar saia e foi aí que eu considero o momento que ela realmente se desvinculou desse movimento pentecostal da Assembleia de Deus. Já eu, desde criança, tinha uma participação muito grande nesse movimento pentecostal na igreja que a minha mãe frequentava. Eu era muito ligado a questão cultural. Como muitos que acompanham o Introvertendo sabem, eu tenho hiperfoco em música, então a gente ouvia rádio o dia inteiro, eu conhecia todas as músicas, tinha uma fixação também por cantar músicas dentro da igreja e isso se fez presente na minha vida por um longo tempo. E aqui em Goiânia, nós passamos por um tempo de limbo, até que eu encontrei uma igreja Presbiteriana perto de casa que eu comecei a frequentar e depois minha mãe começou a ir junto. Era uma igreja de tradição reformada, ou seja, era um pouco diferente daquele clima pentecostal. Só pras pessoas entenderem, existem vários segmentos dentro disso que a gente chama de protestantismo. Você tem os reformados, formados principalmente pelas igrejas históricas ligadas ao movimento da reforma protestante, como os luteranos, presbiterianos, você tem o movimento pentecostal que a galera que acredita em batismo no Espírito Santo, é um pessoal que tem muito essa coisa do fogo, do poder, que é muito representada pela igreja Assembleia de Deus, por exemplo, e existem os neopentecostais, que é uma nova onda do pentecostalismo, principalmente marcada por aquilo que a gente chama de Teologia da Prosperidade e também a presença forte nos meios de comunicação, como essas igrejas que tem pastores muito famosos como, Edir Macedo, R. R. Soares, Valdemiro Santiago e afins. A gente ficou na igreja Presbiteriana durante um tempo até que minha mãe se mudou pra Igreja Internacional da Graça de Deus, que é do R. R. Soares, que ela tá até hoje, inclusive. E ela fez essa mudança principalmente por causa da questão dos costumes. As igrejas neopentecostais têm essa característica de não oprimir muito as pessoas com relação a vestimenta. Então, o que realmente atraiu ela não foi o discurso de prosperidade propriamente dito, mas sim essa liberdade de ela ser quem ela é. Já eu, além dessas igrejas, eu fiz parte de várias outras, mas eu vou falar isso depois.
Marcos: Sua mãe já era feminista ativa dentro da igreja, tá certinha. Essa questão de costumes realmente aí faz parte da cultura nas Assembleias de Deus, elas eram extremamente conservadoras. Hoje em dia ela já tá começando a ser mais solta com essas questões de hábitos e costumes, mas ainda continua sendo um ambiente muito conservador em outros aspectos e muitas vezes hostis a grupos externos, o que eu acho que é a pior da igreja hoje em dia. Eu nasci em Anápolis e lá o pessoal é muito católico, é uma cidade com uma tradição católica muito forte, porque é uma cidade antiga devido a ascendência forte italiana da minha família, de várias famílias também. É uma região católica, a minha família era parte disso, eles iam em missa, as tias do meu pai até hoje têm imagens de santos na casa, elas são bastante devotas, elas vão em missas, elas rezam o terço, oram o pai nosso. Então, eu comecei nesse ambiente católico. Quando eu era criança, a minha mãe tinha uma santinha, às vezes eu fazia uma oração, porque eu era uma criancinha comportada desde criança. Devido ao meu autismo, eu me apegava muito a minha mãe, eu vi ela como autoridade, então eu via ela rezando pra imagem, eu fazia a mesma coisa. Minha mãe era o meu modelo até a adolescência, ela era um modelo muito importante pra mim. Então, eu seguia os costumes dela, eu rezava pra santa que a gente tinha, às vezes eu ia em missa. Missa era alguma coisa muito chata, mas eu ia porque era algo que você tinha que fazer. Inclusive quando você é uma criança missa é uma forma de tortura (risos), porque a maioria das crianças não gostam de ir nisso, porque é um ambiente chato mesmo. Desculpa católicos, mas é verdade, missas são extremamente chatas e pra crianças então é um ambiente extremamente tedioso. Ir para missas eu acho que para católicos é, na verdade, uma forma de sacrifício. Enfim, eu ia em missas até os 8 anos de idade mais ou menos, mas a partir dos 9 anos de idade, minha mãe começou a ter depressão e aí ela descobriu a igreja evangélica. Ela foi pra Igreja de Cristo, que era uma igreja mais contemporânea, ela tem uma visão mais contemporânea de cristianismo, elas são mais alegres, cantam, tem um senso de comunidade. Elas parecem as igrejas americanas. E minha mãe se encontrou nessa igreja. Ela tava numa fase que ela tava bem deprimida e ela se encontrou, encontrou a comunidade dela, melhorou e se converteu, já batizou, depois ela virou uma evangélica extremamente fiel, praticante e ela acabou me carregando junto. De repente eu tinha virado evangélico porque foi por influência da minha mãe e eu acabei frequentando a igreja. Eu não gostava muito dessa igreja. As pessoas eram muito invasivas pra mim naquela época. Eu sou do tipo que eu gosto da minha bolha pessoal e ela era do tipo que você tinha que invadir a bolha pessoal do próximo, porque tinha que se criar esse senso de comunidade. Cê tem que abraçar o próximo, tem que falar com ele, tem que cantar muito músicas mais alegres pra eles, e eu achava as músicas chatas pra caralho.
Tiago: “Vira pro lado tão irmão e diga: ‘você é mais do que vencedor!’”
Marcos: Mas… (risos). Eu achava um ambiente meio invasivo por causa disso. Eu tinha dificuldade de interação com o pessoal nessa época, eles eram mais neurotípicos nessa igreja, eu era mais isolado e eles me cobravam por ser isolado, eles falavam que eu era uma criança mais quieta, que eu era meio sonso, que eu não interagia e realmente eu não tinha vontade de fazer essas coisas, eu não queria me misturar com todo mundo na igreja. Até que mais ou menos lá por volta dos 14 anos, quando eu comecei a sofrer muito bullying na escola, eu entrei em depressão também, aí minha mãe me levou pra pastora perto de casa, que ela era da Assembleia de Deus. Eu entrei na Assembléia de Deus e aí eu me converti de verdade, me batizei e foi quando eu comecei a encontrar amigos na igreja de verdade. Eu gostava bastante do ambiente da igreja na época porque pela primeira vez na vida eu consegui fazer amigos. O pessoal na igreja era de uma cidade pequena que eu morava, São Miguel do Araguaia, perto da divisa do Tocantins na entrada da Ilha do Bananal, então tinha um senso de comunidade muito forte dentro dessa igreja que eu gostava. Os adolescentes eram respeitosos, eles tinham esse senso de amizade mesmo, a gente era muito próximo um do outro, a gente se via, fazia tudo junto e pela primeira primeira na vida eu tive vários amigos por causa da igreja, eles se importavam comigo. Eu como criança autista, nunca tive amigos próximos de verdade, eu sempre tive um senso de isolamento, nunca ninguém se importava comigo e ter essa sensação de não ter amigos, de alguém que se importa com você e pela primeira vez eu tinha uma comunidade ao redor de vinte pessoas que gostavam de verdade de mim, eu gostava delas, e a gente tinha essa comunidade, era muito legal. Esse é o lado vantajoso da igreja, sabe? Esse foi o lado bom que eu tirei da igreja.
Tiago: Uma coisa que você falou que é muito interessante e eu queria pontuar é o fato de autistas terem pensamentos rígidos e o ambiente religioso é um lugar que certamente propicia isso em certa medida. Eu, por exemplo, com 10 aos 12 anos era tipo um evangélico anticatolicismo total, eu muito chato, muito intolerante, eu levava as coisas muito a sério e uma coisa que eu preciso pontuar neste episódio é que a minha prática dentro da igreja sempre foi levada com muita seriedade, pelo menos pra mim mesmo, tanto é que até hoje eu tenho muito conhecimento sobre as questões religiosas, embora não faça parte e ainda bem também que meu pensamento foi flexibilizando com o tempo.
Marcos: Então, eu também era. O autista tem essa tendência de criar uma visão super forte e específica do mundo. E a religião ajuda você a criar essa visão específica. Eu também me tornei um um evangélico ultraconservador, com opiniões fortes e anticatólico. Nessa fase dos 13 e 14 anos, eu também tinha senso moral muito forte, eu acho que isso é parte do autismo na religião, é um ambiente que a gente acaba ficando bem chato mesmo. Eu tive isso também.
Tiago: Com certeza, outro aspecto importante que você falou é a socialização. Uma coisa muito comum em autistas que tem diagnóstico tardio como você e eu, é o fato da escola ser o ambiente em que as nossas dificuldades de interação são mais explicitadas. E eu acho que a igreja é um outro lugar muito frequente que não necessariamente as pessoas prestam atenção. Durante grande parte da minha infância e adolescência, eu fiz parte de comunidades pequenas. Então, eu não tive tantos problemas com isso. Na verdade, a igreja era um ambiente que eu poderia desabafar numa relação vertical com o divino, sobre o bullying e sobre as agressões que eu sofria. 2007 e 2008 foram anos muito difíceis na minha vida, eu lembro bem, eu ia pra igreja e era como céu, sabe? Era o lugar que eu realmente me sentia aceito, porque era o lugar que eu realmente sentia um certo nível que eu poderia chamar de paz, de tranquilidade e eu voltaria pra vida social, pra vida “mundana”, apanhar de todo mundo, sofrer agressão verbal e que no final de semana eu voltaria pra descarregar e tudo mais. Você falou que a sua vida começou a deslanchar em termos de socialização nesse espaço, mas quando que as coisas começaram a dar errado?
Marcos: Então, nesse aspecto eu concordo com você, sobre no começo a igreja ser um um lugar pra um refúgio que a gente sofre bastante bullying na escola, então a igreja se tornou um lugar mesmo de refúgio, mas eu acho que eu dei sorte porque eu me tornei muito sociável na igreja, sabe? Nessa época da igreja, eu comecei a me soltar bastante, eu comecei a ficar uma pessoa agradável, eu era bastante social, o pessoal gostava de mim, do meu jeito excêntrico de ser também, porque eu tinha um jeito excêntrico, mas eu me tornei extremamente sociável. Acho que é por causa da fase também da adolescência, a gente se torna muito sociável nessa época e eu dei sorte de na minha igreja, eu ter criado essa comunidade na Assembleia de Deus e dos meus amigos terem sido maravilhosos comigo. Na época, eu achava que eu tinha encontrado o pote de ouro. Então, eu não cheguei a sofrer bullying nessa igreja, mas esse é o lado positivo da igreja. Isso foi o que eu tirei de bom pra igreja da época, mas hoje em dia eu não tenho mais paciência pra igreja, tem vários pontos negativos que eu gostaria de discutir depois.
Tiago: Tá, mas você não respondeu minha pergunta. Quando que as coisas começaram a dar errado?
Marcos: Aí que tá, porque o meu problema com a igreja não foi com as pessoas em si, eu não sofri bullying e tal, mas é com a ideologia da igreja. A partir do momento que eu voltei a estudar, porque eu parei de estudar por um bom tempo, eu parei de ler, eu me tornei muito religioso. Quando eu estudava era algo religioso, acabei hiperfocando demais nos ensinamentos religiosos e eu criei um sistema moral muito fixo, uma visão de um mundo bem fechada na igreja, sabe? Eu virei um evangélico conservador. Foi aí que começaram a surgir os conflitos. Porque eu não tinha desenvolvido o meu pensamento crítico ainda nessa época. Então, eu absorvia as coisas da igreja e virou meu hiperfoco e eu virei uma pessoa extremamente religiosa. Eu era basicamente chato igual o Newton na época dele, quando ele era religioso, ou os primeiros filósofos como Descartes. Eu acho que quando a pessoa é inteligente e ela acha esse sistema moral tão fixo, ela se fixa nisso, ela vai começar a criar um sistema moral bem complexo baseado na igreja e vai se apegar bastante nisso. E foi quando os problemas começaram a surgir. E aí, eu voltei a estudar e aí eu comecei a ter o início do desenvolvimento do pensamento crítico.
Tiago: Você tá falando de ensino superior?
Marcos: Não, no final do ensino médio. Foi quando eu voltei a estudar, porque aí época que eu acordei pra vida que eu ia estudar pro vestibular porque eu queria entrar na universidade. Inconsistências começaram a surgir e hoje em dia eu percebi o tanto que eu fui manipulado e o tanto que a religião, na verdade, é uma forma de doutrinação e lavagem cerebral, é um culto que muda o pensamento das pessoas de uma forma radical, de uma forma que não corresponde à realidade e fecha muito o pensamento crítico das pessoas, cria um problema de dissonância cognitiva, porque as evidências do mundo real não correspondem ao que é dito e pregado na religião. A gente tem que criar a dissonância pra explicar o conflito entre a vida real e o que é dito. E também hoje em dia a igreja se tornou uma das maiores fontes de pregação de ódio no Brasil. Isso é um problema, porque ela se tornou extremamente homofóbica, excludente, perseguidora de tudo que é diferente dela. Ela se autodenomina perseguida, mas ironicamente a igreja é um dos maiores perseguidores de pensamentos diferentes. É uma das instituições que têm mais problemas em aceitar ideias diferentes da dela, sabe? E ela persegue mesmo. Isso criou conflitos comigo mesmo também, porque depois eu me redescobrir como parte de uma minoria que era perseguida pela igreja. Então, isso foi o meu maior conflito com religião.
Tiago: No meu caso, foi um pouco diferente. Eu frequentava a mesma igreja que a minha mãe durante muitos anos, desenvolvi até funções lá dentro, cantava e etc. Mas aí, entre 2011 e 2012, eu tive uma crise muito grande com as minhas notas no ensino médio, elas começaram a despencar e isso me gerava muita preocupação. Isso também afetou meu emocional porque eu me via cada vez mais sozinho, já tava ali no ápice da adolescência, não tinha amigos, não tinha nada. E aí eu fiquei deprimido e fiquei sem vontade de ir pra igreja. Não tinha feito nada de errado, talvez alguém possa ter pensado, sei lá, mas isso pra mim também não importava na altura do campeonato. E aí, quando essa prática religiosa saiu da minha rotina, o retorno era algo dolorido. Eu voltei a frequentar, mas não era a mesma coisa de antes, era como se aquilo não fizesse mais sentido pra mim, porque no tempo que eu estava fora, eu tinha me acostumado a uma dinâmica completamente diferente.
Marcos: E você tem um apego a rotina que é maior que o meu também. No seu caso, o apego à rotina é um dos fatores mais importantes da sua personalidade.
Tiago: Com certeza. Então, nesse processo de retorno, eu me sentia muito desconfortável. E aí, nesse período que eu estava frequentando, mas me sentindo desconfortável, eu reencontrei pela internet um colega do ensino fundamental que inclusive morava bem perto de casa. E ele me convidou pra gente se reencontrar na igreja que ele frequentava. E quando eu cheguei lá, eu me via exatamente no contexto que você passou Marcos, na outra igreja. O ambiente muito sociável, com muita música em que todo mundo aparentemente quer ser seu amigo, mas na verdade é uma interação fake porque o pessoal quer te jogar dentro de um sistema. E aí, talvez o pessoal esteja estranhando um pouco, existem algumas igrejas evangélicas ligadas ao movimento neopentecostal também, que são as chamadas igrejas em célula. Então, só pra você que não sabe o que é igreja em células, eu vou explicar de uma forma bem simples, tá? A igreja em células é uma igreja comum, que tem pastor, que tem a liderança e tem o corpo de membros, só que esse corpo de membros é dividido em pequenos grupos e cada grupo tem um nome. Esses grupos são liderados por uma pessoa, não necessariamente uma pastora ou um pastor. Mas essa pessoa tem um certo grau de instrução sobre a Bíblia e essa pessoa junta todo mundo do seu grupo em um ambiente, numa casa, em que as pessoas leem a Bíblia e fazem orações. Então, às vezes esse grupo se reúne nesse ambiente doméstico no sábado e a igreja tem um culto geral no domingo. Esse sistema estimula a competição e, por isso, quanto mais pessoas você trazer pro seu grupo, mais poderoso e influente você se torna dentro da igreja. E esse é o principal problema desse espaço, porque você interage com as pessoas não por um interesse genuíno em construir uma relação com elas, mas pelo o que elas podem te oferecer de poder se elas estiverem com você.
Marcos: Isso é verdade. Essa de células é igual a igreja de Cristo, a primeira que eu participei. É de forçação, de interação, de ter que forçar essa coisa que é bem fake mesmo, que na realidade é tudo de fachada.
Tiago: Sim, e eu tive uma situação bem particular nesse período que foi diretamente relacionada a líder desse grupo. Fiquei poucos meses nessa igreja. Ela era psicóloga, trabalhava com RH e ela ficava fazendo comentários sobre o meu comportamento. Então, assim, eu era uma pessoa pouco sociável, já era meio questionador, o pessoal olhava com uma certa desconfiança e ela sempre ficava fazendo apontamentos que me deixavam desconfortável. Teve um dia específico que ela chegou e eu fui cumprimentá-la como todo mundo fazia, dando um abraço e aí ela falou na frente de todo mundo: “É, quem abraça desse jeito é porque quer soltar logo”. E aquilo me deixou muito chateado. Pra quem passou a vida inteira sendo rotulado de estranho, sofrendo bullying e etc, eu voltei pra casa com a cabeça muito confusa tentando entender o que havia de errado comigo. E foi nesse dia que eu iniciei por uma busca por respostas que tempos depois me levou ao diagnóstico de Síndrome de Asperger, então pelo menos alguma contribuição isso teve. Sem falar que ela sempre arrumava alguma das situações para poder trazer alguma lição de moral pra mim falando: “Tá vendo que você precisa fazer amigos?”. Até que chegou um dia que ocorreu uma pregação sobre um tema que particularmente, teologicamente, dentro da lógica cristã, pra mim era absurdo que algumas igrejas em células acreditam, que é o conceito de maldição hereditária. Seria o fato de que existem famílias que carregam maldições em suas várias gerações e que você precisa passar por um ritual para quebrar isso. Dentro da lógica cristã, pra mim não faz o menor sentido, já que a morte de Jesus Cristo representaria isso. Então, você não precisaria passar por uma sessão de maldição hereditária. Mas, enfim, houve essa pregação e pra mim foi a gota d’água. E aí eu decidi que eu não ia frequentar mais lá. E aí, eu voltei para a busca de uma nova igreja. Conheci uma igreja muito legal que já tinha uma outra vertente teológica que as pessoas chamam de Teologia da Missão Integral. Ou seja, eu caminhei mesmo em todas as possibilidades do segmento evangélico. Era uma igreja que eu era muito bem recebido, muito respeitado, tinha também lá os pequenos grupos, mas não era células e que não promoviam competição dessa forma, mas de novo veio a questão da rotina. Foi o período que eu comecei a trabalhar e fiz algumas amizades, o pessoal que virou meu amigo no episódio 69. E aí eu percebi que tinha um mito que foi quebrado na minha vida naquele momento. Eu sempre tinha aquela ideia da pessoa desviada como uma pessoa triste, como uma pessoa incerta, como uma pessoa perdida, uma pessoa que só seria feliz de novo se ela retornasse e que ela viveria uma vida de pecado. E eu precisei me afastar da igreja temporariamente por causa do meu cursinho pré-vestibular. Os dias e horários não batiam. E no final de semana eu tinha aquilo que autistas muito frequentemente tem que é aquele cansaço social. Então, não tinha possibilidade de eu frequentar a igreja enquanto eu tivesse fazendo cursinho. Então, eu fiquei cerca de seis meses sem frequentar, o pessoal sabia que era por causa dos estudos e aí, quando eu tentei frequentar de novo, não fazia sentido, porque eu percebi que nesse período que eu tava “fora da igreja”, eu estava muito mais feliz do que na época que estava dentro. Eu tinha amigos, eu era respeitado, eu tinha uma vida saudável, aquela ideia de infelicidade, promiscuidade, pecado, era algo que não fazia parte da minha trajetória. E aí eu fui entender que essa imagem que criam do desviado, do desgarrado, é muito característica para que você sinta medo, para que você tenha preconceito com as pessoas que estão do lado de fora. Então, nesse último culto que eu fui, eu cheguei a conclusão de que aquilo não fazia mais sentido pra mim e não frequentei mais. Até hoje minha mãe não entende muito bem quais são as razões que me fizeram sair. Mas a verdade é que não tem muito segredo. Chegou o momento que aquilo parou de fazer sentido e eu vi que estava muito mais feliz fora do que dentro. E também não carrego nenhuma mágoa de ninguém, porque essa última igreja que eu fui realmente era um ambiente legal, mas o meu tempo já tinha passado.
Marcos: No meu caso, a fratura veio mais por conflitos internos entre eu e a religião e depois perceber o tanto que existiam inconsistências nos ensinamentos cristãos. Hoje em dia eu vejo a Bíblia como um livro que foi escrito há mais de 2 mil anos por uma comunidade pequena no meio do mediterrâneo, foi escrito num contexto de uma tribo pequena, ela tem muitas atrocidades escritas, é um livro extremamente violento também, contraditório entre si, tem contradições porque não é um livro apenas, são vários livros escritos por diferentes pessoas ao longo de diferentes épocas. Então tem vários conflitos entre si, e não existe evidência pra nada do que é ensinado na realidade e isso foi o que me afastou da igreja, no final das contas. E o fato de eu ter descoberto que a igreja prende muitas pessoas à base do medo, me prendeu bastante na doutrina cristã por base de medo, ela ameaça você, se você se afastar, então ela te prende pelo medo, eu percebi que eu tinha sido traumatizado por uns livros que eu tinha lido quando eu era mais novo sobre revelação divina do inferno e tal, e como eu ia sofrer pro resto da eternidade se eu não fizesse tal e tal, se eu não acreditasse em tal e tal e como eu fui uma pessoa que eu desenvolvi meu pensamento crítico depois que eu terminei o ensino médio e tal e passei a estudar. O fato de você questionar vai diretamente contra os ensinamentos e por causa disso você vai ser punido, vai sofrer de uma forma extremamente cruel, bizarra e isso leva ao medo e é o que leva a prender as pessoas. Eu percebi que muitas vezes o cristianismo te prende e as religiões em geral te prendem a base do medo e isso é um problema que eu percebi mais pra frente. Por causa disso sou totalmente contra religiões, eu vejo o impacto negativo que elas têm no bem estar emocional da pessoa e é exatamente o contrário do que ela prega fazer, que é melhorar o seu bem-estar, quando na verdade ela tá piorando ao te prender com medo, ao te fazer não questionar. A comunidade muitas vezes é criada de uma forma superficial, não existe na realidade e você tenta forçar coisas que na prática não funcionam.
Tiago: Uma das características mais importantes do autismo é a dificuldade de interação social e desligamento de religião envolve uma coisa que é muito complicada pra todas as pessoas no geral, que é o fato de que quando elas fazem parte de uma igreja, de uma instituição, o círculo social delas muitas vezes gira em torno disso. Eu fico imaginando que pra autistas que passam por esse processo é algo muito doloroso, pelo menos pra mim, em certa medida, foi um pouco complicado, porque eu nem tinha vida social. Então, a igreja era o meu ambiente de vida social, diferente da escola ou do trabalho. E aí, quando eu saí da igreja, eu não tinha pra onde sair. Eu tive que redescobrir a cidade, inclusive. E foi traumático pra você, Marcos?
Marcos: Não no meu caso, porque como todo mundo adolescente na época que eu era da igreja, acabou que o fato de todo mundo se afastar e seguir o próprio rumo da vida foi algo natural porque a gente já tava terminando o ensino médio, então cada um foi pra uma cidade. Uma parte ficou na cidade e continua na igreja até hoje e outra parte foi pra Goiânia, outros foram pra outras cidades ao redor e foi naturalmente afastando como parte do ciclo da vida da gente entrar na vida adulta. E eu parei de frequentar a igreja porque eu já não queria mais, quando fui pra Inhumas eu não gostava de nenhuma, não gostava do ambiente da igreja, não consegui fazer amizade, não fiz questão de continuar indo na igreja. Pra mim não tem essa ideia do trauma, mas eu completamente entendo que teria sido algo que teria mudado completamente minha rotina e teria sido algo mais traumático. Na minha experiência pessoal, isso não aconteceu.
Tiago: Sim, eu te entendo. No meu caso, foi menos difícil, justamente por um círculo social. Então os meus amigos foram suprindo essa demanda e acabei desenvolvendo uma vida para além disso. E apesar do movimento evangélico ter uma péssima imagem social hoje em dia, o meu processo de desligamento foi tão natural que eu não tenho nenhuma mágoa ou nenhum tipo de incômodo com o processo da saída. E eu vejo o meio religioso como um fenômeno cultural. Inclusive eu parei de frequentar a igreja, mas eu trabalhava muito com mídia e eu acabei acompanhando, principalmente, manifestações musicais de música religiosa por muitos anos. Eu tinha um hiperfoco em música religiosa e basicamente se você quiser conversar comigo sobre música evangélica, eu sei muita coisa desde a década de 60 até os dias de hoje, tanto em termos históricos, tanto em termos musicais, artistas, bandas. Eu devo ter uns 200 ou 300 discos evangélicos aqui em casa, que foram somados ao longo do tempo. Apesar de praticamente todos eles não terem muito valor pra mim hoje, eles parte da minha vida, estão guardados e são obras culturais que acabam falando bastante sobre a história desse movimento dentro do Brasil. Quando eu era criança era muito fã de alguns artistas e bandas e a minha banda favorita era o Trazendo a Arca. Davi Sacer e Luiz Arcanjo, pra mim, eles eram o Lennon-McCartney da música evangélica, sabe? Dois vocalistas e compositores que trabalhavam juntos e escreviam grandes canções. Inclusive a banda se dividiu durante uma época e um sonho meu de infância era ver a banda reunida de novo. E eles se reuniram durante essa pandemia, quando o seguimento religioso já perdeu o significado pra mim. Mas como fez parte desse período da infância, eu assisti escondido pra que ninguém soubesse e agora eu tô revelando aqui pra vocês. Eu tenho esse respeito por esse lado cultural do segmento evangélico, mas eu falo isso pra ilustrar o quanto que eu estou bem resolvido com isso. Eu estou muito feliz fora da igreja, ela não tem um significado direto pra mim e eu não tenho nenhum tipo de mágoa. Consigo respeitá-la como fenômeno cultural.
Marcos: Eu me tornei extremamente secular. Hoje em dia, na sociedade moderna em que a tecnologia avançou, a ciência tá a mais avançada que já teve na história da humanidade, a gente tem conhecimento suficiente para se tornar uma sociedade completamente secular, porque a gente tem evidências pras questões filosóficas da vida que suprem a necessidade de responder questionamentos internos humanos, como por exemplo, qual o sentido da vida, essas coisas, e você não necessariamente precisaria de religiões. E eu acho que religiões são extremamente limitantes também, pelo fato de que elas limitam o seu ponto de vista do mundo, que elas não permitem que você explore. Talvez a única exceção seja o budismo, que é a única religião que eu conheço que incentiva a exploração. As outras são extremamente limitantes, elas limitam a sua visão de mundo, elas limitam o que você pode entender do mundo, uma forma de atraso de progresso social, sinceramente essa é a minha visão moderna sobre religiões. Mas claro que há pessoas que acham conforto na religião, mas eu sinceramente acho que são pessoas que não conseguem se resolver bem consigo, são pessoas que não conseguem se resolver bem com a realidade. Então essa é a minha visão. Tá, você pode achar conforto no seu Deus, eu totalmente respeito isso, minha tia, por exemplo, tem câncer, eu vejo o tanto que a religião dá força pra ela, minha mãe teve uma vida difícil, eu vejo que Deus dá conforto pra ela e eu não vou contra isso jamais, eu respeito, sabe? Eu acho que o respeito é importante, mas internamente eu acredito que são pessoas que não conseguem se resolver consigo mesmo e com a realidade do mundo, que a realidade é algo difícil demais pra aceitar pra algumas pessoas.
Tiago: E eu queria dizer que eu fico muito feliz por ter gravado esse episódio e por ter feito essa reportagem também junto com o Victor. Foi algo muito bom pra mim ver tantas diferentes visões, foi tão bom gravar isso aqui com Marcos, porque ao longo dos anos que a gente se conhece, a gente sempre conversou muito sobre isso e espero que se você tiver passando por alguma tensão, isso também se resolva com você. Um abraço e até o nosso próximo episódio.