Raquel Del Monde é uma figura rara da comunidade do autismo. Ela consegue criar pontes entre diferentes interessados pelo tema. No terceiro episódio da série Neurodiversidade, uma grande reportagem dividida em quatro partes, Tiago Abreu conversa com a neuropsiquiatra sobre diferença, níveis de suporte mais significativos do autismo, autodiagnóstico e suas visões sobre o movimento pela neurodiversidade.
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Transcrição do episódio
Tiago: Este episódio é o terceiro da nossa série sobre Neurodiversidade. Se você ainda não ouviu os dois primeiros, dá um play e depois volte aqui.
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Tiago: Em 2013, o cantor Dinho Ouro Preto virou piada quando twittou a seguinte mensagem: “Falta uma banda que una todas as tribos como foi o Norvana”. Todas as tribos são também divididas na comunidade do autismo. Se você parar pra pensar, ninguém, absolutamente nenhuma figura pública, é unanimidade entre nós. Mas se tem alguém que está muito perto de ser o “Norvana” da comunidade do autismo, é a neuropsiquiatra Raquel Del Monde.
Raquel lidera o Núcleo Conexão, uma equipe interdisciplinar que atua na avaliação e intervenção de transtornos de aprendizagem, desenvolvimento e autismo. Além disso, ela orienta a Comunidade Reinventando a Educação. Sua atuação se tornou ainda mais conhecida em todo o país após uma entrevista de destaque no programa “Conversa com Bial”, da Rede Globo.
Uma coisa que me impressiona é o quanto que seus textos nas redes sociais agradam diferentes públicos. Não tinha outra pergunta a fazer pra ela: Qual é o segredo dessa relação harmoniosa com autistas e familiares?
Raquel: Eu sou mãe de um autista de 21 anos. E quase tudo que eu aprendi sobre autismo aprendi primeiro dentro de casa. Foi a partir do momento em que essa questão entrou na minha vida que eu me aprofundei. E eu acho que a identificação é muito grande. Além do meu filho, eu vejo outros parentes que também estão no espectro e que nunca tiveram diagnóstico, alguns já falecidos e isso também me toca demais. Realmente eu tenho uma relação muito legal com autistas e com mães de autistas, é uma relação de muito carinho e de muita troca. Eu aprendo todos os dias e é tão legal, quando as vezes eu tô numa consulta, a pessoa começa a me contar alguma coisa e eu sei do que ela está falando com muita profundidade. Eu tenho hoje em dia grandes amigos autistas que eu fui conhecendo ao longo da minha trajetória e até mesmo pacientes. Eu tenho essa troca super rica, que é muito legal e que eu acho que faz bem pra todos nós. Então, eu acho que esse é o segredo.
Tiago: Raquel percebe a heterogeneidade como uma característica inerente à natureza humana, tanto no âmbito biológico quanto no neurológico. No entanto, segundo a médica, a sociedade ainda não reconhece essa diversidade em sua estrutura organizacional. Ela vê o ativismo dos autistas como algo essencial para valorizar a pluralidade e preparar as estruturas sociais para acolher a todos, independentemente de suas diferenças. Raquel argumenta que a homogeneidade não existe em nenhum nível e acredita que devemos celebrar as características únicas de cada indivíduo. Ela também compartilhou sua perspectiva sobre as críticas direcionadas ao movimento, inclusive vindas de pais de autistas com dificuldades mais evidentes.
Raquel: Eu vejo essas críticas que são frequentes, infelizmente, em grupos de autismo nas redes sociais, são críticas de pais de crianças severas com limitações muito grandes em relação ao movimento da neurodiversidade. E eu vejo que isso é a frustração deles que assume o comando dessa fala. Porque a gente entende que os cuidadores dessas crianças às vezes estão tão sobrecarregados com as suas dificuldades, com o impacto que cuidar daquelas crianças pode ter provocado nas suas vidas profissionais e conjugais. Então, a frustração é tão grande e pode envolver uma série de questões que eles estejam vivendo, como a dificuldade no acesso à terapia, uma escola decente, a um serviço que abrace aquela criança. Eu acho que daí elas acabam sentindo um rancor do movimento da neurodiversidade, como se ele fosse só pura e simplesmente: “vamos aceitar que é bom ser diferente”. O movimento da neurodiversidade não é só sobre ser bom ou ser ruim ser diferente. É pelo reconhecimento da nossa diversidade, em primeiro lugar, pela aceitação e pela busca de apoios adequados, então acho que falta esse entendimento. Também falta entendimento de que muitos dos suportes que nós desenvolvemos para as crianças graves só puderam ser desenvolvidos porque nós conhecemos por meio dos autistas que puderam expressar pra gente as sessões sensoriais, por exemplo, que foram reconhecidas como critérios diagnósticos. a partir do DSM-V de 2013, mas pra todos nós que já lidarmos com autismo antes disso sabemos da importância enorme, inclusive pra questões comportamentais, pra desregulação dos autistas. Porém, aqueles autistas que talvez não podiam se expressar, nós não iríamos saber o quanto talvez esses fatores fossem impactantes se não fossem os autistas que conseguem se expressar verbalmente terem elaborado melhor essa dificuldade. Muitas vezes não há esse reconhecimento de que muitos dos progressos que nós tivemos nos últimos anos no desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais eficazes foi graças a justamente ao fato dos autistas estarem usando a sua voz pra nos contar como é realmente estar dentro de uma condição que impõe essas limitações.
Tiago: Também existe uma crítica recorrente ao fenômeno que ocorre especialmente na internet de pessoas que se “autodiagnosticam” com autismo. Um dos pontos da discussão é o sistema psiquiátrico brasileiro, que, na avaliação de muitas pessoas, é inacessível à renda de grande parte da população. Raquel lembra de outros fatores a serem considerados nessa discussão.
Raquel: Existe essa busca por um diagnóstico, não só pela falta de acessibilidade, mas em muitos casos pela falta de conhecimento dos próprios profissionais. Parece que houve uma estagnação da formação. A gente vê que, mesmo com esse conhecimento que a gente tem acumulado hoje em dia que é muito grande, os ambientes de informação ainda acabam propagando aquela visão muito antiga do autismo de Kanner, de quadros muito graves. É uma dificuldade muito grande em interpretar os critérios diagnósticos de uma forma mais ampla, mais aprofundada. Mesmo as pós-graduações muitas vezes deixam a desejar. Infelizmente chegam a mim, em primeira mão, discussões em ambientes de informações que ainda ficam naquele esquema de: “Não, essa pessoa fala muito bem. Olha só, essa criança chega, abraça, beija, é muito carinhosa, não pode ser autista”. Há a questão também que antigamente se falava em 70% de deficiência intelectual nas pessoas autistas e, por incrível que pareça, isso ainda é replicado nos ambientes de formação. Então, se esses profissionais se deparam com alguém inteligente, bem sucedido, inclusive em alguma área, é quase como se isso fosse um fator de exclusão por si só. Então nós temos de um lado essa falta de formação profissional e acaba desanimando muita gente a procurar um diagnóstico profissional. Até porque às vezes essas pessoas já passaram por avaliações profissionais, se iludiram muito com isso, buscaram informações na internet, informações que pra elas, pra vida delas, pra entender as próprias dificuldades dos próprios desafios foram muito mais valiosos do que as avaliações profissionais. Então a pessoa acaba realmente desmotivando dia após dia. Agora, o acesso no sentido de que é um serviço caro também existe uma grande parte da população, mas por outro lado, o que eu vejo é que uma avaliação psiquiátrica é muito mais longa do que às vezes uma avaliação clínica comum. Então, de uma certa maneira, existe o fator tempo que deveria ser levado em consideração. Quando a gente pensa em convênios, por exemplo, uma consulta média de um convênio médico são 15 minutos de avaliação. É impossível você fazer qualquer tipo de avaliação bem feita na área de saúde mental, ainda mais numa área que exige tanta profundidade, tanto conhecimento como o autismo num tempo curto desse. É impossível. A minha consulta dura uma hora e meia e às vezes nós precisamos de várias consultas para fazer uma avaliação bem feita e pra chegar no diagnóstico e isso tem um custo também. Eu vejo isso como sendo um problema. Não dá pra fazer uma avaliação bem feita, um trabalho bem feito, num tempo muito curto. O custo é inevitável. A solução pra isso deveria ser então uma forma diferenciada de se planejar essas consultas na rede pública ou pelos convênios. Da maneira tradicional é impossível. Acho que vai ser um serviço extremamente insatisfatório pros dois lados, mas eu fico sempre pensando. É legal a pessoa ter um autodiagnóstico? Não, não é. Nós gostaríamos que todos tivessem avaliações adequadas, porque eu acho que não é legal de nenhuma maneira pra própria pessoa, porque ela mesma as vezes se sente uma fraude. “Quem fez o seu diagnóstico?” “Eu mesma”. Sem contar que ela perde todo o amparo legal do diagnóstico e tem a parte dela não ter tido uma avaliação bem feita, da maneira que ela mereceria que produzisse respostas adequadas pra vida dela. Então o ideal realmente seria não existir o autodiagnóstico, mas de minha parte eu entendo quando isso acontece. Porque a busca das pessoas pelas respostas não vai parar só pela dificuldade, ela precisa se entender.
Tiago: De fato, a maioria das pessoas enxerga a atual situação dos autistas no Brasil como desafiadora, o que torna o trabalho de Raquel ainda mais relevante em solo nacional. Ela compartilhou conosco um pouco sobre sua forma de trabalho.
Raquel: Nós tentamos muitas vezes estabelecer, sim algumas formas diferentes daquele atendimento que a gente chama estruturado um pra um no consultório, porque esse é um atendimento que sim é necessário em muitas fases da vida, mas a gente sente que ele não basta. A gente via as vezes o benefício que tem alguns trabalhos em grupos. Nós temos, por exemplo, um trabalho pioneiro que também é feito com crianças com dupla excepcionalidade, ou seja, aquelas com autismo e superdotação que são crianças duplamente marginalizadas na escola, tanto por as vezes não ter um suporte adequado para características do autismo e também para esse desempenho intelectual que é diferente. É a nossa psicopedagoga, a Fabiana Garcia, que faz esse grupo de dupla excepcionalidade. Então a gente tenta desenvolver trabalhos diferenciados para construir esse repertório maior. E a gente acredita, na verdade, que dá pra fazer mais coisas. Nós estamos numa cidade pequena, várias coisas que a gente tentou fazer não tiveram a adesão de pacientes, por incrível que pareça. É uma coisa que pra mim até foi surpreendente, porque as pessoas estão muito acostumadas com esse atendimento e estruturado um pra um. Mas a gente tá sempre buscando novas maneiras de fazer essa função de habilidades junto aos pacientes. Uma das coisas, por incrível que pareça, a gente teve de resistência de autistas, aqueles considerados mais “leves”, também não queriam estar em mesmos grupos que autistas.
Tiago: O conceito de mudança de mentalidade abordado por Raquel é um dos principais aspectos enfatizados pelos defensores da neurodiversidade, e a celebração do Dia do Orgulho Autista, que acontece amanhã, é um reflexo dessa nova perspectiva. Este é o tema do último episódio da nossa série.