O movimento pela neurodiversidade e o conceito de neurodiversidade é um tema complexo, notório e por vezes controverso dentro da comunidade do autismo. No primeiro episódio da série Neurodiversidade, uma grande reportagem dividida em quatro partes, Tiago Abreu (com locução de Luca Nolasco) apresenta o contexto histórico do ativismo de autistas, impactos positivos e também as principais críticas ao termo e ao movimento da neurodiversidade. Arte: Vin Lima.
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Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:
- Neurodivergentes – Autismo na Contemporaneidade
- Autistic Community and the Neurodiversity Movement: Stories from the Frontline
- Don’t Mourn For Us – Autism Network International
- NeuroTribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity
- Outra sintonia: A história do autismo
- NeuroDiversity: The Birth of an Idea
- Why the neurodiversity movement has become harmful
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Transcrição do episódio
Tiago: Você provavelmente já deve ter ouvido falar na expressão neurodiversidade. Mas sabe o que é isso? E você sabe o que isso representa pra comunidade do autismo, especialmente o Brasil? É o que vamos abordar nesta primeira grande reportagem do Introvertendo, dividida em quatro partes.
Eu ouço falar em neurodiversidade há quase 10 anos, desde que entrei na comunidade do autismo. Só que, em 10 anos, nunca vi esse assunto ser discutido numa perspectiva de Brasil, sabe? É um assunto que ainda soa muito obscuro e confuso até mesmo para as pessoas envolvidas no tema. Por isso, com essa reportagem, vamos traçar um histórico e apresentar as correntes que envolvem esse assunto.
Mas, pra começar, precisamos voltar a 1993. Uma pessoa autista chamada Jim Sinclair, que foi uma das figuras fundadoras da associação Autism Network International, publicou um ensaio on-line baseado numa conferência ocorrida em Toronto, com críticas ao movimento dos pais. Esse ensaio ficou conhecido como a declaração “Não chorem por nós”.
[Autismo é um jeito de ser. Não é possível separar a pessoa do Autismo. Por conseguinte, quando os pais dizem: “Gostaria que meu filho não tivesse Autismo” O que eles realmente estão dizendo é: “Gostaria que meu filho autista não existisse, e eu tivesse uma criança diferente em seu lugar”. Leia isto novamente. Isto é o que ouvimos quando vocês lamentam por nossa existência. É o que percebemos quando vocês nos falam de suas mais tenras esperanças e sonhos para nós: que seu maior desejo é que, um dia, nós deixemos de ser, e os estranhos que vocês possam amar vão surgir detrás de nossas.]
Tiago: A Autism Network International era a primeira associação de autismo organizada por autistas nos Estados Unidos. Antes disso, historicamente, o ativismo do autismo era exercido apenas por pais, ou por figuras como a Temple Grandin. Os primeiros autistas se sentiam fora das organizações de famílias e se reuniam em fóruns online para compartilhar experiências. Nessa época, as pessoas sem deficiência que adentravam esses espaços de autistas eram chamados de… neurotípicos. Mas ainda não é aí que surge o termo “neurodiversidade”.
É importante a gente diferenciar “neurodiversidade” e “movimento pela neurodiversidade”. Apesar de serem expressões parecidas, não, não é a mesma coisa. O “movimento pela neurodiversidade” é um termo diretamente ligado à maior parte dos ativistas autistas, enquanto o termo “neurodiversidade” é uma expressão criada por uma socióloga chamada Judy Singer e pelo jornalista Harvey Blume, no final dos anos 90. E, obviamente, o conceito ganhou espaço dentro da comunidade e se tornou referência para todo aquele ativismo. Se já é um pouco difícil de entender a princípio, calma, o cenário da época era mais confuso ainda.
Dos anos 1960 até o final da década de 1990, o ativismo pelo autismo foi uma missão exercida por mães e pais. Mas em 1993, Sinclair argumentava que a imagem do autismo projetada pelo movimento dos pais, em geral, era permeada pela tristeza e considerava que o autismo era algo errado na vida dos filhos.
Mas a interação autista nos fóruns da internet trazia um cenário bem diferente. Judy Singer, como mãe de uma menina autista, começou a se aprofundar nos estudos da deficiência do Reino Unido e dos Estados Unidos. E da Austrália, começou a frequentar o fórum Independent Living Mailing List, um espaço aberto para autistas e pessoas com outras condições, como o TDAH.
Foi aí que ela começou a pensar: e se isso, na verdade, refletir a emergência de um movimento social de respeito à diferenças neurológicas? A neurociência estava em alta, as explicações da psicanálise sobre o autismo já tinham caído por terra, e os estudos da deficiência cada vez mais se articulavam com questões de gênero, classe e raça – algo que hoje a gente chama de interssecionalidade.
Foi lá que ela conheceu o jornalista norte-americano Harvey Blume. Entre conversas, Judy sugeriu o termo “neurodiversidade”, que ele utilizou em um de seus textos no The Atlantic. E no seu TCC, Judy definiu o que seria essa tal neurodiversidade. E o que era?
Judy sempre viu a neurodiversidade como um termo irmão da “biodiversidade”. Assim como a biodiversidade é a diversidade biológica das espécies, a neurodiversidade seria a diversidade neurocognitiva da população humana. Isso em 1998.
Mas naquele mesmo ano de 1998, um médico chamado Andrew Wakefield publicou um artigo desastroso que relacionava a vacina de MMR com o autismo. Era o ápice de uma relação conturbada com as origens do autismo e a visão melancólica de muitos pais acerca do transtorno. Na década de 1990, várias organizações pró-cura, com slongans como “Derrote o Autismo Já”, eram o mote de críticas de autistas como Sinclair. E, na década de 2000, monopolizando a pesquisa de tratamentos acerca do autismo, surgiu a organização Autism Speaks, com afirmações como “Essa doença arrebatou os nossos filhos. É tempo de recuperá-los”.
Já no furacão do meio do autismo, o movimento antivacina chegou a incomodar o Estado nos anos 2000. E aquela associação norte-americana, a Autism Speaks, demorou a se posicionar contra a polêmica das vacinas, com medo da reação dos pais. Nesse cenário, um jovem autista chamado Ari Ne’eman fundou a Autistic Self-Advocacy Network. Ele tomou emprestado o lema das campanhas dos direitos das pessoas com deficiência da década de 1990, o “Nada sobre nós sem nós”. A entidade queria garantir que a voz dos autistas fosse ouvida nos debates sobre políticas e nos corredores do poder. E quando autistas e pais se encontraram na corrida pelas políticas públicas, as tensões ganharam novas formas.
Apesar disso, o movimento pela neurodiversidade continuou a ganhar adeptos na década de 2010 e impactou diretamente a forma pela qual vemos o autismo hoje. Ari Ne’eman e o psicólogo autista Steven Kapp foram consultados pelo grupo de trabalho e pelos editores do DSM-5 (o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Foi nessa época que aprovaram o Transtorno do Espectro Autista, uma definição mais abrangente de autismo, que entrou em vigor em maio de 2013.
Em 2015, o livro Neurotribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity, do jornalista Steve Silberman, foi a primeira obra de sucesso a abordar a história do autismo. Um dos destaques desse livro é a abordagem pró-neurodiversidade de Silberman, que deu nova popularidade ao movimento. No início do ano seguinte, o livro In a Different Key, também sobre a história do autismo, foi lançado, com críticas ao movimento da neurodiversidade. Portanto, as disputas são abrangentes, em todo tipo de mídia e de ativismo.
E talvez você se pergunta: Mas por que?
A discussão sobre como vemos o autismo envolve uma questão filosófica e epistemológica. Mas além disso, os recursos do Estado são escassos e a vida das pessoas, obviamente, encurta a cada segundo. Assim, você precisa fazer escolhas. Investir o seu esforço para a busca de tratamentos que vão mudar radicalmente realidades a longo prazo ou investir todo o esforço para tornar a vida das pessoas melhor aqui e agora? E é por isso que tanto os movimentos pró-cura quanto os pela neurodiversidade conflitam entre si.
Você já deve ter ouvido autistas falarem que não querem ser chamados de anjos azuis e que o azul não os representam como cor. Também já deve ter ouvido a partir de familiares que os autistas adultos ativistas vão atrapalhar o desenvolvimento de seus filhos proibindo terapias. Não é difícil encontrar críticas ao movimento pela neurodiversidade e, aqui, vou citar as cinco críticas mais comuns.
A primeira crítica é comum tanto a ideia de neurodiversidade quanto ao movimento pela neurodiversidade. Ela é um questionamento da falta de delimitação do que seria uma diferença positiva e negativa. Sobre isso, Judy Singer afirmou que sua ideia de neurodiversidade não foi compreendida corretamente por parte das pessoas por causa do termo “natural”. Mesmo que toda diferença seja natural, Judy não quis dizer que ela seja sempre boa.
A segunda crítica é direcionada aos autistas ativistas. Pais e profissionais costumam afirmar que autistas pela neurodiversidade são, em grande maioria, autistas com Síndrome de Asperger e, portanto, não possuem as mesmas demandas de autistas ditos “severos”. Existem dois tipos de respostas de autistas a este argumento: O primeiro argumento em resposta de alguns ativistas autistas é que suas lutas são feitas para que autistas diferentes se expressem, e o segundo é que existem autistas não falantes no movimento.
Também existe a crítica de que o movimento pela neurodiversidade seria excludente e autoritário. Excludente, no sentido de que seus integrantes supostamente não aceitam críticas de outros autistas que discordam de seus posicionamentos. Autoritário, segundo a fala de alguns pais nas discussões sobre a criação de seus filhos. Os ativistas se defendem afirmando, que, por exemplo, nem toda mulher é feminista e que autistas tem uma maior experiência com o autismo em comparação a pais.
A quarta crítica, e talvez a mais polêmica de todas, se centra na relação entre o movimento da neurodiversidade e a Análise do comportamento aplicada, a famosa ABA, uma ciência de larga popularidade e aceitação na comunidade do autismo, e que é alvo de críticas de autistas ativistas. Muitos justificam que a ABA é uma prática para “robotizar” o comportamento de autistas e de torná-los “menos autistas”. Estudiosos da ABA afirmam que a prática é a que mais possui evidências para a melhora da qualidade de vida para autistas e que autistas ativistas geralmente não sabem do que estão falando.
Em resposta, alguns ativistas se baseiam no trabalho de Ivar Lovaas, que chegou a aplicar choques elétricos em crianças autistas para alcançar seus objetivos, e de outros históricos de violência a autistas em instituições que trabalham com ABA, como o caso do Judge Rotenberg Educational Center, nos Estados Unidos.
E, nisso, defensores da análise do comportamento aplicada geralmente afirmam que Lovaas contrariou princípios e recomendações básicas da ciência. Ou seja, usou punição em suas intervenções, o que não é bem visto por Skinner, que é o teórico mais influente da análise do comportamento. Bem, é um assunto muito longo, melhor falarmos sobre isso em um futuro episódio.
A quinta e última crítica se centra na forma como o movimento da neurodiversidade interpreta e se relaciona com a ciência. Alguns críticos do movimento afirmam que os autistas ativistas não têm compromisso com as evidências científicas. Isso inclui tanto a defesa de práticas historicamente desacreditadas, como a comunicação facilitada, um discurso sobre comunicação alternativa supostamente fora da realidade, e um conflito de interesses referente a como a ciência deve encaminhar seus estudos sobre o autismo. Ou seja, muitos críticos afirmam que parte dos autistas ativistas pela neurodiversidade não tem o rigor em temas que dizem respeito a ciência e a realidade. Esta crítica é, talvez, a mais recente e complexa, e ainda não foi respondida pela maioria dos ativistas.
Mas, apesar de todas as críticas, a neurodiversidade ganhou a comunidade do autismo de forma que, em 2020, elementos do movimento estão por toda a parte. Em fevereiro deste ano, inclusive, a polêmica Autism Speaks anunciou uma nova identidade visual com várias cores, e chegou a atender a reivindicação de autistas para usar a expressão “pessoas autistas” ao invés de “pessoas com autismo”.
E para um melhor entendimento sobre quais são os posicionamentos e como é ser um autista ativista, é importante ouvir o que os autistas têm a dizer. Por isso, no segundo episódio da série Neurodiversidade, a conversa é com três autistas que fazem ativismo aqui no Brasil.
Vamos falar como a comunidade do autismo brasileira entende a neurodiversidade e quais têm sido os principais posicionamentos dos brasileiros que militam pelo tema. O lançamento é amanhã! Até logo!