Introvertendo 13 – Hans Asperger e Nazismo

Este ano, Hans Asperger ganhou as notícias e artigos científicos no mundo inteiro pela publicação de um estudo que mostra, comprovadamente, suas relações de colaboração com o regime nazista de Hitler. Por isso, parte da comunidade aspie em todo mundo tem proposto abandonar de vez ‘Asperger’ como termo que os definem. Pensando nisso, a equipe do Introvertendo discute os prós e contras disso e o que aspies em geral poderiam fazer.

Participam desse episódio Michael Ulian e Tiago Abreu.

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Notícias e conteúdos citados no episódio

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo. Um podcast feito para neurodiversos, neurotípicos e pessoas de todos os espectros políticos.

Michael: Menos anarcocapitalistas.

Tiago: Meu nome é Tiago Abreu e eu não fiquei surpreso com a notícia relacionada a Hans Asperger.

Michael: “Nossa, que surpresa, mais um cientista do começo do século vinte que era nazista.” Que novidade. Meu nome hoje vai ser advogado do diabo, porque alguém tem que ser, pelo entretenimento.

Tiago: Para quem não souber do contexto, aqui vai. Hans Asperger foi um médico pediatra. Ele estudou crianças durante a primeira metade do século vinte e é o responsável por desenvolver o diagnóstico chamado de psicopatia autista. Que com o tempo e o trabalho de outros psiquiatras, em especial Lorna Wing na década de oitenta, validaram muitos aspectos de sua pesquisa. E como sua morte se deu nessa época. Esse diagnóstico recebeu o nome de Síndrome de Asperger em sua homenagem.

Hoje, a Síndrome de Asperger é considerada uma parte do espectro autista. Definindo uma forma mais branda de autismo. O problema é que já havia a um bom tempo suspeitas de que Asperger tivesse ligações com o regime Nazista, visto que grande parte do seu trabalho se deu durante os anos da Segunda Grande Guerra.  Agora, um estudo publicado este ano na revista Nature, demonstrou através de uma extensiva documentação, incluindo memorandos pessoais de Hans Asperger que até então não haviam sido estudados. Que não só houve cooperação por parte de Aspeger com o regime como também ele se demonstrava simpático ao mesmo. Para apresentar num contexto mais compreensivo, lerei a notícia veiculada no Correio Brasiliense para vocês:

-O pediatra austríaco Hans Asperger, que deu nome a Síndrome de Asperger. Uma condição psiquiátrica do espectro do autismo. Cooperou ativamente com o programa nazista de eutanásia, de acordo com um novo estudo-

Tiago: Aí vem uma citação:

“Asperger atuou para adaptar-se ao regime nazista e foi recompensado com perspectivas de carreira por sua lealdade.”. -Afirma no estudo Herwig Czech, historiador na Universidade Médica de Viena-

-O doutor Asperger (1906-1980) “legitimou publicamente as políticas de higiene racial, incluindo as esterilizações forçadas, e cooperou ativamente, em várias oportunidades, com o programa nazista de eutanásia de crianças”, completa a pesquisa

Asperger foi membro de várias organizações vinculadas aos nazistas, mas não do Partido Nazista, destaca o estudo publicado na revista Molecular Autism-

Tiago: Ao que parece então, o estudo foi primeiro publicado na Molecular, mas eu lembro de ter alguma coisa na Nature ou outra de grande nome. Mas talvez eu esteja enganado, já que fazem algumas semanas desde que eu comecei a pesquisar o tema. Continuando:

-No estudo, Herwig Czech explica que consultou diversas publicações contemporâneas e documentos de arquivo até agora não analisados, incluindo arquivos pessoas do médico e análises de seus pacientes

Também cita um documento nazista de 1940 segundo qual Asperger “concordava com as ideias nacional-socialistas sobre as questões de raça e as leis de esterilização”.

O doutor Asperger mostrou sua lealdade aos princípios fundamentais da medicina nazista em várias conferências públicas.

Após a anexação da Áustria pelos nazistas em março de 1938, ele assinava seus diagnósticos com as palavras “Heil Hitler”.

De acordo com o estudo, Asperger recomendou a transferência de duas crianças, de dois e cinco anos, para o centro de Am Spiegelgrund, dentro do hospital psiquiátrico Steinhof de Viena.

Neste centro morreram quase 800 crianças que não cumpriam os requisitos de “pureza racial” e não tinham “interesse hereditário”, assassinadas por envenenamento. As duas meninas, que estavam entre as vítimas, morreram oficialmente de pneumonia.

Hans Asperger também integrou uma comissão responsável por decidir o destino de quase 200 pacientes do departamento infantil de outro hospital, incluindo 35 que foram considerados “não educáveis”, que acabaram mortos, segundo Czech-

Tiago: Provavelmente, crianças com algum tipo de deficiência como a própria Asperger.

-A síndrome de Asperger é uma condição psiquiátrica do transtorno do espectro do autismo marcada por dificuldades nas interações sociais ou de comunicação.

O doutor Asperger a chamou inicialmente de “psicopatia autística”, mas após sua morte em 1980, a síndrome recebeu o seu nome-

Tiago: O que só veio a se tornar uma terminologia oficial em 1994. Essa é a notícia. O estudo pelo que vi é muito mais denso e detalhado. Mas, já que estou aqui com o senhor Michael. Que estudou e estuda bastante sobre história contemporânea. Gostaria que ele nos desse um contexto geral da época e seus cientistas e médicos.

Michael: Primeiro de tudo. O cara chamou a síndrome de psicopatia autista. Acho que isso já denuncia a linha de pensamento dele. Mas no geral, quando você pega esse período entre os anos trinta e quarenta, você ainda está tendo uma maturação das ideias que começaram a surgir no final do século dezenove. E qual era a “grande” linha de pensamento da época? Darwinismo social. Para os pesquisadores -e políticos- daquela época, era algo que fazia muito sentido. Eu vou ficar devendo uma explicação mais profunda, visto que não sou sociólogo. Mas era muito forte essa visão pejorativa das diferenças físicas e mentais entre os povos. Ainda que isso tenha sido um processo necessário em reconhecer as diferenças que nos fazem humanos e não bactérias idênticas umas às outras. E apesar de ser um pensamento homogêneo para época, com pesquisadores do mundo todo seguindo linhas de pensamento similares. De longe a Alemanha Nazista era quem tinha o maior interesse em financiar esse tipo de pesquisa.

Tiago: Até mesmo para tentar embasar as crenças deles.

Michael: Isso, exatamente isso. Eles queriam embasar as crenças sobre a inferioridade de quem não fosse alemão, basicamente. Então você vê a tentativa de usar o darwinismo social do século dezenove como uma forma embasar o racismo dentro das sociedades daquela época. E a Alemanha industrializa esse processo. Enfiando recursos nisso. Logo, quando você vê sobre qualquer cientista fazendo descobertas nessa área e nessa época. Você já fica suspeitando. “É, quem será que estava por trás disso?” Esse era o pensamento da época.

Tiago: De hegemonia, no caso?

Michael: Isso. “Os seres humanos são diferentes entre si, e isso é ruim.”. Os artigos chegaram nessa conclusão de que as diferenças eram ruins e -as forças políticas- saltavam para a conclusão de “A gente tem que matar esse pessoal aí.”.

Tiago: Esse tema, em relação ao Hans Asperger causa muita polêmica na comunidade autista. Já vi diversas pessoas argumentarem que enquanto existe um debate acalorado lá fora, aqui pouco se fala sobre isso. Mas eu estava vendo num grupo o qual eu não vou mencionar o nome.

Michael: Todos sabemos que é o grupo do Desenhista Que Pensa.

Tiago: Piadas a parte, eu estava vendo o comentário de uma mãe de um autista, em uma postagem relacionada ao tema. Que o que estavam fazendo com o Hans Asperger era uma perseguição e desnecessário. Que não tinha como não ser nazista na época. Enquanto eu estava argumentando que seria até bom uma mudança de nomes, visto que Asperger já estava caindo em desuso no meio técnico, para se referir a Síndrome. E ela perguntou se eu já tinha visto “A Lista de Schindler”, que é um filme que eu amo. E eu achei uma comparação tão forçada, visto que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Em um temos um industrial burlando o sistema. Em outro um pediatra que estava em uma das frentes dele.

Michael: Dizer que ele não era nazista é forçar a barra. Muitos desses cientistas tinham carta branca no regime e não eram forçados de forma alguma. Isso é fugir do ponto. A pesquisa dele ser útil não muda o fato dele ser apoiador do regime. Ele continua sendo um panaca.

Eu venho das ciências da terra. Na minha linha de pesquisa (paleontologia) a gente tem o conceito de que o primeiro nome que dão para alguma coisa, é o que vale. Salvo situações muito extraordinárias. E ainda assim. Eu não vejo porque mudar o nome por causa disso. Pois se fossemos fazer uma caça às bruxas aos cientistas daquela época. A gente acabaria apagando toda a história desse período no processo. Porque na prática, todo cientista na primeira metade do século vinte, era um pau no cu. E lembrar dos acontecimentos do passado é fundamental para evitar que os mesmos erros sejam cometidos novamente, no futuro.

Tiago: Então para você, manteria o termo Síndrome de Asperger como o termo oficial?

Michael: Isso, até porque o primeiro termo, psicopatia autista é um pouco… Cru. Creio que o primeiro nome oficial realmente foi Asperger e é o que pegou.

Tiago: Principalmente pois o campo de estudos do autismo é extremamente recente, com Síndrome de Asperger entrou na literatura em noventa e quatro. Então eu vejo muito revisionismo nessa área. O CID 11 mesmo, que vai entrar em vigor em 2022, baniu todos os termos que não fossem transtorno do espectro autista. Então você tem transtorno com muito ou pouco atraso intelectual. Leve ou com muito atraso na fala. E mais nenhuma terminologia diferente.

Michael: Isso parece um pouco diferente do que a gente usa (nas ciências da terra) onde ao invés de priorizar o primeiro nome, prioriza-se pela simplificação terminologia. É uma proposta interessante.

Tiago: Embora eu, particularmente, achei essas novas classificações do CID 11, confusas. Eu tive que reler umas dez vezes para entender o que um médico me classificaria de acordo com essa nova terminologia. Tanto que o Otávio até brincou com isso. “Se a gente tivesse que escolher outro nome, porque não Síndrome do Senhor Spock?”

Michael: Como segundo ponto. Eu acho que ficar cavando atrás do passado desses pesquisadores um esforço fútil. O primeiro diretor da NASA (Wernher von Braun), foi parte fundamental da criação dos foguetes V-2, a wunderwaffe (literalmente, armas-maravilha)! A mais efetiva dentre elas durante a guerra. O cara era um gênio. Ainda assim era “O Nazi”. Ele foi Major das SS (Schutzstaffel, braço paramilitar do governo Nazista)!

Tiago: Eu vejo que lá fora, principalmente na Europa o pessoal é bastante radical quanto a isso. Eles mantêm a validade do estudo, mas retiram quaisquer tipos de honrarias quanto a pessoa. E eu vejo que essa é a justificativa que as pessoas usam. Mas o que eu me pergunto é quanto tempo seria necessário para retirar o termo Asperger de dentro da cultura “Aspie”. Porque o termo cresceu além do diagnóstico, atingindo níveis de comunidade para as pessoas, uma identidade visto que essas pessoas não se identificam com o termo autismo no geral.  

Michael: Para isso você tem duas respostas. Muito rápido e nunca. Muito rápido nos círculos superficiais. E não só pela questão de o Hans Asperger ser nazista, mas com a mudança na literatura médica, você tem um incentivo para adoção de outros termos muito fortes, um fogo de palha. Porém no núcleo cultura, provavelmente não vai mudar muita coisa. Porque no fim o primeiro nome é o que pega.

Tiago: Inclusive o DSM 13 saiu em 2013 e ainda tem muita gente discordando. Já vi muita gente discordando da ideia de autismo como espectro também.

Michael: Tem essa questão também. Asperger é de fato autismo? A gente não tem certeza ainda. Touchê. Tem argumentos contra e a favor, mas certeza absoluta? Não. E o que você faz quando você não ter muita certeza nas ciências? Você não assume, porra.

Tiago: E o complicado é que pelo menos aqui Brasil. A literatura acadêmica sobre o autismo é ridícula.

Michael. E é bom pontuar isso. Existem pesquisadores trabalhando com autismo no Brasil? Eles são bons? Não muito.

Tiago: E geralmente eles são associados com alguma outra área e só fazem uma pesquisa ou outra sobre Autismo.

Michael: E se suas citações só vêm de fora. Você só as cita.

Tiago: Tanto que muitos dos artigos bons estão recheados de citações externas. É complicado. Inclusive uma ideia que você mesmo defende, e que já falou em dois episódios. É que existem diferenças sociais entre países como o brasil e por exemplo, países culturalmente mais fechados. E isso é algo que só um artigo nacional poderia constatar. E é algo que a gente não.

Michael: Sim! E isso é algo que poderia mudar como a gente vê e classifica esse diagnóstico. A gente usa esses referenciais estrangeiros sendo que a nossa cultura não é compatível com uma cultura europeia mais fechada, por exemplo. Um Asperger lá talvez fosse classificado como um Autista Severo aqui. Visto a diferença cultural que existe além do diagnóstico. E mesmo com o diagnóstico, um Asperger tem uma capacidade social grande o bastante para ser moldado pelas interações sociais que o mesmo presencia. Bem, pelo menos essas são minhas observações. Não creio que exista nenhuma confirmação técnica disto. Porque no fim das contas, dinossauros não tem Asperger e eu mal tenho autoridade para falar de dinossauros. Bem, não que eu saiba, talvez corvos tenham. Talvez seja algo exclusivo em mamíferos.

Tiago: Mas eu acredito que, como Asperger é um tema de interesse ente os próprios aspergers. Seria possível incentivar mais pessoas com a Síndrome a fazer pesquisa na área.

Michael: E qualquer pessoa com interesse em pesquisar, já é um grande bônus.

Tiago: E eu também percebi que muito do conteúdo técnico produzido sobre o tema acaba tendo relação com a vida pessoal dessas pessoas. É com base em um filho ou outro parente, um conjugue ou até o próprio autor é.  

Michael: Realmente, também, todos os casos que vi foram de pessoas com algum nível de relação com alguém Asperger.

Acho que a moral de hoje é. Cientistas nazistas são paus no cu. Mas ainda são cientistas, infelizmente. E se você é autista, por favor, incentive seus amigos, parentes e coleguinhas a serem cientistas. Mas não nazistas, por favor.

Tiago: É, tanto autistas quanto pessoas comuns, venham ajudar a gente. Quem sabe daqui uns cinco anos as coisas já sejam diferentes. E eu falo cinco anos, pois a realidade de quando eu fui diagnosticado era muito diferente. Minha perspectiva para a próxima década é de um aumento no conhecimento sobre esse tema.

Michael: Sim, dá para perceber que nos últimos dez anos houve uma popularização do tema e o futuro parece ser otimista. E com isso atingindo mais pessoas, acaba-se tornando uma pauta de relevância.

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