Introvertendo 06 – Um Papo com Álvaro Oiano

Álvaro Oiano é um jovem aspie, residente em Goiânia, e voluntário em projetos de autismo. Ele participou de uma mesa-redonda durante a disciplina de Educação Inclusiva, ministrada na Faculdade de Educação (FE) da Universidade Federal de Goiás (UFG), juntamente com Rosalina Oiano (sua mãe), a professora Ana Flávia Teodoro (responsável pela disciplina) e Tiago Abreu, único membro do Introvertendo que participa deste episódio.

Nesta gravação, são contados aspectos da história de vida de Álvaro, como a descoberta do diagnóstico tardio, os sentimentos da mãe perante suas especificidades, e os projetos que desenvolve. O evento em si era focado tanto na vida de Álvaro quanto de Tiago, mas para o podcast, foram destacadas as falas de nosso convidado.

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Assista também a reportagem da Record Goiás que destaca o trabalho voluntário que Álvaro desenvolve com tampas de plástico:

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá, você que ouve o podcast Introvertendo, mais uma vez, mais uma semana de episódio, meu nome é Tiago Abreu e hoje nós temos um conteúdo especial para vocês, baseado numa disciplina chamada Educação Inclusiva, ministrada aqui na Universidade Federal de Goiás, numa espécie de roda de conversa. E hoje estou aqui com o Álvaro Oiano, que juntamente com o pessoal aqui vai falar um pouco sobre autismo, síndrome de Asperger.

Álvaro: Bom dia pessoal, sou o Álvaro, tenho vinte anos, sou portador da síndrome de Asperger, que é a síndrome que está dentro do espectro autista, fico muito contente de estar presente na aula de hoje, porque é a primeira vez que eu vou falar assim, com essa quantidade de gente, vejo que eu estava um pouquinho inseguro, mas igual a Ana Flávia falou, não precisa, tudo tranquilo, relaxa, eu estou bem melhor do que eu imaginei.

Tiago: E a gente também com a com a dona Rosalina, que é mãe do Álvaro, aqui ela também faz um trabalho muito legal com voluntários da turminha. Então, ela também vai tá falando um pouco dessa experiência de ter família de uma pessoa que tem autismo. E também, não poderia deixar de falar que entre nós, tá a professora Ana Flávia, que é da Faculdade de Educação da Federal de Goiás, que ministra a disciplina de educação inclusiva. E com vocês, mais um episódio do Introvertendo.

Bloco geral de discussão

Álvaro: Meu autismo foi descoberto pelo comportamento diferente que eu tinha, mas a gente não sabia bem o que era. Minha mãe estava tentando descobrir, porque eu era muito pequeno, tinha alguns meses, percebi que eu chorava muito, chorava demais, mas pra certas coisas eu era até muito ativo, daí ela até pensava.

Rosalina: Essa diferença que nós tamo comentando, ela apareceu muito cedo, porque eu tenho um filho maior que ele, mais velho um pouco que ele e nada do que eu passei com o outro acontecia, então aquele choro intenso sem parar o tempo todo, aquilo me despertou, falei, gente, não é possível uma criança chorar desse jeito, sem parar. Ele não tinha um comportamento normal que os outros. Ele andou e falou aos 11 meses, mas ele só andava com a ponta dos pés. Ele parecia um bailarino. Aquilo também me incomodava e não havia meios do Álvaro andar todo no chão. Ele não encostava na terra, na areia, o outro brincava, eu colocava ele, ele encolhia as pernas e não tocava na sujeira ali, de jeito nenhum. E isso foi crescendo. E quando ele tinha dois anos de idade, eu tive total certeza dessa diferença, porque eu levei ele pro cinema, ele ajoelhou na poltrona, ficou virado pras pessoas o tempo todinho de costas pra tela e olhando as pessoas. Ele tem fascínio por gente, que é uma característica anormal pra eles. Ele gosta muito de gente, e isso eu passei a prestar mais tensão ainda. Então, é diferente, mas o que que ele tem? E aí, começou aquela batalha muito intensa, foi pra escola pequena, a escola devolveu. E aí com psicóloga, com psicopedagoga, desde pequenininho. Ele começou muito cedo. E aí, um dia, por acaso, graças a Deus, num consultório de dentista, no final de semana, com uma dor intensa que eu tive num pronto-socorro na cidade do interior de Goiás, porque eu estava na casa do meu irmão. Descobri, a doutora Maria das Graças. Quando eu contei pra doutora Maria das Graças, eu contei, ela nem viu o Álvaro. Isso ele já com quase nove anos, né filho? E eu contei pra ela o comportamento do Álvaro. Gente, a consulta durou duas horas. Quando eu terminei de contar tudo pra ela, ela olhou que ele era Asperger. Eu falei, “mas a senhora nem viu o menino”. “Mas ele é, só que eu não vou fechar o diagnóstico. Nós vamos fazer um monte de exames”. E aí começou. Quase oito meses após, fechou o diagnóstico. Então, eu já tinha passado, não sei contar pra vocês quantos médicos, quantos terapeutas já tinha andado. São Paulo, Uberlândia, Ribeirão Preto, e graças a Deus, com a descoberta dela, a gente começou com terapias e a gente tá até hoje nesse processo. Aí depois eu fui saber, gente, que eles porque as coisas pra eles são muito intensas. Tudo pra eles é muito forte. Ele chorava porque se ele sentia uma dorzinha, ele transformava aquilo não sei em quantas dores, né. Aquela sujeira no pé incomoda. Até hoje, ele não pisa no chão sem meia, sem de meia, não, nem de meia. Nem de meia. Ele sai do box no tapete, lava o pé de novo, seca o pé, bota no chinelo, aquele, não é filho, tem uma, é até um pouco de toque.

Álvaro: Bom, aqui em Goiânia, eu mudei pra cá em janeiro de 2010, eu já ia completar meus doze anos. Estudei numa escola que fica lá no Setor Bueno, perto de casa, que se chama Silvia Bueno. Lá não vou dizer que é uma escola ruim, mas pra quem precisa de atendimento paralelo, pra quem tem alguma diferença, lá não é uma escola boa porque eles não são preparados para acolher esse tipo de gente, vocês entendem? Fiquei lá por dois anos. Em janeiro de 2012, eu fui pro colégio Eduardo Marques, que eu indico pra qualquer pessoa. Lá é bom pra quem tem qualquer diferença, até pra quem tem nenhuma, é ótimo. Fiquei lá do oitavo ano até o terceiro ano do ensino médio.

Ana Flávia: Eu acho que é um privilégio também, a gente tá podendo ouvir o Álvaro e o Tiago, uma das coisas que eu aprendi. Ao longo dos meus estudos de mestrado é que a gente precisa dar voz às pessoas e não falar por elas. Então, eu acho que esse é um grande problema, eu acho que, por isso, as autobiografias de autistas podem ajudar, talvez, mais do que esses médicos, que falam sobre o autismo. Então, assim, acho que hoje a gente tá tendo uma oportunidade ímpar de ouvir deles mesmos os relatos e saber um pouco mais. E aí a pergunta que eu tinha feito pro Álvaro era, por que que você achou que essa escola foi tão importante na sua vida, assim?

Álvaro: Porque lá tem um ensino muito bom, os professores são ótimos de lá, aprende tanta coisa, todos os professores perceberem isso em mim, falou, Álvaro, do dia que você entrou aqui até o dia que você saiu, você desenvolveu cem por cento, ficou muito melhor. Eu falei, pois é. Senti que eu fiquei melhor em tudo e até com os colegas, eu me sociabilizei muito bem, que ela é uma escola muito tranquila, lá não tem nada de bullying, essas coisas de jeito nenhum, é uma coisa que atrapalha demais na vida

Rosalina: Nós sofremos horrores, horrores. Ele sofria, eu sofria junto. E essa escola que o Álvaro tá falando, ela teve esse cuidado, as pessoas cuidavam muito pra que ele não sofresse isso. Ensinavam os outros alunos a não praticar isso. E também foi acessível, porque ela aceitava um plano que a pedagoga fazia paralelo. Eu levava esse plano pra escola e a escola aceitava aplicar esse plano com ele, para que ele pudesse ficar inserido na escola, mas com coisas paralelas. Porque muitas matérias, ele não fazia matéria da escola, ele fazia isso matérias e a escola aceitou isso e abraçou isso de verdade, eu acompanhava a psicopedagoga, acompanhava, ela visitava uma vez por mês na escola e via a aplicação deste plano. Então, ele ia pra escola, depois ia na psicopedagoga e ela via o acompanhamento do plano que ela tinha traçado pela escola. A escola aceitou fazer e fez direitinho e a parte social da escola, ela também cumpriu muito bem. Isso pra mim foi maravilhoso, porque até então, o processo do bullying machuca, muito, isso fez parte, faz da vida dele até hoje, ele ainda tem reflexo desse bullying sofrido e uma coisa também que me chamou atenção aqui quando o Tiago falava agora, os dois são Asperger. E os dois são tão diferentes em algumas coisas e tão parecidos em outra. O Álvaro não tem esse lado do Tiago da pesquisa e dessa interpretação que o Tiago tem, o Álvaro não tem este lado, de retenção da leitura. A leitura que o Álvaro retém é exatamente aquelas muito específicas, né filho? Que ele gosta muito, quando ele gosta muito de um assunto, aí retém. E são normalmente coisas assim, estranhas, não são assuntos do dia a dia, são assuntos bem esquisitos, a pessoa mais gorda, a pessoa mais a pessoa mais alta, a mais baixa, sabe? São, assim, extremos, são interesses específicos. E o Tiago contando agora, falei, nossa, ele correu atrás de tudo isso, né, sozinho? O Álvaro não tem esse lado, o Álvaro tem um outro lado, mas não tem esse. Eles são a mesma síndrome e coisas totalmente diferentes. E é interessante porque o Tiago também tem os interesses específicos pra ele.

Tiago: Eu achei bastante interessante essa questão do bullying porque eu fui alvo de bullying assim, até o final da adolescência, na nas diferentes instituições que eu estudei e os bullyings eram muito pesados, eram pancadas, jogar lata de lixo, coisas assim, isso teve um impacto muito negativo assim na questão pessoal, quanto na questão do desempenho acadêmico.

Ana Flávia: Como é que você acha que a escola poderia atuar para minimizar esse bullying?

Tiago: Eu não sei exatamente qual é a forma, mas a escola ela lidava, muita das vezes me jogando a culpa. Por exemplo, quando eu estudava no no ensino do ensino fundamental e eu vim de Minas pra cá, o pessoal chamava a minha mãe toda semana pra escola, reclamando do meu comportamento, dizendo que eu era arrogante, que eu evitava as pessoas e tudo mais. Só que o que acontecia, geralmente, era que as pessoas me odiavam e eu não sabia o porquê. Então era uma misantropia, digamos assim, meio que mútua. Não sei explicar, assim, muito detalhadamente.

Ana Flávia: Cê queria falar sobre algum episódio de bullying que você viveu, que foi marcante pra você?

Álvaro: Bom, nessa escola aí que eu tinha estudado, Silvia Bueno, por exemplo,os meninos costumavam fazer muita chacota comigo, costumava irritar demais, sabe? Fazer brincadeira muito sem graça, tinha dias que eu até enlouquecia, falava por coordenadora, não adiantava nada, que ela não sabia impor limite, era desse jeito, porque eu era o comportado da sala, vamos dizer, já que ele é comportado, vamos irritar, que eu principalmente que algumas coisas até nos marcam. Tudo bem que eu não cheguei a ter, como posso te dizer, trauma, que tem gente que fala que até adoece, tem que ir no médico, mas eu não cheguei nesse ponto, mas feriu bastante internamente. Eu aprendi a ler e escrever com seis anos, normal, entrei no pré, igual todos da minha idade, mas nessa época eu estudava lá em Uberlândia, num colégio muito católico, colégio muito bom, que já tem mais de oitenta anos, eu aprendi assim a ler um pouquinho só de dificuldade, mas igual a sala inteira foi. Quando eu entrei pro segundo ano do fundamental, que antigamente era chamado de primeira série, eu lembro que eu fui assim, um dos que mais já sabia ler e escrever, fui praticamente primeiro. Nesse ponto da alfabetização, depois que eu soube, fiquei tranquilo, mas na hora que eu entrei, eu sofria. O pré foi a série que eu mais sofri, porque aprender a ler e aprender a escrever não é fácil.

Ana Flávia: Não é só você, não. Todo mundo sofreu (risos). Cês tão vendo, né, pedagogos?

Álvaro: Chorava muito na sala de aula, chorava porque eu falava, professora, eu não dou conta, ela você dá conta, você vai conseguir, eu falava, num vou. Quando viu, eu dei conta.

Rosalina: Pode ser um colégio católico que ele tá citando que ele vai contar aquele aqui agora, mas ele já passou por colégios evangélicos, esse fato de ser colégio católico foi uma coincidência, mas não foi procura de colégio específico também não.

Álvaro: Bom, eu estudei nesse colégio católico de dois mil e um até junho de dois mil e quatro, ou seja, do maternal até metade do pré. E depois eu saí, porque tive que mudar aqui pra Goiás. Lá, eu chorava muito na hora de ir pra escola porque eu não queria. Eu achava que a escola era a pior coisa. Aí, tinha uma freira lá, que hoje ela tem oitenta e quatro anos de idade. Eu tenho contato com ela no Face até hoje, converso com ela até hoje. Faz quatorze anos que eu saí de lá, ela lembra de mim direitinho, trabalhou lá na escola quase quarenta anos. Na época, quando eu tinha três aninhos, por exemplo, ela já tava com sessenta e sete anos, ela que ia lá no carro me pegar, falava, calma, cê vai conseguir, eu ia no colo dela, ela que me acalmava tudo, era impressionante, até hoje eu converso com ela direto. E ela lembra muito de mim, sinal de que me acolheu muito bem. E aí, vocês percebem também que pra eu me relacionar com pares da minha idade, eu sempre tive dificuldade, tenho até hoje, mas pra relacionar com gente mais nova, me relaciono muito bem, com gente mais velha. Na minha época escolar, eu tinha algo muito assim nesse sentido, então, horas do recreio, pra eu não ficar perdendo tempo sozinho, eu ia com as tias da limpeza. Eu ficava o tempo inteiro conversando com elas, sabe?

Ana Flávia: Sobre esse relacionamento com os colegas, hoje, você tem amigos da sua idade, Álvaro?

Álvaro: Eu tenho conversado pelas redes sociais só com eles, mas sair junto, não.

Ana Flávia: E o que que te incomoda em sair junto mesmo?

Álvaro: É que às vezes eu chamo eles não tão assim, cê entende? Daí a gente acaba desistindo muito rápido, tudo fica desse jeito.

Rosalina: O problema não tá no Álvaro com os meninos, é dos meninos com Álvaro, porque ele chama, é os outros é que não se interessa pela maneira de ser do Álvaro, ele sabe disso, a gente conversa sobre isso. Acho que os assuntos não atrai os amigos, não fecha a roda, sabe? Ele até que insiste e eu também dou muita força, quer trazer pra cá, chamo pra cá, mas não há esse, então o, aqueles que, que, que, que existem ainda, que tão poucos, são aqueles da época da escola que eram aqueles mais compreensíveis, sempre tem aquela, aquela menina ou aquele menino que são mais compreensíveis, eles fazem uma ponte entre eles e o resto. Não sei se o Tiago lembra disso, o Álvaro teve aqui no Eduardo Marques foi a última escola que o Álvaro estudou, tinha um menino chamado Paulo, eu tenho um carinho tão grande pelo Paulo, o Paulo era uma espécie de protetor sabe? Tudo que o Paulo via de errado, Paulo dava uma acalmada, dava uma ajeitada na situação, se algumas vezes saiu uma noite pra ir em algum aniversário da turma ali que começou até o aniversário de quinze anos, o Paulo pegava um um táxi, ia junto, mas o Paulo passava na minha casa primeiro pra deixar o Álvaro, sabe? Tinha umas coisas assim, eles eram da mesma idade, menino tinha uma compreensão, coisa que os outros não tinham. Então, isso ajuda muito na escola, essas crianças mais protetoras.

Ana Flávia: O Tony Attwood, que é um autor que ele fala sobre o bullying eh em relação ao autismo, ele fala que uma das estratégias é você ter um amigo protetor na sala de aula, um amigo que vai te ajudar compreender as coisas, porque, de repente, se falha, ele vai entender de forma muito literal. Então, esse amigo que ajuda, que acompanha. Na verdade, era bom se toda a sala de aula fosse assim, né, gente, se as crianças fossem mais compreensivas, né, mas eu acho que isso também vai muito do trabalho da escola, como é que a escola pensa.

Tiago: Essa questão de convidarem e as pessoas não animarem muito, eu acho que já indica assim, perdão pela sinceridade, sabe? Mas às vezes eu tenho um negócio desse, mas não são amigos, são colegas, no máximo do máximo, eu acho que amigos eles tenderiam a aceitar. Eu tenho um grupo de amigos, é um grupo muito restrito, são três pessoas mais assim, a gente sai direto inclusive a gente, a gente tava de madrugada no cinema assistindo filme, entendeu? Essa questão de se relacionar com pessoas mais velhas ou mais novas, eu acho que tem muito a ver também com o temperamento de ele oscilar às vezes, entre um comportamento extremamente maduro pra sua idade, às vezes extremamente infantil pra sua idade. Então, é uma polarização, digamos assim, se você se relaciona com uma pessoa mais nova que você, você é como se fosse um mentor ali daquele ambiente. Ser a pessoa mais velha, você é o é o conselheiro e às vezes a pessoa mais nova ela acha interessante conviver com uma pessoa mais madura. E, às vezes, conviver com a pessoa mais velha, você tem a compatibilidade de ideias e de temas. Às vezes com a faixa da da sua idade, esse é um processo muito mais complicado. Faixas de idade demandam também certas certas que não existem. Por exemplo, adolescente é um tipo de pessoa muito difícil de lidar. Às vezes é mais difícil de lidar do que criança, sabe? Aborrecência é um processo triste, assim, na vida de todo ser humano. Então, eu acho que faz muito sentido, por exemplo, o Álvaro, ter essa dificuldade de estabelecer vínculos duradouros com pessoas dos seus pares, nessa faixa de idade atual, porque é um momento caótico.

Rosalina: Ele não tem muita gente, sabe. As pessoas que estavam pro aniversário era o pipoqueiro da pracinha do lado, o porteiro do prédio, a faxineira do prédio, não tinha uma criança. Isso, as pessoas do quadrado ali, do andar da gente, que eram todas idosas, não tinha uma criança. A hora que eu abri a porta os convidados dele são as pessoas que chegaram pra festa. E aquilo marcou a nossa vida, porque ficou por conta dele. Ele queria trazer as pessoas dele. Então, as pessoas que vieram foram essas. Não tinha uma criança na festinha de aniversário. E ele feliz da vida, felicíssimo ali cantando parabéns com o porteiro, pipoqueiro, a faxineira do prédio, eram amigos de coração.

Álvaro: Então, isso que ela comentou, que foi a maior verdade. E agora eu lembrei que ela tinha me perguntado como era a minha questão do brincar. Eu gostava mais de brincar com o galho de uma árvore, por exemplo, ouvi um galho de uma árvore solto, vi uma folha de uma árvore, brincava com com a maior felicidade. Eu falava pra minha mãe, eu prefiro isso do que qualquer outro brinquedo, qualquer outro. Eu acho que só esses aqui já basta. Guardava, tinha dias que ela falava, pra que que cê vai ficar entulhando isso? Joga isso fora, pra quê? Guarda os brinquedos que prestam não, mãe, eu prefiro estes. Eu lembro, também, que quando eu era criança, quando eu tinha oito anos, por que que eu não sei pular corda até hoje? Nunca dei conta, que eu sempre fui o girafa da turma, sempre fui muito grande, mesmo que eu estudava só com gente da minha idade, teve algumas brincadeiras que foram até impedidas, entende? De acontecer, que isso varia muito, como se diz, da sociedade que a pessoa vive, do meio que ela vive e os autistas em si, a gente foca muito em uma coisa. A gente adora ficar brincando com a linha, sabe? Linha de roupa, eu gostava de puxar e ficar brincando com ela. Achava isso uma grande diversão. Eu fui uma pessoa, também, que sempre pensei em colecionar muita coisa, sabe? Colecionar latinha, colecionar copo, minha mãe, ah, eu preciso ficar colecionando as coisas, vai chegar uma hora que não vai cair pra limpar, dá um trabalho. E até que um dia eu resolvi fazer a coleção, vi que pra limpar dava um trabalho, eu falei, mãe, realmente, não convém. Bom, em relação ao trabalho, eu nunca trabalhei pra ganhar. Faço serviços voluntários, gosto muito. Eu já concluí o ensino médio, eu tive o ano passado um período sabático, mas eu fiz, tô fazendo o curso Supera, não sei se vocês já ouviram falar numa franquia brasileira já, eu aconselho mundo a fazer, melhor coisa que podia ter aparecido. É um curso tão bom que depois que eu passei lá, senti que minha ansiedade diminuiu, meu estresse também diminuiu, lá a gente faz conta no ábaco, que é um objeto que os japoneses usam pra calcular. A gente debate vários exercícios do cérebro, vários temas do dia a dia, tem que Superas no Brasil inteiro. Em Goiânia tem três e em Trindade, abriu um. É uma vez na semana, durante duas horas. Se faltar uma aula lá, tem que repor e eu falo que é uma vez na semana, entre aspas, porque depois que você faz isso, você gosta tanto, que passa a fazer as atividades em casa compulsivamente.

Ana Flávia: E como é que surgiu como voluntário da turminha, assim, como é que cê começou a trabalhar?

Álvaro: Os voluntários da turminha surgiram porque a minha vizinha Ana Paula tem um filho autista de oito anos. O grau dele é bem severo. Aí, ela resolveu montar esse grupo dos autistas, que é o Moab, e ela falou pra mim, Álvaro, você pode ser o voluntário? Eu falei, na hora, com maior prazer. Eu comecei em outubro, tô até hoje. Eu já conheço praticamente todo mundo do grupo, gosto muito mesmo, que eu que sou que recebo todo mundo, em qualquer evento, tem que ter a lista de presença, tem que pegar nome, CPF de todo mundo, receber os pagamentos, eu faço tudo isso.

Ana Flávia: Eu acho que foi bom porque também te deu um nó, esse nó. Porque ele estava um pouco perdido em relação ao que queria fazer. Profissionalmente.

Tiago: Inclusive, eu conheci o Álvaro num desses eventos, né, teve audiência pública na Assembleia legislativa de Goiás, que foi sobre autismo, foi em dezembro, foi dezembro e aí eu lembro que, que, que eu tava lá, eu fui chamado pelo núcleo de acessibilidade pra falar da minha experiência lá, e aí depois eu fiquei sabendo que era só abertura pro público, você tem dois minutos, eu, eu tinha preparado um papel enorme, assim, de coisas, sabe? Foi até meio engraçado. E aí, eu lembro que no final, a mãe do Álvaro chegou, falou, cê precisa conhecer meu filho.

Ana Flávia: Tiago, fala um pouco sobre o Saudavelmente.

Tiago: Saudavelmente é um programa da Universidade Federal de Goiás, que é dirigido a todos os estudantes e servidores da universidade, a fim de oferecer tratamento tanto psicológico, quanto psiquiátrico. E atualmente tem um grupo que é o chamado grupo Asperger, que é só de alunos com Síndrome de Asperger que foi estabelecido pela professora Tatiana Dunajew, que além de psicóloga, é mestre em filosofia pela Unesp. E eu vou ser o primeiro a sair do grupo, porque eu vou me formar esse ano, mas eu quero passar o bastão pra galera que foi entrando, porque eu acho que o grupo tem que se manter e continuar. E assim, precisa desses grupos de apoio psicológico.

Ana Flávia: Esse suporte é necessário para esses meninos, esses alunos que são público-alvo da educação especial, como os autismo, pessoas com deficiência. O apoio psicológico é mais que necessário. Hoje eu estava conversando com uma aluna aqui, ela chega, ela diz, professora, eu tô pra enlouquecer, porque assim, a demanda é muito grande. A gente tá começando ainda caminhando aos primeiros passos do processo de inclusão, então é um sofrimento muito grande pra eles, porque do dia pra noite eles tem que lidar com uma série de coisas e uma série de demandas. Então, assim, como esse atendimento psicológico, ele é importante também. E é assim, porque eu tava conversando com esse meio ali, a gente pensando. Porque também a universidade, às vezes, tem sido um ambiente tão adoecedor pros alunos. O que que a gente precisa repensar como professor também. O que que tá levando esse adoecimento? É algo pra gente pensar, a gente fala sobre o adoecimento do professor e não fala sobre o adoecimento do aluno. Álvaro, você pensa em ir pra universidade, cê pensa em desejo de tá na universidade? Cê ainda se sente um pouco perdido?

Álvaro: Faculdade, tenho muita vontade, entende? Morro de vontade, que eu vejo que hoje em dia se não tiver um curso, uma faculdade, não adianta, igual o meu vizinho comentou comigo, ele trabalha no SENAI, ele chegou pra mim e falou, hoje em dia o ensino médio é como se fosse fundamental de antigamente, o curso técnico é como se fosse a faculdade continua sendo a faculdade. E é mesmo, se você chegar, se uma pessoa chegar pra você, uma pessoa atual, falar, eu tenho só o ensino médio. Ela não vai conseguir um bom emprego, nada disso. Mas se fosse antigamente, falasse isso, tem só ensino médio, tudo vem. Isso é mais tranquilo. Que a gente vê, igual eu digo sempre. O estudo é instrução da vida. Sem o estudo, a gente não consegue vida boa. Qual que é a importância, assim, né, a gente vê sua mãe, assim, tão ativa, qual que é a importância da sua família nesse, na sua vida, nesse processo, assim, de eu sou a própria inclusão social? Bom, é o apoio, sabe? Que é igual minha mãe comenta, ela é a que mais apoia tudo, ela acha que eu sempre devo fazer esses cursos, não só pra eu aprender e sim pra fazer novas amizades, tudo isso, ter uma vida, como se diz, igual ela fala, eu quero ver meu filho saindo com os amigos, tudo, com gente da idade, uma vida independente. E a gente ser independente é muito melhor. Quando eu era criança eu falava, queria ser criança pra sempre. Hoje que eu cresci eu falo, não, quando a gente é criança, a gente tem que fazer só com nossos pais querem, tudo, a gente não pode ficar a vontade, depois a gente cresce, a gente pode fazer o que quiser, sabe de que é certo, sabe o que é errado, que nem minha mãe comenta sempre comigo, ela fala, você não tem mais anos de idade, então a mamãe não precisa ficar falando pra você toda hora, não debruça na janela, cuidado, já tomou banho, já comeu, isso ela não precisa de falar, mas igual ela comenta sempre. Quando você sai de casa, se você não ficar atento nesse celular, eu vou ficar muito preocupada. Ela fala, deixa, preciso, no primeiro momento, foi a ignorância mesmo, eu não sabia nem o que era.

Rosalina: Quando a doutora me falou, não tinha noção, procurei pedir pra que ela explicasse o que que era, porque eu não sabia. Sabia que ele tinha essa diferença, mas falei, o que é isso pra gente poder correr atrás? Não era pra pegar um diagnóstico só, não é? Pra poder correr atrás do que era. Olha, no primeiro momento, eu fiquei meio impactada, assim, falei, nossa, e vou fazer o que com isso. Como o Tiago tava comentando, busquei ajuda, fui atrás, corri num monte de lugares atrás de informações e cê sabe que não foi difícil? Não foi. É, eu não sei se é porque convivendo com ele, ele sempre foi uma criança, assim, maravilhosa, que eu ainda falei pra ele, hoje a hora que a gente vier vindo pra cá, ele nunca, nunca me deram trabalho um dos dois. Então, foi uma vida, assim, buscando soluções, buscando encontros pra isso, porque ele era muito calado, ele era muito quieto. Se deixasse ele sentado em cima da mesa, era o lugar preferido, mas bem no centro da mesa, e ficava ali o tempo todo naquele movimento, que até hoje ele tem ainda este movimento. Eu preciso dar um toque de vez em quando. Então, ele foi uma criança maravilhosa. Então, a gente correu atrás e foi vendo esse processo dele, esse progresso, porque ele progrediu muito. Então, isso daí foi me deixando tão feliz, que num nunca foi problema na nossa vida, nenhum de nós, de nós três ali, dessa convivência mais, porque dele achava que o problema era meu, não era dele. Ele não tem problema nenhum, é você que enxerga. Eu falei, mas sou eu que convivo, eu vejo. Eu vejo que tem. Então, o pai demorou muitos anos. Nós nos separamos, o Álvaro  tinha quatro anos. Então, hoje, hoje ele admite, há um processo todo. Mas até então não tinha. O irmão tem muita participação, que é um garoto também maravilhoso, que nos ajuda muito, eu falo que ele veio aqui no meio pra fazer um intercâmbio, porque quando o Álvaro passou adolescência, adolescência do Álvaro foi muito acentuada em relação a adolescência do outro. Mesmo estando fora, o Álvaro ligava pra reclamar de mim pro irmão. Aí o irmão ligava pra mim, aí ficava no meio, sabe? Aí o Álvaro falava, sua mãe me falou isso hoje? Mesmo estando longe, ele nos ajudou muito, né, filho? É uma pessoa maravilhosa. Então, os dois são muito bons, não foi problema nunca, sabe? Com sinceridade não foi. No mesmo caso que o Tiago, o Álvaro, comentário que o pai deles não enxergava o deles não enxergava, o outro se enxerga omite. Muitos homens se afastam, eles fogem, desistem. Então, ali a gente troca de tudo. Então, hoje, com esse projeto nosso, a gente já conseguiu uma carteira aqui no estado de Goiás, dessas audiências que o Tiago comentou, que que ali na carteira vai constar que a pessoa é autista. Porque o autista não tem aparência. Então, quando você vê um autista, você não fala que ele é no olhar. Então, uma mãe que vê um filho berrando ali, fazendo uma estripulia danada, todo mundo critica. Então, agora ter uma carteira de identidade constando ali que a criança é autista. Foi uma luta também. E a gente tá pedindo. É uma luta social. A luta social.

Ana Flávia: Como, eu morava num prédio em Recife, eu achei muito interessante que um casal de pesquisadores, que veio dos Estados Unidos pra Recife, pra estudar o menininho dele, ele usava um crachá escrito, eu sou autista, tenho paciência comigo, e eu achei aquilo tão interessante ao mesmo tempo, assim, eu fiquei pensando assim, nossa, mas é tão rotulante. Mas eu penso que talvez na situação dele, que era um autista mais grave, talvez a mãe chegou a esse ponto de colocar. É verdade. Que eu fiquei pensando justamente na questão do estigma. Assim, ali tão. Aparente. Mas eu acho que é necessário.

Álvaro: Eu fiz o curso de teatro em novembro de 2011 até abril de 2012. Ao todo, foram quarenta e oito horas de curso. Foi um curso muito bom, me ajudou demais conhecer atores famosos lá, professores muito bons que foram do Rio de Janeiro, esses professores que vieram pra cá deste curso, minha mãe tinha falado pra mim, você vai fazer esse curso? Não é pra você ser um ator, é pra você saber falar em público, pra você aprender a perder sua timidez, pra você saber sociabilizar bem. Juro pra vocês que esse curso me ajudou tanto, mas tanto, que hoje eu não sou retraído, não sou nada disso, se eu não tivesse feito esse curso, eu não ia estar aqui, minha timidez, esse curso ajudou a perder minha timidez por cento. Foi tão ótimo pra mim, que muitos que fizeram, até hoje eu tenho contato com meus colegas, os professores pelas redes sociais. A gente nos fala muito e todo mundo diz a mesma coisa, fala, esse curso ajudou a gente cem por cento praticamente. Dificuldade em coordenação motora, eu tive, mas não tão acentuada. Não era tão forte, eu consegui fazer os movimentos que o professor mandava. Eu nunca vi professor chegar pra mim e falar, Álvaro, você está fazendo errado demais, tudo. Não. Sinal de que a coordenação motora minha foi sempre boa, controlada.

Ana Flávia: Essa questão da hipersensibilidade ou hiposensibilidade, cês tem alguma coisa que atrapalha, isso incomoda?

Álvaro: Somos muito sensíveis com algumas coisas, sabe? Como sons, essas coisas a gente é muito sensível, cheiro essas coisas. O que me incomodava em sala de aula na hora que tava fazendo prova, às vezes aluno fica conversando coisas, sabe? Perguntando coisa e depois, de repente, surgir assunto dali, eles não tinham fome, tu sabe se tá conversando. É, meu TOC hoje já melhorou bastante. Meu TOC hoje melhorou muito, que eu fui fazendo terapia, mas não tem cem por cento de cura.

Ana Flávia: Então, eu queria agradecer muito a disponibilidade de vocês.

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