Há quem só pense coisas ruins sobre ateus, pessoas que nunca foram numerosas no Brasil. E quando eles são autistas? Tiago Abreu conversou com Débora Brandão, Fábio Sousa e Marcos Camargo sobre a ausência de crenças, estereótipos do autismo, relações familiares e muito mais, neste segundo episódio da reportagem sobre religião e autismo.
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Transcrição do episódio
Tiago: Este é o segundo episódio da série Religião. Se você não ouviu o nosso primeiro episódio, dá um pause rápido aqui e ouça ele antes, porque a discussão vai continuar de onde paramos lá.
Tiago: Frequentemente mal vistos por segmentos religiosos, os ateus são um grupo social que nunca alcançou hegemonia no país. Na dinâmica familiar, autistas ateus vivem experiências diversas. Alguns nascem em lares naturalmente pouco religiosos, outros passaram por dissidências bastante doídas.
Tiago: Por isso eu conversei com três autistas que são ateus. Eles carregam, em comum, o fato de serem residentes no estado de São Paulo. A Débora Brandão tem 33 anos, nasceu em Minas Gerais, mora no município de Mococa e trabalha com gestão e consultoria em marketing digital. Ela veio de um contexto familiar católico.
Débora: E eu fui criada dentro dos conceitos da religião católica. Então, eu fui batizada, ia à missa aos domingos, fiz catecismo, fiz primeira comunhão, aprendi a rezar todos os dias para dormir. Mas sempre eu fui muito questionadora e eu questionava muito ainda criança, muitas metáforas. E eu não entendia eles, o jeito que era explicado não fazia sentido pra mim, não tinha um sentido lógico. Então, junto com essas questões, veio também a culpa, porque dentro dos conceitos da religião católica era como se eu fosse pecadora. Então eu me sentia muito mal, porque eu tinha aquela culpa de estar questionando, de não estar entendendo e, ao mesmo tempo, eu achava que tava tudo muito errado. Nessa mesma época, no final da infância, início da adolescência, eu tive uma notícia de uma criança que sofreu uma violência muito grande e foi a partir daquele momento que eu fui mesmo percebendo que tinha alguma coisa que não fazia sentido pra mim. Eu lembro que eu comentei com minha avó: “Vó, se Deus existe, por que essa criança sofreu tanto? Sofreu tanta coisa, tanta dor?”. E aí não tinha uma resposta que fazia sentido pra mim. E eu comecei a me sentir muito frustrada.
Tiago: O caso de Débora não é muito parecido com o de Marcos Camargo, de 36 anos, que mora em Marília. A família dele nunca foi muito religiosa, mas ele passou por muitas experiências religiosas até se considerar ateu.
Marcos: Como todo mundo sempre disse que devia existir alguma coisa, eu procurei muito, frequentei algumas igrejas. Durante pouco tempo fui ver como é que era, não me convenceu, saí. Passei um bom tempo frequentando a Seicho-no-ie, era um lugar bem agradável, um lugar divertido, um lugar com pessoas muito legais, mas chegou um ponto que eu parei de frequentar porque as pessoas lá eram muito legais e eu não acreditava naquilo. Comecei a achar que era falta de respeito com essas pessoas estar frequentando ali só pelo social e não fazer parte, realmente, do sistema de crença delas. E eu acho que foi este o momento em que que eu decidi: “não existe problema em não acreditar em nada, tá tudo bem se eu não tiver uma religião”. Eu sempre fui ateu. Eu costumo dizer até que todo mundo nasce ateu. A gente aprende a acreditar em alguma coisa, é ensinado pelos adultos, as crianças aprendem que elas devem acreditar nessa ou naquela religião, mas ninguém nasce acreditando em nada.
Tiago: Outra pessoa com quem eu conversei foi com o designer e bonequeiro Fábio Sousa, conhecido como tio .faso, administrador da página Se eu falar não sai direito. Ele tem 37 anos e reside em Cotia. O momento em que Fábio se descobriu ateu é até um pouco curioso, e ele contou pra mim como foi.
Fábio: Numa aula de religião na escola, quando eu tinha 12 anos, a freira falou assim que os animais não tinham alma. Eu perguntei: “mas como assim que animal não tem alma? Deus não fez todo mundo igual, irmã?”. Ela respondeu: “sim, só que os animais são inferiores aos seres humanos”. E a coisa dos animais pra mim sempre foi muito importante. Então, quando ela falou isso, que não tinha alma e que era inferior, eu disse: “desculpa, então não concordo com o seu Deus. Pra mim um Deus que fala isso não existe”. A irmã ficou branca (risos), chamou a minha mãe pra conversar. Aí ela falou: “Ah, se ele tá falando isso, tudo bem, né? Fazer o que? Faz parte”.
Tiago: Histórias assim são até engraçadas, mas a verdade é que o processo de desligamento, muitas vezes, é extremamente doloroso. Envolve bases e crenças que se desfazem, relações de amizade que se perdem, uma rotina que não mais existe… Não é fácil para todo mundo.
Débora: É um processo de desconstrução muito grande e é bem dolorido, porque a gente cresce achando que uma coisa é verdade e de repente ela já não passa a fazer mais sentido pra você, você se vê como peça quebrada ali. Eu me sentia aquela pedra no sapato muitas vezes, porque na adolescência, final da adolescência, início da vida adulta, eu era aquela pessoa chata que queria impor o que eu acreditava ou que eu não acreditava.
Tiago: Eu perguntei para os três se era possível fazer alguma relação de autismo com ateísmo. Afinal, algumas pessoas gostam de dizer que autistas tem dificuldade com pensamentos pouco concretos.
Marcos: Acho bem difícil falar sobre os autistas de forma geral, até porque eu não conheço muitos autistas e o transtorno se manifesta de muitas formas diferentes, cada autista é um autista. Mas eu acredito que em alguns casos pode sim ter relação do autismo com a pessoa não ser religiosa e também com o fato de ser ateu. Porque existem pessoas que não são religiosas, mas que ainda acreditam em Deus, mas eu acredito que o autismo pode sim, em alguns casos, trazer complicações pras duas coisas, desde conseguir acreditar em Deus e também conseguir ter uma religião, porque é muito difícil a gente muitas vezes entender e conseguir se encaixar nas regras sociais que existem em n ambientes que a gente vai conviver. Por exemplo, você tem algumas regras na sua casa, você tem outras regras na escola, você tem outras regras em outro ambiente, um clube, são muitas coisas que são diferentes, aí acaba que a igreja acaba sendo outro lugar com outras regras, então assim, são muitas regras pra você entender. E na minha opinião seria mais uma complicação sem tanta utilidade assim pra minha vida prática. E é muito diferente e é muito complicado e, tipo, tem muitos rituais a serem aprendidos e isso soma mais uma carga de coisas que você precisa aprender, precisa dominar, e torna a vida um pouco mais complicada. Então eu acho que nesse ponto é possível sim que alguns autistas tenham dificuldade em fazer parte de uma religião, porque tem todo esse mais um convívio social. Mais um grupo, mais um lugar, mais um conjunto de regras a serem seguidas e isso muitas vezes eu acredito que é muito complicado para muitos autistas.
Fábio: Então, eu acho que tudo que se fala referente ao autismo é um mito, porque se baseia em hipóteses que não fazem o menor sentido quando você está inserido na comunidade. Eu, por exemplo, conheço muitos autistas que tem religião, assim como também eu conheço bastante que não tem. E, geralmente, os que não têm são geralmente mais racionais. Então, geralmente ver um autista que gosta de ciência, que tem todo esse pensamento nacional, há uma grande tendência dele ser um autista ateu, mas isso não é regra.
Marcos: No meu caso, específico, está relacionado com essa dificuldade de lidar com questões tão abstratas, assim, eu sempre precisei de algo mais concreto, mais tangível, assim. Eu lembro de me perguntar muito quando era criança: “onde está a Deus?”. E as respostas nunca eram convincentes. “Deus fala no céu, mas onde é isso? Mas se gente pega um avião e voa, lança um foguete, tipo, mas Deus está abaixo ou acima das nuvens? Quando chove, Deus se molha?”. E e era muito difícil pros adultos responderem essas perguntas, até porque o meu diagnóstico veio muito tarde. Então eu era considerado só uma criança bem chata e complicada. Então, muitas vezes as pessoas não tinham nem paciência de me responder essas perguntas. E pra mim não fazia muito sentido a ideia desse ser que ninguém vê, mas todo mundo acreditava, era um negócio bem complicado. Eu não sei se isso é assim pra outros autistas, mas pra mim era muito complicado, não só a ideia de Deus mas espíritos, por exemplo, eu acho que eu tive a sorte que eu fui uma criança que não tinha medo de fantasma, por exemplo, até por conta disso, porque eu não conseguia entender como é que era esse negócio do fantasma, porque era muito abstrato, era um negócio muito de outro mundo assim que não entrava na minha cabeça de jeito nenhum.
Tiago: Ainda há muitos estereótipos em torno de ateus, e não seria diferente para autistas ateus.
Débora: Então, sempre associam ateísmo mesmo a pessoas ruins, que é uma outra coisa que eu acho que acontece muito, que quando falamos que somos ateus, vem a associação do tipo: “nossa, mas você é tão boa, como é que você pode ser ateia?”. Ou: “como que você não acredita em Deus? Você ajuda tanta gente!”. Então, enquanto essas associações são feitas, as famílias vão ter dificuldades sim, pela criação que a gente tem aqui num país extremamente religioso.
Fábio: Eu falo e as pessoas ficam descrentes, porque tem uma amiga minha quadrinista que fala que ela que eu sou ateu mais cristão que ela conhece, porque eu tenho meus valores fortes de ajudar o próximo, amar todo mundo, respeitar todo mundo que teoricamente não condiz com o imaginário que as pessoas tem do ateu, que nós temos que comer criancinhas e botar fogo em tudo. Mas na comunidade eu falei que era ateu, mas ninguém falou nada e muitas vezes era assim: “ah, eu também sou!”. E quando eu resolvi escrever o texto lá na minha página, eu pensei: “meu deus do céu, vai dar um xabu bem grande”. Mas eu fiz isso o que estou fazendo com você, eu tentei explicar como é que a minha visão sobre religião, que pra mim ela não é necessária, mas eu sei que pra outras pessoas é necessária. E as pessoas curtiram muito, pro meu espanto que elas curtiram muito, achei que ia ter gente querendo me crucificar.
Tiago: Entender autistas que não creem é fundamental para se quebrar um dos mitos de que autistas são “anjos” ou “seres celestiais”. Autistas são seres humanos tanto como as demais pessoas que você vê e interage no dia a dia. Parece até bobo e óbvio dizer isso, mas nem sempre, dentro da comunidade do autismo, isso é óbvio para muitas pessoas.
(Trecho de Crianças Diante do Trono – Deus nos Amou)
Luca: Esta reportagem é uma parceria entre o portal Mundo Autista, a Revista Autismo e o podcast Introvertendo. O texto é de Tiago Abreu. E a edição é de Glauco Minossi.