Alexsander Sales e Lucelmo Lacerda são ativos na comunidade do autismo – notórios palestrantes e estudiosos do tema – e, além de tudo, também são pais. Neste episódio, Tiago Abreu e Willian Chimura os chamam para um papo sobre desigualdade de gênero, paternidade no autismo, o reconhecimento da condição como espectro, as representações do autismo na comunidade e até as diferentes fases do charlatanismo. Arte: Vin Lima.
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Transcrição do episódio
Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e o primeiro do nosso país a trazer autistas discutindo autismo. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista e host deste podcast, também fui diagnosticado com autismo em 2015. E diferentemente de muitos dos nossos episódios, hoje a conversa é com pais de autistas.
Willian: Eu sou o Willian Chimura, sou diagnosticado com Síndrome de Asperger, tenho um canal no YouTube e eu acho que é a primeira que eu vou falar com tantas pessoas que eu conheço em um único episódio.
Alexsander: Bom, eu sou o Alexsander Sales, sou pai de um autista hoje de 21 anos, minha primeira formação é em administração de empresas e hoje eu faço uma pós-graduação. Eu mudei de área por conta de toda essa transformação do pós-diagnóstico da nossa vida, minha esposa também teve oportunidade de mudar de área em função disso, e hoje eu faço uma pós-graduação em neuropsicopedagogia.
Lucelmo: Meu nome é Lucelmo Lacerda, eu sou pai de um menino com autismo hoje de 12 anos, sou pesquisador na área de autismo e inclusão, eu já era pesquisador de outra área, e depois eu migrei. E hoje eu tô pesquisando autismo, inclusão escolar e práticas baseadas em evidências.
Tiago: É um prazer meu aqui ter o Alexsander e o Lucelmo, que são duas pessoas notáveis dentro da comunidade do autismo, para falar esse assunto que é de suma importância dentro da comunidade. Lembrando que em 2019 nós comemoramos o dia das mães e o dia dos pais conversando com mães e pais autistas e este ano resolvemos falar com mães e pais de autistas. Então, agradeço demais por terem aceitado o nosso convite. O Introvertendo é uma iniciativa de autistas cuja produção é da Superplayer & Co.
Bloco geral de discussão
Tiago: Falar de paternidade no autismo me leva a pensar uma questão muito preocupante que a gente tem em comunidade. Você, Alexsander e você, Lucelmo, são minorias dentro da nossa comunidade. A gente sabe muito bem que muitas famílias são apenas mães ou às vezes tem até um marido, mas quem participa da vida e do desenvolvimento dos seus filhos são apenas elas. E eu quero saber de vocês: qual é a avaliação que vocês têm sobre esse fenômeno, como pais e também como homens?
Lucelmo: Essa questão da mulher ser a responsável de alguma forma prioritária pelo desenvolvimento ou pela defesa da criança, na verdade é uma lógica de toda a sociedade, uma lógica machista que perpassa todos os campos. No mundo do autismo não é diferente, então ela tá dentro de uma lógica de desigualdade que a gente encontra de um modo geral. Quando a gente olha pra comunidade, é muito difícil a gente encontrar pais engajados, mas se a gente olhar pra dentro das casas, isso também acontece. Engajados na relação com a criança, com o tratamento, procurar tratamentos, tomar decisões, ir atrás disso e eu acho que isso sem dúvida nenhuma é um problema. É um problema que aflige a nossa comunidade. Mas eu eu diria ainda que tem uma outra questão, porque quando você olha, por exemplo, os dados sobre estresse parental, eles são muito acentuados. Então, é importante que que os pais participem desse processo e que eles também de alguma forma dividam isso. A gente sabe que a vida de casal é um conjunto de problemas. Eu acho que isso não vai se resolver exclusivamente dentro da comunidade, mas sim à medida que a sociedade vai ficando mais equânime.
Alexsander: Eu concordo com o Lucelmo em relação a isso, eu acho que a vida a dois realmente é um desafio em todas as esferas, não necessariamente quando você estabelece como parâmetro ou um casal de que tem filhos atípicos. Tendo um olhar assim um pouco mais voltado realmente para a nossa comunidade, o que eu percebo puramente como espectador é que com o passar do tempo as pessoas passaram a olhar o autista de uma maneira não tão dramática. Porque quando a gente falava de autismo no passado, vinha sempre aquela imagem do Rain Man. Eu percebo que, com a chegada de um pouco mais de informação e a gente trazer esse debate pra esfera social, as pessoas e as famílias passaram a entender o autismo também como uma outra possibilidade. Então, eu acredito que isso facilitou, inclusive, na questão da relação de pai, filho, mãe, fez com que muitos pais deixassem de abandonar e participassem um pouco mais desse processo educacional dos filhos atípicos.
Willian: Eu interajo bastante, principalmente com mães, porque realmente as mensagens que eu recebo mais frequentemente são de mães, apesar de também alguns pais me mandam mensagens, só que majoritariamente mães. E uma coisa que eu tenho percebido é que é comum que, ao receber a notícia do diagnóstico, tem todo um processo de aceitação. Eu vejo que as pessoas lidam de uma maneira diferente umas das outras. Mas eu acho que seria até seguro dizer aqui que a grande maioria passa por um processo um pouco difícil a primeiro momento e, ao longo do tempo, conforme a conscientização, os estudos, etc, acabam aceitando melhor a questão do autismo e quase sempre vão realmente atrás das melhores terapias, do que é melhor pro seu filho. E nesse sentido eu queria saber: como que foi exatamente esse processo de aceitação desde o diagnóstico, desde como que você ficou sabendo do diagnóstico do Nicolas, como que foi?
Alexsander: Realmente existe uma uma variação muito grande de como as pessoas sentem essa questão. É muito individual, e o mais importante de tudo é a gente saber respeitar isso, entender que as pessoas digerem o diagnóstico de uma maneira muito diferente, tanto pais, quanto mães. Então, você tem uma variabilidade muito grande de situações, inclusive de pais, realmente, que às vezes tomam a frente dessa questão da família e fazem o papel que muitas vezes é atribuído ou esperado para mães. Eu passei por um processo de luto bastante complexo, foi muito ruim. Ao contrário da minha esposa, que na verdade, como ela percebeu muito cedo que o Nicolas tinha algumas características diferentes, ela já começou essa busca já desde muito cedo. Com dez ou onze meses ela já começou a pesquisar o que poderia ter de diferente no Nicolas. E eu fui levado durante muito tempo pela opinião dos médicos na época, até por conta dessa falta de informação, diziam que meu filho não tinha absolutamente nada. Então, por durante muito tempo eu me atrasei, me convenci que meu filho não tinha absolutamente nada e que em algum momento ele ia desenvolver de maneira típica e não foi o que aconteceu. Então a ficha, na verdade, começou a cair quando o Nicolas tinha mais ou menos uns três anos e meio. Então nesse período eu fui praticamente o motorista da minha esposa, não era um companheiro, um cara que tava ali junto. Como a ideia era não trabalhar nada invasivo no Nicolas, nenhum procedimento que trouxesse algum tipo de risco, eu não me opunha, entendeu? Mas eu também tinha a crença de que em algum momento meu filho ia desenvolver. E aí, por mais que a gente já ventilasse essa questão do autismo dentro de casa, pegar o diagnóstico do psiquiatra, quando Nicolas tinha cinco anos e meio, realmente foi uma coisa muito complexa. E aí eu passei também por um período bastante amargo. Eu costumo dizer que foi tão ruim que tem coisas que eu não consigo nem lembrar. Quando os médicos se ligaram que tinha alguma coisa, era muito ruim. Os médicos me disseram que o Nicolas nunca ia falar comigo, que ele seria pra sempre dependente, que eu ia ter que alimentar ele, que eu ia ter que levar ele pra todo lugar e aí eu tomei isso como minha incubência. Eu falei: “não, cara, se é isso mesmo então, vou, vou tocar o barco”. E aí eu comecei sair desse luto. Foi um processo, diria que talvez eu demorei aí uns dois anos, mais ou menos, pra me reestabelecer, mas foi uma fase bastante complicada.
Lucelmo: O processo com meu filho foi: a gente foi a vários médicos e falou: “ele não fala ainda. Tudo bem?”. E eles: “Tudo bem, isso é normal, cada um tem seu ritmo” e tal. E aí um médico falou: “olha, eu acho que esse menino tem autismo”. Quando ele falou isso, a gente marcou, mas imediatamente a gente já ficou escravo do Google.
Alexsandro: Sim (risos).
Lucelmo: Era um tempo de férias, uma coisa assim, eu sei que eu fiquei o dia inteiro olhando o Google e lendo trocentas mil coisas. A gente rapidamente se convenceu de que realmente era autismo. Então, portanto, a questão não era de não aceitação. Essa questão não chegou a existir. Mas aí, a gente não tinha ideia da extensão. Então, primeiro lugar, começou aquela história toda de tratamentos que o médico tinha indicado. Fono, terapia ocupacional, psico, equoterapia, aí a gente começou a fazer tudo aquilo. Eu sempre ia a tudo, eu ia a todos os lugares, mas eu não participava de fato, no sentido de que não escolhia, não opinava, nem nada. Pra mim estava esperando, porque daqui a pouco ele crescia e melhorava. E eu me lembro até de uma vez que a irmã dele perguntou assim: “Ele nunca vai falar?”. E eu fiquei bravo com aquilo. Eu falei: “que que é isso? De onde você tirou isso?” E naquele dia que eu pensei que isso uma possibilidade, que de fato é o que tudo indica, infelizmente é isso. Com 8 anos e meio, ele não tinha saído do lugar, não tinha melhorado absolutamente nada, isso tinha começado lá com 3 anos. Eu tava numa depressão muito profunda, entrei na depressão muito, mas muito profunda, uma coisa assim bem grave, comecei a tomar remédio por conta disso e uma das coisas eu fiz pra tentar resolver emocionalmente, era mudar e começar a pesquisar essa questão. E foi muito bom pra mim, foi importante. Como eu disse, não é um problema da aceitação, mas é uma questão que me causa extremo sofrimento ainda hoje. Porque o meu filho é uma condição bem grave, muito severa, que eu não não tive a oportunidade de fazer intervenção precoce, porque descobri já um pouco maior, 3 anos, mas quando eu descobri, fiquei 4 anos sem fazer intervenções que tivessem qualquer efetividade. Então, é um quadro de desenvolvimento bem lento.
Tiago: Algo em comum que vocês falaram na introdução foi o fato de vocês terem redirecionado a carreira para o autismo. Inclusive você, Lucelmo, que é conhecido como pesquisador. Aliás, eu só fui saber que você também era pai de autista depois. Como é que foi essa mudança na carreira e nos trabalhos de vocês conforme esse novo diagnóstico surgiu?
Alexsander: No meu caso mudou completamente a história da minha família. Eu trabalhava, sempre atuei na área de de logística, grandes multinacionais, sabe? Comecei a trocar de carreira um pouco mais adiante, porque na época eu fui tomado pela ideia de que eu precisava trabalhar mais, porque eu não sabia o quanto que eu ia precisar, de repente, pra fazer o tratamento do meu filho. E aí, num determinado momento, já um pouco mais adiante, o Nicolas aos 11 anos mais ou menos, por acaso do destino, a Anita foi fazer uma palestra e o Nicolas quis participar. Ele mal falava, ele tava começando a conversar. E eles começaram a fazer as palestras. A Anita começou a escrever um um blog na época como se fosse um diário, no Blogger, e com uma semana teve 4 mil acessos. Na outra semana virou tinha 12 mil acessos. E aí ela começou a escrever esse blog, o blog começou a ter procura, o blog virou livro. E num determinado momento percebi que eu tinha que acompanhá-los. E eu era mais o cara da logística, a Anita começou a escrever mais livros e eu comecei a levar os livros. Na época, a intenção não era ganhar dinheiro com os livros, mas a gente começou a vender os livros e uma coisa foi puxando a outra, até que num momento eu vi que não estava conseguindo conciliar, o pouco que a gente ganhava dava para se virar, e o importante era estar em família. A gente nunca teve grana, então intuitivamente viramos nós os terapeutas do Nicolas. Todo esse balaio acabou funcionando. O Nicolas tem um autismo muito peculiar, ele é uma incógnita para alguns médicos e pesquisadores, porque ele realmente tinha um autismo muito severo na infância. E ele demorou muito para verbalizar, teve mutismo durante muito tempo e começou a alavancar o desenvolvimento com 11 anos.
Lucelmo: Eu decidi estudar o autismo para mim mesmo. Eu fui a um evento sobre autismo. Cheguei lá, praticamente falaram só em ABA. A primeira palestra era: “tratamentos baseados em evidências para autismo”. Eu achei estranho, achei que era uma idiotice porque se é tratamento, é óbvio que é baseado em evidências, e depois de muito tempo eu descobri que não era assim. Eu vi aquilo, achei interessante, achei que fazia sentido, mas havia uma pulga atrás da orelha ainda. E quando eu cheguei na minha cidade, eu era professor de uma universidade em vários cursos, inclusive pedagogia. E lá estava rolando um evento com palestras sobre autismo. Quando eu cheguei lá, era quem? Anita Brito, o Nicolas e o Alexsander. E eu achei legal, achei muito boa a palestra, bem rica e aí eu fiz uma pergunta por escrito sobre o que eles achavam de ABA. E a Anita falou assim: “ABA é sensacional, tratamento com evidências científicas para autismo”. Naquele dia eu falei: “bom, então eu vou estudar isso!”. Só que eu eu comecei a estudar igual a um alucinado, porque é um perfil. Comecei fazer pós-graduação e ler o Skinner tudo, comecei a fazer algumas coisas na universidade que eu trabalhava, fazer umas falas gerais sobre autismo, um curso de introdução virou um livro, porque eu ia fazer o curso e as pessoas queriam uma coisa escrita e depois começando a falar progressivamente mais de análise do comportamento, de intervenção baseada em ABA. E aí eu entrei numa situação complexa, porque eu era um pesquisador relevante naquilo que eu falava. Então pra mim, academicamente, foi uma decisão difícil, porque significa começar do zero, abandonar tudo que você fez, que não foi pouco, era mais de uma década de estudo até chegar no doutorado. Era como abandonar tudo e falar assim: “Vou começar minha vida acadêmica de novo”. Mas aí surgiu esse campo de trabalhar com isso, dar curso. E aí as coisas também se arranjaram nesse sentido, de eu me deslocando também um pouco da academia para um cenário de prestação de serviço de informação.
Willian: Bom, vocês dois são palestrantes. E é claro, muitas vezes o que pode acontecer durante palestra, que acontece até comigo quando eu estou produzindo conteúdo e também palestrando, são as comparações. Eu recebo muito do meu público, por exemplo, mensagens de mães e pais perguntando coisas como qual medicação eu tomei, qual o tratamento eu fiz. Eu imagino que essas perguntas tem esse viés realmente das pessoas se compararem pra saberem “o que será que o que funcionou pro Willian poderia funcionar, por exemplo, pro meu filho ou pra minha filha”. E eu imagino que, ao longo das palestras que vocês dão também, vocês possivelmente recebem também perguntas nesse sentido. E é claro que inevitavelmente o público vai ter uma certa curiosidade sobre o filho de vocês. Então, nesse sentido, eu queria saber como que vocês enxergam e como vocês lidam com essa questão da comparação que eu acho que acaba sendo inevitável, muitas vezes.
Lucelmo: Cara, essa coisa da comparação é muito louca. Porque em tese, o próprio conceito de espectro já deveria afastar essa ideia. Nós temos um problema grave de compreensão das coisas, das pessoas. A gente tá falando de autismo, mas tá falando de modo geral. Eu acho que no caso do Alexsander deve ser mais expressivo por conta da trajetória do Nicolas. Essa é uma das dificuldades mais importantes para gente, por exemplo, pensar em termos de comunidade, do autismo. Porque a experiência de vida de uma pessoa que é mãe do Willian, do Tiago (não estou dizendo que é moleza, estou dizendo que é diferente), é muito diferente da experiência de vida de uma pessoa de uma criança que não fala, por exemplo. Quando eu tô falando de autismo, eu tô falando de uma coisa e a outra pessoa tá falando de outra coisa, muitas vezes. Isso gera muitas dificuldades. E tem muito a ver com a exposição pública também. Eu fiz uma postagem outro dia que tava havendo uma discussão, uma mãe de um menino com autismo leve falou que ela achava que a exposição pública de pessoas com autismo moderado e severo prejudicava a comunidade, prejudicava a conscientização. E e eu entendo a dor dela, eu entendo qual é a grande questão dela, porque quando as pessoas sabem que o filho dela tem autismo, qual é o quadro que a pessoa espera e acaba eventualmente tratando a criança antes de ter um conceito? Qual é o pré-conceito, portanto? Mas a gente olha também para essa mãe ou pai que tem um filho com autismo severo e a primeira pergunta que as pessoas fazem é: “Oh, que ótimo, eles são tão inteligentes! Qual é a habilidade especial do seu filho?”. Essa é a pergunta que eu mais ouvia de todas, porque essa ideia é bastante disseminada, sobretudo em produtos de comunicação. Eu acho que a solução pra isso não é fácil. Só tem uma solução, que é conhecimento. Mas eu tenho muitas dúvidas sobre o conhecimento que é feito meramente através dos meios de comunicação. Como o Alexsander salientou, na década de noventa digamos assim, a perspectiva era era de Rain Man, mas ela também era contraditória, porque ele era um cara cheio de dificuldade, mas ele era um savant.
Alexsander: Sim.
Lucelmo: Depois do DSM-V, quando você tem a incorporação do Asperger como autismo, você muda completamente esse quadro. E aí, de alguma forma, a gente tem um predomínio 100% de expressões que são Asperger e que, do ponto de vista dramático, são muito interessantes para uma série de situações. Então, eu acho que isso só vai se resolver ou se amenizar com muita informação e acho que essa informação só é passível de ser entregue através de processos como o Introvertendo e vários outros mais claros e mais abrangentes do que os produtos midiáticos.
Alexsander: Concordo plenamente com a fala do Lucelmo. Quando a gente começou a ter contato com autismo, começou a pesquisar, a gente encontrava muitas pessoas trabalhando e investindo em coisas malucas, sabe? Vendendo terreno, vendendo casa. Eu vi muitas pessoas, eu fui testemunha ocular de muitas pessoas que perderam patrimônios atrás de curas. Eu não consigo julgar porque, na época, eu não caí nessa porque eu não tinha dinheiro, essa que foi a minha “salvação”. Mas a gente viu tanta coisa, tanta loucura que aí, discutindo em família, a gente decidiu que iríamos pelo o que a ciência tá falando, pelo o que tem embasamento. Então, a gente começou a se pautar pelo o que tava sendo estudado, pelo o que a ciência estava trazendo. Isso numa época que tava todo mundo dando chá e mandando o cabelo pros Estados Unidos e fazendo dietas loucas, dando dinheiro pra picareta, infelizmente. Quando Nicolas tinha 11, 12 anos, a visão das pessoas eram outras e a gente não tinha também tanto embasamento pra falar como cientista. Mas uma coisa que a gente não consegue escapar é a questão da comparação. E o que a gente sempre procurou não fazer é tentar não romantizar a coisa, esquecendo da dificuldade de todos. Por conta do espectro, você tem todo mundo aí sentindo isso. Desde a pessoa que tá dentro do espectro e até todas as pessoas que estão rodeadas a ela. Então, existe dificuldade em todas as esferas. Então, o que a gente sempre procurou quando éramos abordados em relação a isso, era sempre bater na tecla de que o importante era respeitar as capacidades. Respeitar as limitações, valorizar as capacidades, as potencialidades e nunca desistir do ser humano, nunca desistir do indivíduo, da criança, do adolescente e também do adulto.
Willian: Eu concordo perfeitamente com duas pontuações, sobre serem realmente desafios diferentes e também sobre a necessidade de se esforçar para não romantizar o autismo. Em uma das minhas palestras eu, inclusive, até deixo bem explícito que eu não gostaria de ser tomado como um exemplo. Pois por mais que eu me veja como um um autista plenamente desenvolvido, como eu geralmente refiro a mim mesmo, eu analiso o meu caso e o interpreto como um caso de sorte, infelizmente. Porque realmente é muita coisa a se fazer para a inclusão, para oferecer tratamento de qualidade para as pessoas. E ao mesmo tempo eu realmente sinto um enorme desafio da gente conseguir entender que esses desafios e essas demandas no espectro do autismo podem ser diferentes, dependendo de qual autismo a gente está falando. Por mais que exista um espectro, a gente tá falando de demandas, desafios diferentes, intensidade de tratamentos diferentes. E, ao mesmo tempo, as pessoas que estão no espectro do autismo também e que são considerados autistas leves, muitas vezes também precisam de apoio e vão continuar precisando de apoio para questões mais complexas e que também não podem ser negligenciadas, o que infelizmente pode acabar acontecendo e o que também gera conflitos. Então, eu achei bem legal tudo o que a gente discutiu aqui, porque eu acho que a gente pode esclarecer um pouco mais sobre esses pontos.
Tiago: Eu tô na comunidade do autismo há sete anos, eu acho que o Willian tá mais ou menos no mesmo tempo… qual é o nosso papel enquanto autistas dentro dessa comunidade que tem tantas pessoas diferentes interessadas no tema?
Lucelmo: Vish Maria, essa pergunta é difícil. Eu acho bem difícil, porque isso é igual a ideia do espectro. Isso não dá pra definir num papel específico. Acho que tem muita gente que tem diferentes talentos, diferentes ênfases, diferentes formas de abordar isso. Eu reflito muito sobre isso. Essa é uma das coisas das quais eu mais penso. E a grande questão é a seguinte: nos últimos anos, há a discussão de que as pessoas com deficiência protagonizarem, enfim, terem o papel central das discussões sobre a condição. Eu acho que um discurso faltava quando a gente falava de autismo, que são as pessoas com autismo dizendo como elas sentem esse processo, como elas sentem essa existência. Eu acho que a gente conseguir ouvir também essa percepção é algo que complementa, é um enriquecimento da nossa compreensão do fenômeno. Nós temos uma compreensão, digamos assim, analítico-científica, de várias naturezas, biológico, comportamental, tudo isso e essa dimensão de como se perceber neste processo é muito importante. Mas ao mesmo tempo eu sempre considero muito importante o reconhecimento disso de que o Willian falou. Quem está fazendo conteúdo é um exemplar, mas não é uma amostra. Não é no sentido de dizer: “olha, o seu filho pode ficar assim”, porque nós temos muitas formas de ser dentro desse espectro. E isso é muito delicado. Eu sempre vejo pais falando assim: “puxa, depois que eu vi fulano eu percebi que o meu filho vai ter um futuro bom”. E aí eu tenho preocupação de como ela se comporta quando ela chega a essa conclusão que não é verdadeira.
Alexsander: Realmente tem uma linha muito muito sensível que divide isso. Mas eu acho que o caminho, na minha opinião, sempre vai ser informação. Então, sempre levar não como modelo propriamente dito, mas como exemplo. Então, assim, eu sou um cara aqui que tá representando, mas eu não sou modelo, até porque o espectro é amplo e nós somos diferentes. Nós somos indivíduos, somos diferentes, cada um é um, o Nicolas fala muito isso. Ele fala: “respeita a minha história porque você não é obrigado a gostar do que eu tô falando ou a concordar com tudo que eu digo, mas respeita a minha história porque eu vou respeitar a sua independentemente de qualquer coisa”. Então, eu acho que quando a gente tem essas essas frentes como o Introvertendo, outros canais, outra galera que tá fazendo conteúdo, cara, as vezes não é nem tão tão de acordo com aquilo que a gente concorda, mas democraticamente eu acho que todo mundo tem que expor sua opinião, eu acho que tá aí pra todo mundo ter a mesa farta e poder colher. Cara, é muito claro uma coisa: meu maior objetivo era ter meu filho feliz. Quando a gente começou a desenvolver, trabalhar essas questões do Nicolas, para que ele tivesse o mínimo, o mínimo de convívio social, que ele pudesse ter o mínimo de comunicação, ainda que fosse emitindo algum tipo de som, eu cheguei assim muito, muito chateado, muito triste pra minha esposa. Falei: “olha, a gente tá fazendo isso com o Nicolas aqui, tá trabalhando esse desenvolvimento com ele, mas não vai adiantar absolutamente nada, porque ele vai sair pro mundo e o mundo vai destruir ele. O mundo vai engolir o nosso filho”. E a Anita, muito sabiamente, pegou na minha mão e falou assim: “então, nós vamos fazer o seguinte: nós vamos continuar tentando desenvolver o nosso filho aqui, trabalhando com ele dentro de casa e aí nós vamos sair pro mundo para também tentar mostrar pro mundo, tentar levar informação pro mundo pra eles aprenderem a receber o nosso filho”. Então, eu acho que o X dessa questão, na minha opinião, vai ser sempre informação, sempre educação, levar o máximo de informação possível. Por isso que a gente tem ter essa de ter essa comunicação e entender um caminho comum para todos. E eu acho que isso honestamente a gente nunca vai ter, cara. A gente vai ter frentes que vão conseguir, que vão brigar, que vão levar informação e que vão fazer a diferença. Mas assim, uma união geral eu não vejo, vejo que vai ter muitas muitas frentes fazendo, ora fazendo coisas muito boas, ora fazendo coisas que de repente não vão agradar a todos, mas levando sempre essa questão da informação.
Tiago: Alexsander e Lucelmo, muito obrigado pela participação de vocês aqui no Introvertendo. Até mais.