“Fé no Espectro” é uma reportagem publicada na Revista Autismo e aqui, reproduzida em áudio, pelo Introvertendo. No primeiro de quatro episódios, Tiago Abreu conversa com Myriam Letícia, Nicolas Brito Sales e Selma Sueli Silva, todos autistas, sobre suas práticas religiosas e as intersecções possíveis de suas crenças com a vida social. Arte: Vin Lima.
Links e informações úteis
Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.
Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.
Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | Deezer | CastBox | Google Podcasts e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.
Transcrição do episódio
Tiago: Religiões e suas variações fazem parte do cotidiano brasileiro. Aliás, de acordo com dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população é cristã. Em um país de múltiplos contrastes e desigualdades, autistas e seus familiares colecionam diferentes experiências com práticas religiosas – influenciadas por uma rede de relações socioeconômicas, culturais e pela amplitude do espectro.
É por isso que o Introvertendo traz aqui a versão em áudio da reportagem Religião, um compilado de conversas sobre fé dentro do espectro, que também conta com uma versão em texto publicada pela Revista Autismo. Vamos lá?
Tiago: Apesar de não termos uma proporção numérica de autistas religiosos e não-religiosos no Brasil, existem hipóteses e estereótipos ligados aos critérios diagnósticos do Transtorno do Espectro do Autismo. O hiperfoco, o pensamento rígido e as dificuldades de interação social são transformadas em discursos sobre a religião. Mas, desta vez, são os autistas que criam suas narrativas.
O palestrante, fotografo e escritor Nicolas Brito Salles, de 21 anos, é autista e evangélico. Nicolas foi apresentado ao protestantismo pelos pais na infância e faz parte da Congregação Cristã do Brasil. Há uma ideia comum de que o conceito de Deus possa soar muito abstrato para autistas. Por isso, não pude deixar de perguntar: Nicolas, em algum momento, foi difícil entender o que significava Deus, ou outros conceitos religiosos, na sua vida? E hoje, como é?
Nicolas: Eu não tenho mais tanta dificuldade pra pra entender em relação a religião. Mas, quando eu era pequeno, a minha mãe sempre me ensinou que Deus não é um homem que está sentado no trono, mas sim que é uma energia positiva daquilo que a gente precisa ter bastante fé. Pra mim, a religião me deixa mais otimista em relação a ter mais fé quando a gente fica estressado com alguma coisa, quando tem alguma coisa que está indo muito mal é a religião que ajuda a gente ter mais fé sobre as coisas que a gente tá passando por dificuldade, pra pra ter mais esperança que vai melhorar. E também a religião nos ensina bastante a ter amor ao próximo. Não importa o jeito da pessoa, a opinião da pessoa, então a religião me ajuda bastante em relação a isso.
Tiago: A jornalista, radialista e escritora Selma Sueli Silva foi diagnosticada autista há quatro anos. Há 15 anos, ela se tornou membro da Soka Gakkai Internacional, uma ONG filiada a ONU formada por praticantes do Budismo de Nichiren Daishonin. Ela conheceu o budismo por meio da mãe na adolescência e se tornou adepta da religião já adulta após praticar diversas religiões de matriz ocidental. E explica sua escolha pelo budismo.
Selma: Eu não precisava me adequar, de fazer algumas “mágicas” pra ser aceita. O budismo me fez olhar pra mim e perceber o que eu tenho que fazer pra revolucionar esse desafio. O que eu tenho que fazer pra elevar meu estado de vida e emergir sabedoria. E isso que me fez nunca desistir do meu filho, porque toda vida encerra em si uma dignidade. E que se a gente for buscar todo ser humano, qualquer que seja, sem distinção de raça, de credo, de qualquer outra coisa, ele é capaz de fazer emergir esse estado de iluminação que existe dentro dele. Ele é potencialmente forte para lidar com quaisquer situações da vida.
Tiago: Psicóloga, terapeuta integrativa de práticas complementares em saúde e servidora pública, Myriam Letícia foi diagnosticada autista há três anos. Ela foi criada em tradição católica, mas se encontrou numa espiritualidade mística e holística. Myriam considera a espiritualidade parte marcante de sua personalidade.
Myriam: Eu tenho essa prática de oração, meditação diária, conexão com esse divino, com esse mistério, com esse transcendente, com essa força, com essa energia para além de mim, alguma coisa universal, alguma coisa que organiza o universo que eu mais sinto e experiencio do que ser denominar, que muitas vezes denomino Deus, mas eu não o que é e não tenho problemas em dizer “não sei”, mas eu sinto, experiencio isso dentro de mim e sinto necessidade de estar em conexão com isso, é uma busca minha mesmo. E ao mesmo tempo com energias positivas ao meu redor, seja espíritos que guiam, guias espirituais ou anjos ou enfim, eu acho que são denominações linguísticas, mas que são mistérios que eu não sei explicar, apenas consigo sentir e pra mim eu sinto necessidade de estar em conexão com isso, através de orações e de meditações. Então nas orações eu peço, eu agradeço, mas principalmente agradeço, faço muita oração de gratidão. Eu acho que a gratidão leva a gente ao amor, a prática de amor. E eu acho que quanto mais a gente agradece, mais a gente se desenvolve também como ser humano. A gratidão eu acho que é uma das melhores práticas. Seja você espiritualizado ou não, pode ser gratidão a Deus, ou a vida, ao universo, ao acaso. Agradecer é uma das melhores formas de a gente ficar mais perto de nos tornarmos seres mais amorosos. Eu também gosto de entrar em contato através do silêncio. O silêncio da meditação pra mim é maravilhoso. Então, eu gosto muito de meditar, pra mim esse silêncio é uma conexão também com alguma coisa para além de mim que eu não sei o que é, mas é uma conexão que me faz muito bem e que me traz também autoconhecimento, desenvolvimento pessoal e com intuito de me tornar uma pessoa melhor e um ser humano melhor para a sociedade, para o mundo, para as pessoas, para os outros, para quem está próximo de mim.
Tiago: Myriam acredita que fé e razão não são inimigas.
Myriam: A fé só vai ser saudável se for uma fé com razoabilidade, racional, racionalizada, com razão, com inteligência, uma fé pensada também. Claro que sempre sentida, mas também pensada. Então, essa é uma fé razoável. Eu acho que essa é a fé mais saudável. E ao mesmo tempo a razão só é razão se houver respeito, se houver diálogo, se ela souber dialogar, se não não é razão. Então, por isso que eu acho que fé e razão elas não precisam ser inimigas. E eu só queria lembrar que prática espiritual pra mim também se faz no dia a dia. Nas nossas atitudes, nas nossas formas de se relacionar com as pessoas. Isso também pra mim é prática espiritual e é das mais importantes. Então, relacionar pra mim com o mundo, com as pessoas, com o planeta, com os animais, essa relação, pensar nisso, tentar ser justa, ética, correta, isso pra mim é uma prática espiritual, porque senão de nada serve a minha espiritualidade. Então, quando eu falo em prática espiritual, pra mim não passa só por oração e meditação, mas passa muito por como eu ajo com as pessoas, com o planeta, com tudo.
Tiago: Entender autistas que creem é fundamental para se quebrar um dos mitos de que autistas tenham pensamentos pouco abstratos. Como já dissemos, a religião está intrincada em todas as relações sociais que temos, e no campo do autismo não seria diferente. No nosso próximo episódio desta série, que sai amanhã, conversamos com autistas que optaram pelo ateísmo.
(Trecho de Davi Sacer & Trazendo a Arca – Entre a Fé e a Razão)