Introvertendo 117 – Seletividade Alimentar

Muitos autistas, especialmente na infância, demonstram ter restrições alimentares razoáveis ou extremamente severas, o que pode ser encarado por pessoas distantes como uma simples frescura. Mas a verdade é que a seletividade alimentar é um fenômeno conhecido e que traz vários desafios para autistas. Neste episódio, voltamos ao nosso período de infância e contamos como é lidar com essas restrições na vida adulta. Arte: Vin Lima.

Participam: Luca NolascoMariana Sousa e Paulo Alarcón.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Luanda Queiroz, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Apple PodcastsSpotify | DeezerCastBox | Google Podcasts e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Luca: Seja bem-vindo ao podcast introvertendo. Eu sou o Luca Nolasco e dessa vez eu vou apresentar. Temos aqui conosco a Mariana Souza….

Mariana: Olá, eu sou a Mariana Souza, sou integrante do Introvertendo e me descobri recentemente dentro do espectro autista.

Luca: E o Paulo Alarcón.

Paulo: Olá pessoal, eu sou o Paulo Alarcón, tenho 29 anos e houve um tempo em que só comia macarrão.

Luca: Como vocês sabem, o Introvertendo é um podcast formado por dez autistas e hoje o episódio é sobre seletividade alimentar. É um tema que envolve em geral muitos autistas e também é um dos temas mais pedidos por vocês para falarmos. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por dez autistas e uma produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Luca: Agora vamos falar sobre hipersensibilidade alimentar e eu acredito que o Paulo pode fazer uma introdução sobre isso melhor do que eu, então vou deixar ele falar.

Paulo: A questão da seletividade alimentar tem ligação muito forte com a questão da hipersensibilidade sensorial. Quando ela acontece no paladar, é muito comum que a gente tenha uma certa aversão a sabores, cheiros ou texturas de alguns alimentos e uma afeição, uma tendência a procurar outros sabores ou texturas.

Luca: Sim, uma das características principais da hipersensibilidade é essa questão de aversão a sabores ou texturas que tendem assim pra todo mundo. Depois do primeiro ou do segundo contato, as pessoas que não são neurodivergentes tendem a aceitar mais fácil, a conviver mais fácil, e pessoas autistas geralmente podem ter essa dificuldade. Pode ser que pessoas autistas com hipersensibilidade aprendam a conviver perfeitamente com sabores mais cítricos ou algo assim, mas no geral é algo que precisa ser trabalhado com a própria pessoa, porque pode acontecer dela simplesmente não aceitar.

Mariana: No meu caso, eu não sei se é realmente seletividade alimentar, mas eu tenho muito essa coisa de ter uma rotina estrita até com as coisas que eu como. Se eu como uma coisa, por exemplo, se a minha mãe faz um doce ou alguma coisa que eu goste pra almoço ou jantar, eu quero comer aquilo todos os dias pra sempre. Tanto que faz algum tempo que eu comecei a beber suco de acerola e eu gostei bastante e eu tomo suco de acerola todos os dias desde então. Até as caixas do supermercado que eu compro polpa já perceberam que eu só tomo suco de acerola. A minha aversão maior em questão de comida é milho, tenho muita aversão a milho, a ponto de passar em frente a uma pamonharia e sentir vontade de vomitar e com texturas de comida. Eu tenho uma aversão a pessoas que misturam comida, pessoas que mergulham comida em outra coisa, por exemplo mergulhar pão ou biscoito no café ou pessoas que misturam comida, por exemplo, feijão, com com algum tipo de carne cozida. Isso me causa muito nojo e inclusive meus amigos fazem muita piada com isso. Mas assim, é uma coisa mesmo que chega a me dar arrepios mesmo.

Paulo: Tem alguns alimentos que são intragáveis pra mim. Detesto ervilhas e você pode colocar uma única ervilha na comida que eu vou saber que aquela comida tem ervilha. Não bebo, nunca bebi, já tentei tomar alguns goles de bebidas alcoólicas, mas não houve nenhuma que me agradou em diversos dosagens e eu sempre sei que tem álcool naquela bebida. Tem outras coisas também, essas são na questão do sabor, tem texturas também que me incomodam. A gordura da carne, aquele pedaço de picanha que tem a capa de gordura, eu acho a capa de gordura extremamente nojenta.

Luca: Então, se é pra falar de hipersensibilidade eu preciso dar meus pitacos, porque eu também tenho bastante. Comigo tende a não ser com gostos específicos, mas sim com comidas e a minha comida mais difícil, meu maior inimigo tem sido feijão, desde criança. A Mariana convive comigo e sabe que eu tenho uma experiência de quase morte quando ela abre feijoada, por exemplo, algo assim, porque até o cheiro me causa desgosto e me causa vontade de vomitar. É imediato, feijão e comidas com caldo, são uma aversão que eu tenho há muito tempo. Eu aprendi a conviver comendo feijão, só o caroço sem caldo, por mais que isso me limite bastante.

Paulo: Eu tenho uma certa aversão também de feijoada, tá? Não é exclusividade sua (risos). 

Luca: Falamos sobre seletividade alimentar, e eu quero focar um pouco na seletividade alimentar da infância, porque eu imagino que vocês não conseguiam conviver com ela, ela apenas acontecia, não tinha muita opção nisso. Vocês querem falar sobre isso?

Mariana: Como o meu diagnóstico já veio bem tarde, a minha mãe não tinha esse tipo de informação. Então, pra ela era basicamente birra, mas eu realmente não conseguia comer, estritamente só tomava leite com achocolatado todos os dias o dia inteiro. Então, ela tinha que realmente me obrigar a comer usando força física, muitas vezes ela pediu pro meu irmão me segurar pra ela poder colocar qualquer alimento na minha boca e eu comer normalmente. Com o tempo foi normalizando, foi uma coisa que foi diminuindo bastante, mas assim, até hoje eu realmente tomo muito leite, muito mesmo, eu tomo mais de vinte caixas de leite por mês. Hoje em dia, ela entende melhor e a gente se respeita mais, em questão disso, assim, ela evita fazer coisas que ela sabe que eu não como, melhorou bastante.

Paulo: Até algum momento entre três e quatro anos, eu não era muito diferente de outras crianças. De repente, eu comecei a rejeitar vários tipos de alimentos. Durante grande parte infância eu rejeitei muita coisa e eu peguei uma feição por massas. Todo tipo de macarrão, a lasanha e o que tem massas, principalmente se tiver queijo junto. Teve um tempo ali, acho que o período pior foi por volta dos seis, sete anos que eu fazia meus pais passarem vergonha quando ia visitar alguém porque eu não comia, eu suportava comer feijão se fosse só o caldo, mas não feijão em si. E até hoje eu tenho ressalvas com feijão (risos).

Luca: Falando nessa questão de vergonha, um dos fatores que mais me incomodava na minha alimentação alimentar era vergonha. Depois explico porque a minha alimentação era tão limitada, mas no ápice dela eu só comia miojo, por muitos anos eu só comi isso. Então, isso me afetou muito quando o meu vizinho me chamava para almoçar na casa dele ou de algum parente, porque eu tinha vergonha de admitir isso, eu tinha muito problema especificamente. Então, eu sempre dava alguma desculpa de: “Ah, eu já almocei, eu não tô com fome, eu tô doente”, mas eu não ia comer lá de maneira alguma. Porque eu não sabia o que ia fazer se ele colocasse um prato de arroz e feijão. Um dos fatores determinantes da minha limitação era o fato de que eu tinha intolerâncias diversas, eu tinha intolerância a lactose, a galactose, a sacarose, proteínas de carnes, tudo o que você imaginar, tava tudo lá. Então, as opções que eu tinha eram muito restritas. Uma delas era o macarrão e foi o que eu comi dos meus três anos aos nove. Hoje em dia eu já não tenho limitação alimentar, mas ainda tenho algumas sequelas dela. Algumas comidas simplesmente não consigo comer, por exemplo, buchada. A Mariana, inclusive se lembra de uma vez que teve buchada na casa dela, me tranquei no quarto, porque eu não dou conta de conviver com cheiro. Abóbora, texturas assim pra mim não consigo.

Paulo: Nossa, passei pela mesma coisa.

Luca: Comigo tem muitas comidas que eu não gosto, mas eu tento conviver, porque eu sei que ela é feita de uma maneira X, eu não consigo comer, mas se ela é feita de uma maneira Y, eu consigo. Então, por mais que eu não goste, eu me obrigo um pouco a fazer isso. Você tinha essa questão de negociar consigo mesma pra conseguir comer algo já na vida adulta, Mariana?

Mariana: No meu caso, a minha seletividade alimentar diminuiu bastante mas eu ainda tenho uma certa relutância com coisas novas. Sou muito apegada a minha rotina, inclusive as coisas que eu como nela. Tanto que todos os dias eu tomo café, eu como a mesma quantidade de pães, o mesmo suco, o mesmo almoço, sempre tudo igual, porque eu realmente gosto assim. Só que, em um momento da minha vida, eu acabei parando numa cozinha de um restaurante, quase como se fosse penetra mesmo e acabei trabalhando lá durante um tempo. E pessoas que trabalham em restaurante têm muito hábito de colocar comida na sua boca pra você adivinhar o que é a comida. Eu meio que, pra me misturar, acabei deixando as pessoas fazerem isso e eu acabei experimentando coisas maravilhosas, coisas que eu realmente nunca tinha visto, que eu nunca tinha comido e nem sabia que podiam virar alguma coisa comestível, como coisas simples que eu nunca tinha me dado ao trabalho de experimentar, como alface roxo, por exemplo, eu nunca tinha experimentado. A minha seletividade, quando eu paro pra pensar em quando eu era criança, era muito mais porque eu levava as coisas pro literal mesmo. De onde eu venho as comidas costumam ter nomes bem aleatórios, eu lembro que eu pensava que sarapatel era feito de sapato e pé-de-moleque era feito de criança, de pé de criança e eu ficava horrorizada vendo as pessoas comendo aquilo na maior normalidade, comprando e comendo crianças, sabe? Eu ficava chocada. Quando tinha canjica no colégio, eu via as pessoas comendo e lá a gente conhece canjica como chá de burro e eu pensava: “Meu Deus, as pessoas tomando chá de burro e cozinhando burro”, ficava horrorizada e isso me impedia de comer as coisas. Eu pensava que as coisas realmente eram o que eram, mas quando a minha mãe foi me explicando, eu percebi que não era tudo aquilo. E eu pensava: “Poxa, se todo mundo come, eu também vou comer”. E aí, eu experimentei, acabei gostando, inclusive, de todas as comidas que eu achava que eram feitas de partes humanas.

Paulo: Eu fui aprendendo na marra a comer as coisas, foi bem na terapia de choque. Com o tempo, eu fui criando algumas estratégias. Por exemplo, eu não sou um fã do feijão, eu não gosto de feijão. Porém, eu aprendi a conviver com ele. Pra comer feijão, eu preciso que ele esteja acompanhado de arroz, na proporção de oito para um de arroz para feijão, de preferência que o feijão tenha sido cozido com calabresa. Eu até hoje não superei o meu problema com ervilhas. Com a questão que eu falei anteriormente da gordura das carnes, existem certos cortes de carne que eu não como porque essa gordura fica impregnada. E outras, como o caso da picanha, eu separo. Eu não tomo nada alcoólico até hoje.

Luca: Eu até hoje tenho muita vergonha da minha seletividade. A Mariana fica me enchendo muito o saco, porque quando nos conhecemos eu bati no peito e falei: “Você pode jogar pedra em mim que eu como, eu como qualquer coisa, o que tiver de almoço eu como” e eu passava mal com qualquer tipo de sopa que ela me oferecesse. O que eu aprendi pra conviver com a minha seletividade já na vida adulta foi negociar comigo mesmo. Conhecer o que eu menos gosto, o que eu realmente não consigo comer, no meu caso são comidas de caldo e bom, eu evito coisas assim, mas comidas que normalmente são feitas de caldo, eu posso comer sem, como feijão, eu não como feijão de caldo, diferente do Paulo. Então, pra mim quanto mais duro tiver o caroço, melhor. Inclusive, eu percebi que eu gosto muito de grãos, eu gosto de ervilha, de arroz e de feijão.

Paulo: Também não consigo comer de tudo. Eu faço negociações internas de vários tipos. Houve um tempo que eu não comia tomate, eu passei a comer forçadamente, eu não gosto até hoje, mas eu tolero, porque eu sei que vai me fazer bem, assim como o caso de abóbora e alguns outros vegetais.

Luca: Inclusive, é um dos motivos pelo qual eu tenho aversão ir pra casa de estranhos é o fato de que as pessoas tendem a empurrar comida em você. Não importa se você gosta ou não, a pessoa, de fato, teve muito trabalho pra fazer. Então, quando você chega lá, ela te empurra um prato de bobó de camarão, que vai abóbora, não consigo comer e não tem como não aceitar. Nesses momentos, eu não sei o que fazer.

Mariana: Eu tô chocada com a seletividade de vocês, principalmente com a questão do feijão, porque eu adoro feijão, eu amo feijão e de onde eu venho a gente tem o costume de colocar a língua do boi para cozinhar no feijão e depois tirar, só pra dar o gostinho mesmo e também fritar pedaços da teta da vaca junto com o feijão. Então, assim, eu tô meio chocada com vocês. “Ah, eu não como um caldo, ah, eu não como um caroço” e eu pensando: “Meu Deus, eu como literalmente a língua”, sabe? Como um boi junto com o feijão.

Paulo: Assim, eu fui seletivamente pegando as partes que vieram mais interessantes como e tentando separar as partes pra mim não eram tão boas, né?

Luca: Como eu sei que este é um dos episódios mais requisitados por todos os ouvintes, eu sei que vocês com certeza tem histórias também pra contar. Então, por favor, se você quiser comentar sobre este episódio, falar sobre alguém que você conhece mesmo, que tem histórias de seletividade alimentar, por favor entre em contato e fale conosco, porque a gente quer ouvir sobre isso. Muitíssimo obrigado por ter ouvido o episódio e espero que você ouça na próxima semana. Obrigado, até mais.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: